Desde uma mesa de lanchonete, foi possível observar um rapaz
chegar de mansinho e puxar conversa com a moça que, solitária, ocupava a mesa
ao lado. – Olá, posso sentar um pouquinho? Ela assentiu, tímida, apenas
balançando a cabeça. Mais desenvolto, ele disse: – Linda! Você é linda. Como é
que você se chama? – Guiomar. Meu nome é Guiomar, repetiu. Fingindo
perplexidade, ele retrucou: – Quê que é isso? Ninguém mais se chama “Guiomar”.
Ficou nisso,
porque o garçom chegou com a conta, e a atenção foi para ele, mas a asserção bizarra não se esvaeceu. Mas foi fácil comprovar que, embora não se trate mais de um nome da moda – meninas hoje são batizadas de “Luísa”, “Isabela”, “Ana Carolina”, “Ana Letícia”, por aí – não está totalmente fora de linha como, por exemplo, “Urraca”, que tantas damas portuguesas e castelhanas levaram orgulhosamente em séculos, digamos, “mais pretéritos”. Ainda tem muita “Guiomar”. Só na lista telefônica de BH elas são 98.
porque o garçom chegou com a conta, e a atenção foi para ele, mas a asserção bizarra não se esvaeceu. Mas foi fácil comprovar que, embora não se trate mais de um nome da moda – meninas hoje são batizadas de “Luísa”, “Isabela”, “Ana Carolina”, “Ana Letícia”, por aí – não está totalmente fora de linha como, por exemplo, “Urraca”, que tantas damas portuguesas e castelhanas levaram orgulhosamente em séculos, digamos, “mais pretéritos”. Ainda tem muita “Guiomar”. Só na lista telefônica de BH elas são 98.
Melhor que consultar catálogos, foi aceitar a sugestão de
uma “visita”, ainda que breve, à poesia vital, eterna, de Antonio Machado, de
voltar àqueles versos de seus Provérbios
y cantares XXIX, em Campos de
Castilla, que o cantor Joan Manuel Serrat, com voz poderosa, expandiu até
os limites do Universo:
Caminante, son tus
huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay
camino,
se hace camino al
andar.
Al andar se hace el
camino,
y al volver la vista
atrás
se ve la senda que
nunca
Se ha de volver a
pisar.
Caminante no hay
camino
sino estelas en la
mar.
Depois, sim, as Canciones
de Guiomar, que a gente lê, relê, de novo, e não se cansa de jeito nenhum.
Nome de cancioneiro
“Guiomar” aparece com freqüência em nosso cancioneiro,
inclusive em composições bastante recentes, como no “partido do meu compadre
Nei Lopes”, a canção e o compadre do Zeca Pagodinho: “Num pagode no Salgueiro,
conheci a Guiomar” que “Devagar, bem miudinho, me chamou pra vadiar”. Depois
sumiu e deixou transtornado o pagodeiro: “Já faz tanto tempo, mas, de vez em
quando // Eu acordo chorando, sem saber por que. // Ô Guiomar, Guiomar!”
A canção “Sereia Guiomar”, de Délcio Carvalho e Dona Ivone
Lara, conta história de pescador: “A sereia Guiomar mora em alto mar // E como
é bonito, meu Deus, // O canto dessa sereia.” O problema é que “Manoel pescador
// Ouvindo um canto tão lindo // logo se apaixonou.” E, claro, se afogou.
Só pra dar mais consistência à conversa, segundo o
Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, Guiomar é um prenome feminino da
onomástica portuguesa, e castelhana, por
supuesto, provavelmente de origem germânica, composto de wig e mar, combinação que corresponderia mais ou menos a “célebre
combate”. Desde o Século XIII o nome Guiomar
tem registro em nosso idioma, procedente do francês Guimard.
Admiração de Manrique
É mais do que conhecida a admiração de Antonio Machado por
Don Jorge Manrique, o guerreiro e poeta que distinguiu Guiomar, sua mulher, com
acrósticos e jogos de palavras complicados, de uso cortesão em seu tempo, como
aquele pra lá de artificioso em que “puso el nombre de su esposa, y assimismo
nombrados los linajes de los quatro costados della, que son Castañeda, Ayala,
Silva, Menezes”. Também, apaixonado, dedicou-lhe esparzas, dezyres y canciones. A anotação que segue é apenas para
situá-lo no tempo e no espaço: nasceu por volta de 1440 na vila de Paredes de
Nava, em Palência, e morreu em batalha às portas do castelo de Garci-Muñoz, em
Cuenca no ano de 1475, como valoroso capitão dos Reis Católicos.
Não por acaso, pois, o nome da mulher de Manrique virou pseudônimo
de Pilar de Valderrama, segunda e última paixão na vida de Antonio Machado.
Embora tivessem um envolvimento amoroso totalmente platônico, esse era um
artifício necessário, já que ela era mulher casada quando se conheceram, em 1928.
Assim, duplamente tangido pelos deuses, “Guiomar”, que nome mais afortunado!
Afirmação de Guiomar
Não é de estranhar que houvesse quem achasse que o romance
entre Machado e Guiomar fosse ficção, pura invenção do Poeta. Hoje, porém,
alegra-nos que permaneça por inteiro, vivo, para sempre, nos poemas – ela
também era poeta – e na correspondência que mantiveram ao longo de sete anos.
Só mesmo um evento desastroso como a Guerra Civil poderia levá-lo, como levou,
à ruptura definitiva. Pensar que nunca mais eles puderam ver-se! E doloroso é lembrar
que Machado morreu em 1939, entre refugiados espanhóis na fronteira da França,
no coração a imensa tristeza esmagadora da queda da República e a ausência de
Guiomar.
Pilar sobreviveu de muito a Machado. A morte colheu-a em
1979, aos 81 anos. Pelo menos não lhe negou a oportunidade de, em 1975, ano em
que se celebrou o centenário do Poeta, escrever o livro “Si, soy Guiomar. Memorias de mi vida”, sem quebrar a rígida discrição que sempre se
impuseram. Por expressa recomendação dela, o livro só poderia ser publicado
depois de sua morte e, de fato, veio a público em 1981. Pois é. Nem Pilar de
Valderrama poderia guardar por toda a eternidade um segredo desses, ela, que
mereceu cada verso, cada palavra, que lhe dedicou o Poeta de “Campos de Castilla”, e cada uma
daquelas “Canciones de Guiomar”.
Uma canção à “Guiomar” de cada um
Manrique:
Porque estando él
durmiendo le besó su amiga
Vos cometistes
trayción,
pues me heristes,
durmiendo,
d´una herida
qu´entiendo
el desseo d´otra tal
herida como me distes,
que no la llaga ni mal
ni daño que me
hezistes.
Perdono la muerte mia;
mas con tales
condiciones,
que de tales trayciones
cometáys mil cada dia
pero todas contra mi,
porque, d´aquesta
manera,
no me plaze que otro
muera,
pues que yo lo
merescí.
Fin
Más plazer es que
pesar
herida c´otro mal
sana:
quien durmiendo tanto
gana
nunca deve despertar.
Machado:
Hoy escribo en mil
celda de viajero,
a la hora de una cita
imaginaria.
Rompe el iris al aire
el aguacero,
y al monte su tristeza
planetária.
Sol y campanas en la
vieja torre.
¡Oh tarde viva y quieta
que opuso al “panta
rhei” su “nada corre”,
tarde niña que amaba
su poeta!
¡Y dia adolescente
– ojos claros y
músculos morenos –,
cuando pensaste a
amor, junto a la fuente,
besar tus lábios y
apresar tus senos!
Todo a esta luz de
abril se transparenta;
todo en el hoje de
ayer, el Todavia
que en sus maduras
horas
el tiempo canta y
cuenta,
se funde en una sola
melodia,
que es un coro de
tardes y de auroras.
A ti, Guiomar, esta
nostalgia mia.
Barroca presunção
Manhã e estrela; roseira e joaninha; flor do céu, ligeira
andorinha; lívida ametista, flor de Minas; fada e madrinha, da noite e do dia:
inscrever teu nome entre flores altas, perfumadas, nos jardins de Semíramis, ou
no alabastro claro de uma coluna da rainha Nefertite? Melhor, talvez, entre as esferas
altas onde cintilam a estrela da Sulamita dos Cantares e as de Laura e Beatriz,
a de Maria Bonita...
e reverberam, minha amiga, por artes de Manrique e Machado, as gratas
sonoridades de “Guiomar”! Anseio tolo? Não. Antes, devaneio doido que o afeto
instila. Estro, porém, cadê? (NM)