quinta-feira, 18 de abril de 2024

Roma, colinas e reis

(XIV)

S
ete as colinas encantadas, Palatino, Quirinal, Aventino, Monte Célio, Viminal, Capitólio e Esquilino, e sete os reis que fundaram a cidade e seu império, Rômulo, Numa Pompílio, Tulo Hostílio, Anco Márcio, Sérvio Túlio, os dois Tarqüinios, Prisco, um, pela ordem, o outro, Soberbo. Coincidência? Talvez, ou capricho de nume antigo, sete ondulações telúricas sobre as quais, soberanamente, desde a dourada era de Saturno reinaram reis em número de sete, como em conjunção de astros dispostos em heptâmetros mágicos: Quem os terá composto, se Ovídio, e o Quinto Horácio Flaco, e Marcial, Lucrécio, Propércio, Lucano, Virgílio Maro... fazem parte da estância?
  

Passear por Roma é muito bom

As Sete Colinas de Roma”, 1957. O roteiro do filme parece ter saído das pranchetas de uma agência de turismo e, sem maiores preâmbulos, põe a gente a passear entre monumentos e paisagens romanos. Tem Mário Lanza com todo o seu prestígio de tenor num clima de romance com Marisa Allasio. O dueto à beira da fonte com Luisa di Meo, então uma garotinha, até hoje emociona. Canção de Renato Ascel: 

Che arrivi, t'imbevi
De Fori e de scavi,
Poi tutto d'un colpo
Te trovi Fontana de
Trevi tutta pe' te!

Arrivederci, Roma...
Good bye...
Au revoir...

Si ritrova a pranzo a
Squarciarelli
Fettuccine e vino dei
Castelli come ai tempi
Belli che Pinelli immortalò!

Outros filmes, americanos e italianos, haviam antecipado a fórmula. Assim, “A Princesa e o Plebeu” (Roman Holliday) de 1953, em que a pé, de carro ou de lambreta, o público vai atrás de Gregory Peck e Audrey Hepburn. O “Candelabro Italiano”, na década de 60, Troy Donahue e Suzane Pleshette, seguiu a toada, tem até lambreta. Porém trouxe Al di lá, no vozeirão impostado de Emilio Periccoli. Em todos, postais e mais postais, no que Roma é incomparável: Basílica de São Pedro, Piettà, Capela Sistina, a sombra do papa Júlio II, a aura de Michelangelo; San Pietro in Vinculi e o “Moisés” que o artista esculpiu, com aqueles misteriosos cornos e tudo; Castelo de Santo Angelo, o mercado dei Campo de` Fiori e, claro, o Coliseu, o Forum Romano, o Arco de Tito, o Templo de Vênus, a Basílica de Maxêncio, o Templo de Vesta...  

Sem Fossas Ardeatinas, que o horror da Grande Guerra estava presente demais, mas, sempre, as Termas de Caracala, o Palatino, e o Campidoglio, com vista direta para o Trastevere e, claro, para o próprio Tibre, Isola Tiberina, inclusa, mais a brancura do mármore no monumento a Vitorio Emanuele II, lá no alto; Piazza Navona, Piazza di Spagna, as escadarias de Trinità dei Monti, a Via dei Condotti, quanta grife, meu deus do céu, os preços, nos últimos degraus! Rente às escadarias, o Museu Keats-Shelley, que guarda memórias dos dois grandes poetas românticos no endereço em que buscaram refúgio, em vão, contra a tísica, no clima ameno da Itália.

A evocação de Roma traz muita referência, umas de puro afeto, outras nem tanto: Malaparte, Malatesta, Palmiro Togliatti, Don Camilo, Pepone, Vittorio de Sica, bicicletas, Bernardo Bertolucci, Rita Pavoni, datemi un martelo // Che cosa ne vuoi fare? // Lo voglio dare in testa, sim! E Fellini, Oito e Meio e Amarcord, La Dolce Vita (À meia-noite, com Anita Ekberg dentro, é quando mais bonita é a Fontana de Trevi), Modugno, Cos`è che trema sul tuo visino. // È pioggia o pianto, Dimmi cos` è, // Ciao ciao bambina // Non ti voltare, non posso dirti rimani ancor.// Vorrei trovare parole nuove, ma piove, piove...

“Cidade Aberta” é a Roma de Roberto Rosselini e de Ana Magnani, dela, também, a “Mamma Roma” de Pasolini, que recria na cena urbana, em tomadas emocionantes, sugestões de afrescos de Giotto, Caravaggio, Tintoretto... A Cidade comporta esse tipo de capricho, deixando sublimar com naturalidade séculos e séculos de história e arte, em projeções luminosas nas telas dos cinemas do mundo inteiro. Esses filmes dão a impressão de não buscarem revelar seus mistérios e segredos, talvez para não compartilhar com não iniciados, só deixar rolar:  inverno, as sombras da guerra presentes na noite espessa, dissimulando o indecifrável. (nm)

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quarta-feira, 3 de abril de 2024

Do Livro das Revelações



Em "O Sétimo Selo", 

o cavaleiro cruzado

de Bergman

(Max Von Sydow)

e a Morte

(Bengt Ekerot),

que joga com as pretas 

(XIII)

Sete espíritos, sete castiçais de ouro, entre os quais, voz de muitas águas.  Sete estrelas à destra, e as chaves da morte e do inferno (1): Ao que vencer, dar-lhe-ei a comer da Árvore da Vida, diz a voz de muitas águas. Um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos, que um Leão, dos filhos de Judá, com sete pontas e sete olhos, os sete espíritos de Deus, é digno de abrir.

Aberto o primeiro selo, saiu um cavalo branco, cujo cavaleiro tinha um arco e foi-lhe dada uma coroa; e saiu para vencer; o segundo, e saiu um cavalo vermelho, a cujo gi­nete foi dado tirar a paz da terra; o terceiro, e saiu um cavalo preto, e seu ginete levava uma balança: uma medida de trigo por um dinheiro três de cevada por um dinheiro; o quarto selo, e saiu um cavalo amarelo, e seu cavaleiro tinha por nome Morte, e o inferno o seguia... (Gracia - Los Cuatro Jinetes - Blasco Ibañez) 

Aberto o quinto selo, viu-se sob o altar as almas dos que morreram por amor à Palavra; o sexto, e veio um grande tremor de terra, o sol tornou-se negro e a lua como san­gue. Estrelas caíram sobre a terra. E o céu retirou-se, como um livro que se enrola; reis da terra, e os grandes, ricos e os poderosos diziam às pedras das montanhas: Caí sobre nós, escondei-nos do rosto daquele sobre o trono, porque é vindo o grande dia de sua ira.

Aberto o sétimo selo, fez-se silêncio no céu por meia hora. (A percepção desse silêncio opõe o Cavaleiro de Ingmar Bergman à Morte, num jogo e xadrez em que não pode evitar o xeque mate. A questão é: Quando? Enquanto isso, a agônica espera do nada vai adensando, no filme inesquecível, a ideia do Absoluto.)

Sete anjos, diante de Deus, aos quais foram dadas sete trombetas. O primeiro tocou e houve saraiva e fogo com sangue, lançados sobre a terra, queimando sua terça parte; tocou o segundo e foi lançado ao mar algo como um monte ardente, e tornou-se em sangue a terça parte do mar.

O terceiro anjo tocou e caiu do céu uma grande estrela ar­dente sobre a terça parte dos rios e fontes. E o nome da es­trela era Absinto e terça parte das águas tornou-se absinto; o quarto, e foi ferida a terça parte do sol, da lua e das estrelas, para que sua terça parte escurecesse, e a terça parte do dia.

O quinto anjo tocou a trombeta e uma estrela do céu caiu na terra; e foi-lhe dada a chave do poço do abismo. Gafanhotos como escorpiões fustigaram a terra por cinco meses. E ti­nham sobre si o anjo do abismo, cujo nome em hebraico era Abadom, e em grego Apoliom.

O soar da sexta trombeta soltou quatro anjos que esta­vam presos junto ao rio Eufrates, para que matassem um terço dos homens; ouvi as vozes dos sete trovões, mas uma voz mandou: Sela o que os sete trovões falaram, e não escreva. Mas nos dias da voz do sétimo anjo, quando tocar a sua trombeta, se cumprirá o segredo de Deus.

A voz disse: Toma o livro na mão do anjo, come-o e ele fará amargo o teu ventre, mas na tua boca será doce como mel. E viu-se outro sinal no céu, um grande dragão vermelho que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre suas cabe­ças, sete diademas. Do mar subiu uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças um nome de blasfêmia.

E adoraram o dragão que deu à besta o seu poder. E foi-lhe permitido fazer guerra aos santos, e vencê-los. Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento, calcule o número da besta; porque é o número de um homem; e o seu número é seiscentos e sessenta e seis.

E o anjo vindimou a foice as uvas da vinha da terra, e lançou-as no lagar da ira de Deus. Aos sete anjos foram dadas sete taças cheias da ira de Deus. Uma grande voz dizia: ide e derramai sobre a terra as sete taças.

Eu te direi o mistério da besta de sete cabeças e dez chifres que traz a mulher...  As sete cabeças são sete montes, sobre os quais a mulher está assentada, (nm)

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quarta-feira, 27 de março de 2024

Do conto do Pequeno Polegar





Gigante espoliado
das botas de sete léguas.
Que triste semblante!


(XII)


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quarta-feira, 20 de março de 2024

Da história da Branca de Neve

 (XI)

Anões

Um, dois, três, Dunga, Mestre, Atchim. Quatro, cinco, Dengoso e Soneca, seis e sete, Zangado e Feliz, o mais difícil de lembrar, nem Branca de Neve saberia por que. Talvez a bruxa má:  – Felicidade é ausência de dor, negação, portanto, e suas pegadas apagam-se nas praias da memória, afeitas mais às impressões positivas do que dói.

Deu uma gargalhada de bruxa e continuou: – Às vezes ocorre latejar na lembrança a negação de uma ausência, nostalgia, a “dor do regresso”, “dor do lar”, invenção de gregos, tão propensos, sempre, a sofismar. Dialeticamente, porém, a negação do ausente é positiva, saudade, lusitanamente, – irrrque! que voz!

– Então dói! – gritou a bruxa com autoridade maligna. Outra gargalhada, dessas de gorar as ninhadas, e embrenhou-se na espessura, desafinada, a resmungar: “Um, dois, três, Dunga, Mestre e Atchim. Quatro, cinco, Dengoso e Soneca, seis, sete, Zangado e Feliz, difícil de lembrar”. (nm)

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quarta-feira, 13 de março de 2024

Súplicas, chagas, reverências, orações e canções



(X)

Misteriosas formas heptaédricas, douradas e incandescentes, dissimulando-se em seqüências exasperantes de conjuntos de sete elementos, exaltam a exasperação de João, sete vezes tocado pelo Intangível. Mateus e Lucas se conformam às mesmas formas, às vezes, como ao fixarem espantosa oração e as súplicas, em número de sete, que ela contém e que se expandem em catadupas de luz, como as sete faces de um diamante  perfeito, no Livro e no coração de muitos homens: “Pai nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso Nome...”

As mesmas formas se cristalizam na voz de um caboclo cantando piedosa composição, em que o número Sete se eleva às encantadas esferas do hierático. Se, por exemplo, refere-se às “Sete Chagas...”, por puro respeito, apropria-se de possibilidades do cardinal que, de ordinário, não constam de gramáticas nem de dicionários.

As chagas, tantas, sangrando por fora e por dentro, nem dá pra contar! Então ele as reduz a “sete” por um processo metonímico que sustenta uma ideia de “todas as chagas”: as dos açoites, espinhos, lanças, cravos, as da injustiça, e as chagas da solidão e do abandono.

Na intuição de almas simples, a dor e o quebranto de sete chagas tais é que teriam suscitado, um dia, perto da hora nona, a tremenda exclamação: Eli, Eli, lama sabactâni! (Mt 27 - V46).                              

Pois é. Homens rezam e imploram, sempre imploram, e cantam. Sempre cantam. Onde, porém, a correspondência mágica com caprichos nem sempre evidentes do número Sete? Não na oração do Anjo Anunciador, que se eleva na voz de Pavarotti até as esferas mais altas: Ave gratia plena... Pura reverência! Na interpolação, depois do Mensageiro, a súplica mais pungente: Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis peccatoribus, nunc et in hora mortis nostrae

Pungente, também, a Oración Caribe, de Agustin Lara, coisa do século passado, quase uma antiguidade que Toña la Negra, intérprete preferida do compositor, mantém sempre viva, sempre emocionante, como se cantasse no mais alto do templo mais alto de Teotihuacan: 

Oración Caribe, que sabes de implorar,                                                                                                    Salmo de los negros, oración del mar!                                                                                                        Piedad, piedad para el que sufre,                                                                                                                  Piedad, piedad para el que llora.                                                                                                                  (...)                                                                                                                                                                  Un poco de calor en nuestras vidas                                                                                                              un poquito de luz en nuestra  aurora...

 Na Oração de Dorival Caymmi a Mãe Menininha, nem há súplica, só reverências, sete ou mais. Bethânia e Gal, vozes de muitos anjos, fazem com que cada uma chegue ao Gantois, a Mãe Meninha, a todos os Santos da Bahia, a todos os Orixás:

Ai, minha Mãe Menininha,
Menininha do Gantois:                                                                                                                           

A estrela mais linda, hein? Tá no Gantois                                                                      E o sol mais brilhante, hein? Tá no Gantois
A beleza do mundo, hein? Tá no Gantois
E a mão da doçura, hein? Tá no Gantois

O consolo da gente, hein? Tá no Gantois
E a Oxum mais bonita, hein? Tá no Gantois
Olorum quem mandou essa filha de Oxum                                                                          
Tomar conta da gente e de tudo cuidar                                                                        Olorum quem mandou ô ô, ora iê iê ô...

Ora iê iê ô, Dorival! Saravá, meu rei!

(nm)

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quarta-feira, 6 de março de 2024

Cartas de pastoreio pelos campos da Ásia Menor

(IX)

João, pastor, tange com palavras, umas, contundentes, outras, pura música. Como a ovelhas, apascenta Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia, sete igrejas, por prados ásperos da Ásia Menor. Tem o rijo bordão de Jacó e, às vezes, a flauta suave do Grande Pã:

A Éfeso: Laboriosa, paciente, atenta aos falsos apóstolos. Tenho contra ti, porém, que deixaste teu primeiro amor.

A Esmirna: Pobre, mesmo sendo rica, esperando com resignação a tribulação anunciada.

A Pérgamo: Desde os dias de Antipas, habitando onde Satã habita, sem renegar a Palavra. Melhor que São Pedro.

A Tiatira: Operosa, diligente e amorosa, da fé regou a encarnada rosa. Mas tolerar essa Jezebel dizendo-se profetisa!... Intolerável.

A Sardes: Desatenta e relapsa, só uns poucos dos seus vestir-se-ão de linho branco.

A Filadélfia: Frágil, guardou com firmeza a Palavra. Quando for chegada a hora, será coluna no Templo.

A Laodiceia: Frouxa nas obras, nem fria nem quente. Por morna, diz-lhe o pastor, “vomitar-te-ei da minha boca”.

Sinais

Como pastor, não poderia ter sido mais zeloso: “Eu repreendo e castigo a quantos amo”. Como testemunha, João é sóbrio. Bastam-lhe Sete Sinais para pontuar o plano da Redenção: a água transformada em vinho nas bodas de Caná; a cura de um jovem em Cafarnaum; a de um paralítico em Betesda; a multiplicação dos pães e dos peixes. À noite, o mais lírico dos sinais, uma caminhada sobre as ondas do Mar da Galileia; a cura de um cego em Silo‚ com barro da saliva e pó da terra, terá sido um sinal singelo. O sétimo é o mais dramático, a ressurreição de Lázaro.

“Mestre, se Tu estivesses aqui, meu irmão Lázaro não te­ria morrido.” A interpelação de Mar-ta, irmã de Maria, que havia enxugado com os próprios cabelos os pés do Rabi, depois de lavá-los e ungi-los com ungüento perfumado, não podia ser mais patética. E Lázaro levava quatro dias de morto e enterrado. O Rabi chorou com as mulheres, depois chamou Lázaro da tumba e o ressuscitou.

Mesmo num âmbito em que milagres fariam parte do cotidiano, a alteração de um consumado desígnio da Morte terá sido algo estarrecedor. O Sétimo Sinal do Evangelho de João, tocado sete vezes pelo Intangível, é, pois, o da Ressurreição e da Esperança, contra as quais a besta do Sétimo Selo não prevalecerá. Esperamos (*).

(*) Depois de ler o Romance d`A Pedra do Reino e O Príncipe do Vai e Volta, Galdino, irmão de fé e de andanças, mandou-me o livro. Em letra de forma, com esferográfica, ele escreveu na falsa folha de rosto do volume, ainda sob a viva impressão do mergulho que dera naquele universo escatológico de Ariano Suassuna, a seguinte mensagem: “Ao (...) Cão da molesta, (,,,) pra que a onça macha-e-fêmea da vida e a bicha-mundo te manere a mão e a Bicha Bruzacã não te pegue não”. De algum modo, isso ajuda, a quem de direito, compreender que Sertão é um pouco deserto e Ariano um pouco São João. (nm)

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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Lição de entomologia

 

(VIII) Chatos

“Gente, isso não é bicho-de-sete-cabeças não!” Havia muita sinceridade, muito afã de estimular, de criar um clima favorável à compreensão das relações entre espaços, quantidades, números. Mas, a professora de matemática banalizava a expressão, obviamente inspirada do Livro das Revelações (*), através da reiteração quase obstinada: “Não há mistério, gente. É só prestar atenção, raciocinar. Álgebra não é bicho-de-sete-cabeças”. Mais difícil que aqueles encrencados exercícios, era entender o critério da mulher que, na aula de catecismo, persignava-se a cada vez que mencionava o Anticristo, o número 666 ou qualquer daqueles dragões de sete cabeças que vomitam fogo nos textos do Apocalipse: – Cruz Credo, Ave Maria! Creio em Deus Pai!  etc...

Mas, na escola que uma pequena cidade pode ser, nem tudo era álgebra ou catecismo, embora as conexões, às vezes flagrantes, sutis às vezes, entre as disciplinas do currículo: – O que que é isso aqui? Ante a indagação meio apalermada de um cafumango segurando algo entre as pontas do polegar e do indicador, fechados como se fossem pinças, respondeu com voz  que era puro enfado uma mulher magricela, que talvez tivesse sido bonita numa juventude transcorrida havia lá uns bons vinte anos, sem a menor disposição de parecer simpática: – É bicho-de-sete-pernas, rapaz. Você não está vendo?

Uma gargalhada geral fez eco à debochada provocação, expandindo-se pelo bordel. Era o terceiro ou quarto dia de uma chuva fina e intermitente, e o mulherio dividia o tédio com garimpeiros e gente da roça impedidos de trabalhar por causa do aguaceiro, além de um ou outro estudante. Inexperto, o basbaque ficou olhando com cara de quem não estivesse entendendo nada, completamente encabulado. Uma moça morena compreendeu a situação e, por alguma classe de instinto maternal, dispôs-se a aliviar, protegê-lo daquela gente sabidamente sem caridade. Com paciência e simpatia, foi explicando: – Bicho-de-sete-pernas é muquirana (**), chato, piolho-da-virilha. Uma praga, querido! Este lugar está assim disso. O mundo está assim disso! 

Um gesto com os dedos em feixe, as extremidades unidas, apontando para o céu, enfatizava a apregoada infestação:  – E de tudo quanto é tipo – reiterou com uma expressão que era puro aborrecimento. Meio sem jeito, o rapaz limitou-se a sorrir agradecido, esforçando-se para não parecer otário demais. Percebera a ambigüidade que brilhava na expressão jovial dela, mas continuava sem entender a nova onda de gargalhadas que suas palavras provocaram.

A posterior aquisição de alguma noção mais precisa da natureza dos phthirius pubis, insetos da ordem anoplura, família dos pediculídeos, não obscureceu a agudeza nem a abrangência daquela referência primordial: a ideia de uma infestação universal de chatos de todas as classes manteve sua inteireza conceitual na memória e na consciência de quem presenciou, atento, àquela breve lição de entomologia. Sobrariam sem solução questões relevantes do ponto de vista morfológico. Mas, sem laboratórios, lupas nem critérios descritivos adequados, a suposição de que as pernas de um anopluro quase microscópico pudessem ser sete ainda teria boas razões de ser. “Sete” é adjetivo, como costumam ser os numerais, mas terá, também, algo de adverbial, com suas inequívocas conotações de “muitos”, além de propriedades superlativas que podem variar e, assim, conforme o contexto, significar qualquer número de difícil precisão. Além do mais, quem iria dar-se o trabalho de ficar contando pernas de muquirana? Melhor, mesmo, era admitir que fossem sete, conforme asseverado com autoridade pela moça do puteiro. 

O dicionário Aurélio consigna o caráter cosmopolita do chato, que vive normalmente na região pubiana, mas pode instalar-se com conforto em sobrancelhas e axilas. Não há registro da voz “cri-cri” senão como o estrídulo exasperante dos grilos, mas não tem importância. Todo mundo sabe que, no bestiário popular, “cri-cri” corresponde a um mitológico sub phthirius, provavelmente também de sete pernas, que prosperaria nos pentelhos dos chatos. (nm)

(*) Mesmo numa leitura linear, as Revelações expõem a insignificância do indivíduo confrontado com o Absoluto, seja o Tempo incompreensível ou os limites do universo, impossíveis de intuir. O resto é incandescente escatologia, cujo conteúdo apavorante uma assustada professora (1.1) de catecismo ia exorcizando com setenta e sete persignações, distribuídas conforme ia aflorando no texto cada sugestão do Maligno: Só se ela queria, mesmo, era apavorar com a lembrança aterradora das chamas dos infernos e com a perspectiva do fim do mundo, vingando-se daqueles fedelhos aborrecidos que lhe azucrinavam a vida de professora de matemática.

(**) Há que veja aí uma incongruência entomológica, partindo da ideia que prevalece em algumas regiões da nossa pátria salve, salve, que "muquirana" seria pernilongo, mosquito. Mas isso é irrelevante, posto que, no aborrecido e molesto, patenteia-se uma identidade irretorquível, ainda que meramente ideológica: muquirana é chato, sim senhor, e vice-versa.   

 

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Continua na próxima quarta-feira - 6/3

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Candelabro


(VI)

Moisés recebeu as instruções que recebeu sobre a fábrica do candelabro do preceito, o Menorah: sete braços, sete açucenas, sete lâmpadas de ouro, que haveriam de luzir em cada pomo (Exodus). A Tradição contempla em sua forma uma representação da Árvore Cósmica, cujas inflorescências desabrocharão no coração dos homens puros e seus frutos serão o alimento deles, no deserto do Sinai ou onde quer que estejam.


(VII) Recolhimento 

A quarentena da lepra dos homens, das roupas e da casa é de sete dias, a critério do levita (Levítico). Para encontrar-se consigo mesmo, tanto para o Filho de Deus quanto para os filhos dos homens, são necessários quarenta dias contados na solidão do deserto de cada um. Para abrir passo daí até a Terra da Promissão, quarenta anos podem ser suficientes, mas talvez não.

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"Heptaédricas" continua na próxima quarta


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Sete-Estrelo

(V) O Touro vem chegando devagar, zodiacal campina adentro, muito esplendor! Brilha sobretudo sua fronte poderosa, exaltando o negror e a força. Sob uma pálida Lua Nova de abril, serra acima, Inácio solta de vez a rédea frouxa da besta e tira do bolso o maço amarelo de cigarros Beverly. Acende um e tira funda baforada. Pode imaginar as espirais de fumo subindo na direção do céu constelado, mesmo sem poder vê-las. Já é um milagre que Dulcineia, sua mulinha rosilha, ande com firmeza pelo caminho acidentado e pedregoso.

As sombras são tão espessas que realçam até a passagem coruscante de um pirilampo ínfimo. Mais que uma visão noturna poderosa, ela tem o instinto e a memória de sua estirpe asinina. E, simplesmente, sabe onde pisa no trajeto tão familiar: estão voltando para casa. Às vezes, o pisca-piscar de uma estrela rebate tenuemente na piçarra de um barranco, o que, nem ao animal nem ao caboclo passa despercebido. Não podem perder qualquer lampejo aqui embaixo, por mínimo que seja, nessas ocasiões em que a Lua Nova acende os luzeiros no céu, mas apaga o chão.

Erguendo os olhos para acompanhar a fumaça invisível que subia, Inácio defronta-se com a constelação Erguendo os olhos para acompanhar a fumaça invisível que subia, Inácio defronta-se com a constelação do Touro, que mal reconheceu na noite estrelada, fixando-se nas Plêiades. Maia, Electra, Taígeta, Asteropo, Mérope, Alcione e Celeno cobrem com diáfanos véus de fina névoa a fingida pudicícia. Puxou outra baforada funda do Beverly, espevitando a brasa, que virou um pequeno farol no meio de tanta escuridão. Com o ar frio da noite na serra a arder-lhe nas narinas, confidenciou à mulinha: – Dulcineia, sabe que eu tô pensando na Isaura?

– E pensando o que? – indagou a mulinha, mostrando interesse na conversa.

– Não paro de pensar como ela anda bonita e como é bom ficar perto dela. Respondeu com a boa disposição com que, às vezes, conversava durante horas com Dulcineia, em longas jornadas solitárias deles dois.

– Bom, mas isso de caboclo gostar de cabocla é mais antigo do que a Serra da Canastra, ponderou a mulinha, quase entediada, mas, em seguida, preocupou-se e acrescentou:

– Está bem, mas é melhor não desassossegar, não perder o controle. Trate de guardar o siso, homem.

– Mas a lembrança da Isaura tá me sufocando, apertando, apertando. Bem aqui, ó...

E Inácio pressionou contra o peito o punho fechado da mão direita, segurando entre os dedos o toco de Berverly ainda queimando. Então os olhos do caboclo relutando ante a ideia de que pudesse estar apaixonado ergueram-se de novo na direção do céu alto, perscrutando, buscando, até achar de novo as Plêiades. Num arroubo de lirismo do qual nem se supunha capaz, disse à mulinha:

– Dulcineia, se eu pudesse, ia lá em cima e trazia o Sete Estrelo pra Isaura pendurar na corrente do pescoço. Tá vendo ele lá? Não é uma beleza?

Dulcineia pôs-se pragmática e ponderou: – E se você desse uma passadinha na oficina do Melquíades. Encomenda, que ele faz um sete-estrelo de pedrinhas...

– Mas se o Melquíades nem é ourives, é relojoeiro, e aí já vem você... só porque ele tem aquelas ferramentinhas miúdas, uma lente esquisita, de um olho só! – quis ponderar.

Mas a prosaica sugestão da mulinha amuara o caboclo, reduzindo a nada sua expansão lírica. Pra lá de macambúzio Inácio resmungou:

– Pra pagar uma encomenda dessas eu precisava vender os arreios, a badana, as esporas, a guaiaca, o chapéu, a cabeçada... E vender você, Dulcineia!  

Era a parte mais repugnante da perspectiva. Irritado e decidido, encerrou o assunto:

– Que sete-estrelo que nada!

O céu esplendente pesou sobre os dois enquanto seguiam serra acima, sem mais palavras. (nm)

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Continua na próxima quarta-feira

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

O dia sétimo

(III) Depois de criada a luz e de separada das trevas; da criação da terra, do céu, aves e estrelas; de criados o Homem e sua Companheira e o que vive no mundo, foi o dia sétimo (Genesis), ou o primeiro, a contar do momento em que tudo ficou pronto. Pode-se imaginar, ainda que por diversão, que a Criação, de fato, teria sido principalmente a criação do movimento, porque, desde que se cumpriu, o mundo não parou de girar nem o homem jamais ficou quieto.

(...) porque o Senhor fez em seis dias o Céu e a Terra e no sétimo descansou (...) trabalhareis seis dias, mas o dia sétimo‚ o sábado é o do descanso consagrado ao Senhor. O ano sétimo é o sábado da terra, que em seu transcurso não será semeada nem ceifada nem a vinha será podada. O ano seguinte ao sétimo ano sabático, conforme foi prescrito no Sinai a Moisés e ao seu povo, é o do Jubileu, para publicação do perdão das dívidas e de Liberdade para todos sobre a terra. (Levítico)

É a mais generosa das prescrições ao Profeta.

(IV) Sonhos

Uma, duas, três vaquinhas... quatro, cinco, seis...  em cada sonho de Faraó, sete vaquinhas. No primeiro sonho, luzidias, pingues, felizes, no segundo, esqueléticas, esquálidas, tristes. Conforme está escrito no Livro, havia sete vaquinhas em cada sonho de Faraó (Genesis)...

José (*), casto filho de Jacó e da serrana Raquel, Champollion do onírico, decifrava os hieróglifos dos sonhos de Faraó: sete anos de fartura, outros tantos de amargura, seca, seca, seca, escassez sem fim, quanta fome, meu Deus do céu! Porém, um pacto com Jeová, seu Deus e sua boa estrela, não permitia que traduzisse as lúbricas fantasias da mulher de Putifar, Zenóbia pérfida e bela...

(*) Remissões, interações, reciprocidades: a mesma história ou o mesmo sonho estarem contados em outro Livro antigo apenas os sublima, também quando o poeta Mahmoud Dardwich (**), amado das Musas, interage com uma “sura” corânica para contextualizar: Eu sou José, meu pai. O que eu fiz, meu pai, e por que eu? Você me chamou de José e eles me empurraram no poço, e culparam o lobo, mas o lobo é mais complacente comigo do que meus irmãos... Cananeu, no poema “Onze astros no último céu andaluzino”, lamenta o desterro da Palestina, mas também o de Granada: “Sou o Adão de dois paraísos que perdi pela segunda vez. // Então expulsem-me devagar // e matem-me rápido. // Debaixo da minha oliveira. // Com Lorca”.

(**) “Onze Astros”, tradução de Michel Sleiman - Editora Tabla

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Continua na próxima quarta-feira. De Cinzas?

Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverterisMaior de setenta anos, cara rosada, cabelos brancos de algodão, lentes grossas numa armadura de tartaruga, perdida a oportunidade de saber como é que aquele holandês achou de virar pároco nos confins do Sudoeste de Minas, resta lembrar o padre Geraldo van Keke com simpatia. A advertência, tremenda, ao proceder à imposição das cinzas nessas endoenças não assustava ninguém, menos pela língua incompreensível do que pelo tom benigno com que a pronunciava. O padre Geraldo tinha o semblante sempre sério e quase triste em seu desterro. Mas gostava demais dos pequenos circos que apareciam por ali de vez em quando e não perdia espetáculo. Sentado na primeira fila, batina preta, chapéu redondo com uma espécie de borla achatada no alto, coisa de padre, aplaudia com entusiasmo palhaços, trapezistas, mágicos, malabaristas, a cada apresentação. E ria, ria muito, ria com gosto. Era o suficiente para que os meninos da aldeia o reconhecessem “como um dos nossos”.