segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Roteiro lírico, geográfico e sentimental da estante do Ismael Antuña

 O Clube do Livro Aberto – CLA sofreu baixas irreparáveis neste ano de 2022, a mais recente, do Flávio Friche, que foi embora no começo deste mês. Em meados de agosto já nos havia deixado Ismael Barreto Antuña, depois de haver enfrentado insidiosa enfermidade com sua habitual bravura. Enquanto ele esteve conosco cultivou com apreço e generosidade as melhores possibilidades da nossa confraria etílico-literária, cujas tertúlias sempre acolheu com alegria e entusiasmo em sua casa, no espaço cultural “No Pasarán”, assim batizado em homenagem a Dolores Ibarruri, a Pasionária, onde os convivas do CLA, em mais de uma ocasião, foram privilegiados também por muitos refinamentos gastronômicos de Denise. 

Quem viveu as sessões do CLA, intermináveis, teve oportunidade de desfrutar da conversa rica, bem-humorada, alegre, que seu espírito superior jamais sonegou a quem quer que fosse. Sonegar, mesmo, ele sonegou seus escritos, que ainda estariam guardados se seu filho mais velho, também Ismael, não tivesse repassado a este O&B o poema “Roteiro lírico, geográfico e sentimental da minha estante” e umas confissões/revelações que ele consignou como “Algumas notas sobre o autor, que ocupa o honorífico e bem remunerado cargo de Primeiro Ministro Permanente do Clube do Livro Aberto”. O título pomposo foi-lhe outorgado pela autoridade do Flávio Friche e, por pura diversão, ele incorporou. Excelente a remuneração do CLA ao ministro, porém, meramente afetiva.

ESTANTE (I)

Na minha estante só habitam

Santos e Indignados

España em Llamas

Rua da Bahia 884.

Guarda também mapas das ruas das cidades do mundo,

da República Socialista Popular de Belo Horizonte,

dos Estados Unidos da América do Norte,

das Europas y

Astúrias.

Oviedo, Detroit, Amsterdam

e de Madrid.

Aonde vais José?

José Ribamar Ferreira Gullar vomita seu poema sujo de azul

e cavalga los caballos del pueblo:

“A galopar, a galopar,

hasta enterrarlos en el mar”

Uma garrafa de vinho vazia compõe a natureza morta

em minha estante.

ESTANTE (II)

Pela manhã é a melhor hora para se arrumar a estante.

O livro sendo tocado,

trocado de lugar.

E também aqueles pequenos objetos espalhados pelos vãos:

O touro de veludo

(todo corazón arriba!);

O avião de plástico

(que bom! de asa quebrada);

a bandeira.

Afasto um santo de barro da frente de Drummond

(que suspira aliviado)

Arrumação feita,

agora Vinicius conversa com Neruda,

que conversa com Federico,

que conversa com Emílio,

que conversa com Machado,

que conversa com Vinicius.

Drummond me manda uma banana.

Algumas notas sobre o autor, que ocupa o honorífico e bem remunerado cargo de Primeiro Ministro Permanente do Clube do Livro Aberto

Montanhês, nascido em Belo Horizonte, no bairro Bonfim, filho da Rua da Bahia com a Imprensa Oficial.

Ali passou a infância, na fronteira com a Lagoinha, e também na rua Guajajaras, cercanias do Mercado Central. Cursou o primário na Escola de Aperfeiçoamento (entra burro e sai jumento). Antes, aprendeu a colorir com a D. Alice Santiago.

Mais tarde, a família migrou para a Barroca. Foi aluno do Colégio Marconi, do ginásio ao científico, onde punha fogo (literalmente) em salas de aula, nadava e jogava futebol.

Apaixonadíssimo, namorou uma moça (por codinome Denise) durante dez anos. Namorava no centro da cidade – quadrilátero formado pelas ruas Carijós, Curitiba, Tamoios e Av. Paraná – em meio a bondes, transeuntes, procissões, vãos e desvãos de prédios e vitrines, compondo, sem saber, uma lírica e singela poesia urbana.

Casou e gostou. Tanto é, que está casado até hoje. Mas continua namorando a Creusa Denise.
Tudo o que sabe, o que não é muito, mas também não é pouco, aprendeu no balcão da Charutaria Flor de Minas e lendo Monteiro Lobato.

Tido por muitos como advogado, por outros como coronel (da reserva), e por alguns como professor (de matemática e de línguas), até por pastor (de almas), no entanto é engenheiro diplomado. A Cemig pode confirmar.

Na realidade, o que ele queria mesmo ser era engenheiro naval, talvez influenciado pela Emilinha Borba cantando “Cisne Branco” (Qual cisne branco em noite de lua, vou navegando por mar azul...) ou mesmo por sempre ter sido chegado a um risoto de camarão, lulas en su tinte, paellas marineras e que tais.

Passou os cinco anos do curso de engenharia em amenas conversas com diletos e irresponsáveis colegas, entre eles, Nelson Bochechinha, Marcus Vinicius Lopes e Adailton de Alcântara Ferraz – o Francês, conversas sobre cálculo matricial, futebol, política, graças femininas, geometria descritiva, cinema, literatura, pintura, hipérboles e parábolas, pelos diversos bares e cafés da cidade – Paxá, Gruta OK, Elite Velha, Tip-Top. É desse tempo a questão – sem resposta até hoje – “Paralelas se encontram no infinito. E corações aflitos, muito aflitos?” Saudade – como diria Pedro Nava.

Já foi gago, mesário em eleições federais, estaduais e municipais. Pedro I em teatrinho escolar, aluno de piano. Sem traumas.

Fez análise freudiana, porém nunca deitou no Divã de Tamarit. Antes da análise tinha medo do anoitecer, da chamada Hora do Angelus. Hoje é louco por happy-hour. Gosta de beber, não tem importância se sozinho (que no seu caso é com uma verdadeira multidão). Naturalmente whisky (com gelo e água cristal).

Místico de carteirinha, reza e acredita em Anjos da Guarda. Aliás, acha o seu de primeiríssima qualidade.
Torce pelo Botafogo (há mais de 50 anos) e considera o fato uma de suas poucas verdades verdadeiras.
Acompanha o Partidão desde 1955, e continua acompanhando, solidário com “Seu” Olímpio e com Oscar Niemeyer.

Por fim, diz que repetiria tudo o que fez na vida, porém com mais coração, mais Arte e menos siso.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Breve fabulação mais ou menos romântica

– O Grande Pã está morto!

– Jura?

 Do-ré-mi, do-ré-mi, do-ré-mi!!! As esferas escapando-se para a escuridão gélida de lonjuras sem fim. Do-ré-mi, do-ré-mi, retalho de harmonia, vibração ínfima lá longe entre as esferas se escapando que, nem de leve, tocará o espírito dos deuses ou os corações dos homens nem quaisquer sonhos de amor e liberdade que tenham tido. Exorbitado cometa se estrela feito ovo na frigideira contra a Lua, fragor de muitas águas, sideral clarão, prenunciando o Caos Primordial prestes a irromper. 

Em grande desorientação, as Parcas dão voltas em volta da Grande Fogueira da Desordem, mariposas em volta da lâmpada de Adoniran. É menos que metafísico, isso, mas não poderia ser mais aterradora a perspectiva: nada mais para morrer, nem homens nem deuses, nem peixes, nenhuma planta ou animal, todos os espíritos, os bons, os maus, todos mortos. Em lágrimas, elas antecipam a morte da Morte, desmanchando-se em lamentações de verônica: O vos omnes qui transitis per viam...

Nunca mais o azul, nunca mais; flores brancas e violetas dos manacás, nunca mais! Vê-se logo como se assanha o corvo de Allan Pöe. As Fiandeiras conjeturam sem grande consenso sobre o Não-Tempo que se avizinha e apenas tangenciam o Não-Nunca, assim mesmo como impossibilidade. A Parca mais velha:  – Que extravagância! Tempo, Não Tempo, disco! A roda... O Nunca e o Nada para Sempre? Nada e Não-Sempre, hem? Difícil, muito difícil, dialética mais esquisita!  Todos esses paradoxos...

Em devaneio, a mesma Parca: – Não pode ser que em alguma vastidão esquecida pra lá do Cosmo emerjam, de devastador encontro de galáxias, Tempo e Espaço em limitada circunscrição suficientes para o brando ressoar da flauta do Grande Pã? Do-ré-mi, do-ré-mi... Não, não, amigas. Pouco importa que vacile a Eternidade dos deuses se o cataclismo revelar a Grande Cona do Universo para que dê à luz a própria luz do dia, o esplendor da noite, a rubra Aurora, um Planeta azul tal qual o de Gagarin e esplêndida Lua, quatro quartos de sombra e luz, cada um com seu mistério.

Águas, mares, animais grandes, pequenos; em rios encachoeirados, cambevas escorregadias, lambaris, muito peixe em pacatas lagoas verdes; borboletas azuis no escuro de florestas que, talvez, gnomos de orelhas grandes habitem; claros jardins, rosas de muitas cores, néctar, mel, abelhas a zumbir; sanhaços e jabuticabeiras no frescor de altos pomares e, sem descanso, cigarras, o canto chiado;  tzzziiiiiiii-tzzziiii. Os homens, ah, os homens, aptos alguns a instituírem-se em demiurgos e hierofantes para, com recém adquirida consciência da morte, criar novos deuses e erigir seus templos. 

Que, então, a flauta outra vez ressone! Do-ré-mi, do-ré-mi...

Diante da roca: – Até lá, não estaremos todas mortas, de  tédio?

Lançam-se elas três na Fogueira da Desordem e se deixam incinerar.

(NM)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Intempestivo, Flávio Friche foi embora

Ao retornar de pequena viagem, no início desta semana, Danilo Andrade, amigo do blogueiro deu a notícia: – O Flávio... você está sabendo? Claro que não está. Pois é. Nem deu pra lamentar. Permaneceram em silêncio por um tempo, o da reverência, antes de poderem falar da convivência com o grande amigo. Flávio, às vezes, deixava, de propósito, passar a impressão de uma imaginação delirante, mas era de uma lucidez meridiana, que iluminava quaisquer temas que se propusesse a abordar. Como redator, impressionante: podia encher uma página standard de jornal numa única sentada diante de uma “Remington” mecânica. O livro “Escritores Famosos e Autores Anônimos”, que publicou sob o pseudônimo de “Yamanes Gorri”, é leitura edificante e prazerosa.

Como jornalista de ofício e vocação, trabalhou para grandes e pequenas publicações, sempre com
apreço à palavra e à verdade, que não descurou nem nas mais jocosas abordagens a que se permitia nas tertúlias do Clube do Livro Aberto – CLA, que ele inventou e nutriu com espírito generoso e brilhante. Éramos jovens, e Flávio sempre lúdico diante da vida: soube, desde sempre, Schoppenhauer também sabia, que a alegria é o melhor que podemos almejar e cultivou-a mesmo em situações adversas. Felicidade? Não, ele nunca pensou nisso. Contentava-se em levar a vida contente. E levou até o fim.

O CLA? Bom, o CLA nunca passou de uma pequena confraria de amigos a que o Flávio deu corpo e espírito com lastro na palavra escrita ou na conversa fiada. Era também muito comer e beber, senão, convenhamos, não dá pra conversar. Muitas e inesquecíveis tertúlias que Carolina Esser começou a secretariar, isto é, a ler muito compenetrada as atas em estilo macarrônico da sessão anterior, desde seus cinco anos. Geralmente escritas por seu pai, o jornalista Sérgio Esser, ou pelo próprio Flavio, às vezes pelo Carlos Pereira.  Os frequentadores habituais das sessões? Sérgio Esser, Sandra, Carlos Pereira, Célia, Gilmar Vila Nova, Nádia, Marcelo Prates, Daniel Esser, Mariana, Danilo Andrade, Flávio Valle, Juana Friche, Ismael Antuña, Denise, este blogueiro, Rosa e muitos ocasionais. O clima do CLA foi tão bom que, mesmo sem “ter piscina” teve uma longa e alegre existência. Ô, Flávio, muita saudade de todos nós.

 

Na sessão de 3 de maio de 97, na casa do blogueiro, à sua maneira encantadora, Carolina Esser leu uma crônica:

Todos os pássaros

Numa esquina das esquinas de Belô – Bahia com Antônio Albuquerque, ou seria Paraíba com Santa Rita Durão? – difícil estabelecer com precisão, mas não importa, deparei-me com o grande pássaro. Havia uma névoa fina como sede de Samarcanda vestindo a cidade naquele começo de noite. Sem atravessá-la de verdade, uma lua pálida de abril apenas a tornava brilhante, ressaltando as silhuetas dos prédios e transformando em vultos os passantes. Os postes de iluminação ficavam pisca-piscando no meio da bruma como se fossem fantasmas e, por um momento, cheguei a indagar se estava mesmo na nossa cidade amada. Bobagem. É claro que a gente estava.

O grande vulto alado e eu não nos reconhecemos de pronto, mas ele foi se aproximando e a luz fantasmagórica do poste, ajudada por uma dissipadora lufada de vento, nos pôs a conversar como velhos amigos. Ele contou que nem sabia direito por que resolveu sair de seu ninho na montanha para andar pela cidade no meio da neblina. Mas o fato, em si, não chegava a contrariar de todo seus hábitos que, ao seu próprio alvedrio, podiam ser de ave noturna, da aurora ou do dia claro, como ele mesmo admitia com benevolência. Nem me causava espanto, pois as possibilidades são várias, quando estamos diante de realidades ontológicas que estão muito além da ornitologia vã, preocupada apenas em estabelecer axiomas rígidos, em formular postulados que, na prática, atuam como camisas-de-força, justo quando a liberdade nossa repousa, precisamente, na loucura de cada um.

O grande pássaro que, há tantos anos que nem sei, aceita-me como interlocutor, é condor. Mas também é beija-flor, sabiá laranjeira e branca garça. ´, ainda, o pássaro roca, canário, gaivota, corrupião e azulão – porque não?  Ora, guardar essencialidades de cada pássaro é, de fato, ser todos os pássaros, conforme a melhor razão ontológica. Assim, ao falar com o grande pássaro que encontrei na bruma naquele começo de noite numa esquina das esquinas de Belô, sabia que estava falando com o passaredo todo.

Ele ouviu muito e pouco falou, mas esse pássaro vário, plural, todos-os-pássaros é assim mesmo. Perguntei-lhe se ele ainda busca os píncaros da Serra do Curral em noites claras para ficar assuntando, lá daquelas alturas, a azáfama e bulício da nossa cidade. Fez que sim com gesto discreto. Em seguida, pôs-se mais animado e disse que, realmente, gosta de ficar olhando as coisas desde lá de cima, não por presunção ou elitismo, mas para uma percepção de conjunto que não se alcança sem algum distanciamento. Com a visão favorecida que tem, nem um detalhe lhe escapa. Na semana anterior, por exemplo, ele se havia surpreendido com a enormidade de uma correição de formigas lava-pés no Parque Municipal, deslocando-se de um canteiro para outro numa operação tão grande complexa que até sugeria a retirada de Dunquerque.

Do mesmo sítio, o grande pássaro às vezes passa horas, noite adentro, olhando para o céu constelado, perscrutando as vastidões das siderais campinas. Uma vez, lobrigando por uma fresta bem acima da cabeça do Cão Maior, depois de estar muito tempo quedo, fascinado elo esplendor da grande Sirius, viu uma jovem belíssima se banhando num riacho. Todos, homens e aves reconhecem a generosidade do céu e não poupam esforços para visitar as nebulosas, as estrelas, conhecer os desvãos da Via Láctea nem que seja nessas naus que singram de u quadrante a outro os mares dos nossos sonhos. O grande pássaro, ou Todos-os-Pássaros, que encontrei na bruma sempre vai a toda parte, percorre todas as imensidões. E nem se importa se, em muitos lugares nem lhe consigam pronunciar corretamente o nome: Flávio Friche

(NM)

Ser mulher nas sociedades contemporâneas

Nesta semana de grande perda para a confraria do Clube do Livro Aberto - CLA, uma boa notícia: Carolina Esser faz, no próximo dia 15 o lançamento virtual de seu primeiro livro solo. A live acontecerá no seguinte link do youtube: LIVE - Ser mulher: autonomia cognoscitiva nas sociedades contemporâneas

Só para lembrar, a Carol, desde os seus cinco anos de idade assumiu com autoridade e firmeza as responsabilidades de secretária do CLA, no começo com algumas reclamações, todas pertinentes: “Esse clube não tem piscina?”, “Não dá pra fazer as atas sem essas palavras difíceis?”

É claro que foi muito antes dela mudar-se pra China. Aprendeu Mandarim e é a única pessoa que a gente conhece que sabe escrever com aquelas letras de casinhas: seiscentos ideogramas certificados e reconhecidos pela Academia. 

Carol, você é o maior orgulho dos remanescentes do CLA.


terça-feira, 1 de novembro de 2022

A princesa, a vaquinha, os pobres de marrais, marrais

O Natal ainda está longe, mas, vez ou outra, já se pode ouvir “gingobel, gingobel” e decorações temáticas começam a aparecer nas lojas e “shopping centers”.  Difícil saber com certeza, mas a tradição de representar o estábulo de Belém e as figuras que participaram, segundo o Evangelho, do nascimento de Cristo e as cenas que a ele se seguiram, São Francisco quem começou. Teria sido o primeiro a se dar conta do significado das cenas descrita nos Livros: a família humílima, o recém-nascido, a estrela, o anjo, a reverência de pastores, ovelhas... Também dos camelos que, através de extensos areais, chegaram com três potentados do Oriente e suas prendas de ouro, incenso e mirra para honrar a criança. Em tudo, porém, a primazia de pessoas pobres e seus rebanhos parcos.

No Brasil, presépios nas igrejas, nas casas ricas e nas mais humildes chegaram séculos antes das árvores cheias de bolas coloridas do jeito norte-americano de celebrar o Natal. Em nenhum, falta a vaca que se aproxima para aquecer a criança na manjedoura com seu hálito benigno. A vaquinha da Rua Leopoldina, Bairro de Santo Antônio, BH, parece ter saído direto de um presépio para esparzir fluidos benfazejos, como um totem venerando da cidade. Era só um mimo de artistas que, sabe-se lá por que, a fixaram-na ali, há uns quarenta anos e, desde então, ela protege e enfeita a rua com nome da princesa austríaca, imperatriz do Brasil. Dizem que, dela, da princesa, foi o “empurrãozinho” decisivo para que seu marido Pedro, “às margens plácidas do Ipiranga”, lançasse o brado libertador, independência-ou-morte etc. e tal.

Os vizinhos “vestem” a vaquinha com cores de ocasião, que ela incorpora com bonomia e resignação: carnaval, copa do mundo, festas juninas e o que mais. A cara dela é sempre de tranquilidade e gentileza. Agora ela ostenta bandeirinhas de muitas cores, que bem podem corresponder ao momento plural da brasilidade, mas, sem ostentação nem ambição, como se tivesse consciência de sua condição de pobre, pobre “de marrais, marrais, marrais”, como na cantiga de roda, sem por isso se exasperar. É como se subsistissem nela cada palavra do sermão das bem-aventuranças (Mateus 5 – 7), sem perda de poesia nem de substância: benditos os mansos e humildes de coração, benditos os pobres em espírito, porque herdarão a terra (....)

Ego sum pauper, nihil habeo et nihil dabo. Hummm!!! Feito o presépio, um dístico desses seria muito franciscano, mesmo que não tivesse chegado até nós desde a reclusão medieval dos mosteiros. Só uma curiosidade: com a malícia sutil das almas femininas, Eiddy Gorme, voz de anjo, talvez de patativa, replica em versos de Álvaro Carrillo a mesma candura: De mi vida, doy lo bueno. Soy tan pobre, que outra cosa puedo dar?

Versos? De José Marti, o “Maestro” e “Apostol” da independência de Cuba, uns “Versos Sencillos”:

Con los pobres de la tierra

Quiero yo mi suerte echar

El Arroyo de la sierra

Me complace más que el mar.

Agora, porém, é regular a marcha da caravana pelo passo do mais débil, como manda a “sura” do Profeta.

(NM)

domingo, 3 de julho de 2022

De aleivosias, vilipêndios e escárnios

A Biblioteca Nacional sempre distinguiu com a Medalha da Ordem do Mérito do Livro pessoas que contribuíram para a glória de nossa literatura. Agora, porém, descarrilou, e a honraria foi parar no colo de alguém sem qualquer mérito literário, um deputado que se notabilizou por disparar ofensas a torto e a direito, à Justiça e outras instituições, pelas quais foi condenado. O jornalista Reinaldo Azevedo não pôde evitar a ironia: E se o deputado Daniel Silveira, de repente, resolver transformar em bibliotecas estandes de tiro que atravancam seu universo paralelo. Poderia, claro, ocorrer algum tipo de reprimenda, pois há quem encare essas coisas de livro, biblioteca e que tais com desconfiança, gente que, quando calha, queima livros em autos de fé, como no Terceiro Reich.  E tem aquelas imagens assustadoras de Fahrenheit 451, para que a gente não se esqueça que, sempre, pior que o escárnio é a intenção do escárnio.

Os dirigentes da Biblioteca Nacional não explicaram o critério inexplicável: Por onde o agraciado deputado se conecta a quaisquer imanências de uma entidade complexa, inefável, intangível, mas palpável, presente e viva na vida e no coração de cada um? Desgovernada, a instituição sucumbiu ao escárnio, sem levar em conta que Carlos Drummond de Andrade ou o sociólogo Gilberto Freyre, entre tantos escritores e poetas que mereceram a distinção, não podem devolver, como provavelmente gostariam, medalhas, diplomas e tudo. Marco Lucchesi e Antônio Carlos Secchin, escritores de verdade, “imortais” da Academia Brasileira de Letras, estavam aqui, agora, para rechaçar de plano a “honraria”.  

Ufa! Brasileiros agradecem.

(nm)

terça-feira, 17 de maio de 2022

A Serra do Curral contra o Dinheiro do Capeta

Em maio, 2016, O&B postou louvor de muito bem querer a muitas montanhas, para abarcar um grande afeto a todas as montanhas do mundo (Se as montanhas cantam? Sim, elas cantam) *. Não que  não houvesse, então, tribulações, assombros, mas sonhos, quem sabe devaneios, podiam expandir-se em ondas suaves de ternura, muitas garças, muita espuma, velas azuis, estrelas, zum, zum, zum, lá no meio do mar, Elvira, Elvira, não sejas traidora... Em salmodiando assim, ao clarão de branda lua, um sujeito de boa índole podia intuir o amplexo generoso da luz que as montanhas esparzem e das esferas altas, para retornar a corações amáveis como genuíno anseio de liberdade. Zum, zum, zum, lá no meio do mar...

Não estavam à vista essas ameaças terraplanistas à Serra do Curral, grande totem da cidade de Belo Horizonte, seu apanágio primordial, leito e berço de auroras de fogo espevitadoras de cada Estrela da Manhã. Agora, não. Homens crassos, corações toscos, acham que uma montanha a mais ou a menos não faz diferença. Vêm com a licença perversa, maligna, inconcebível, eles, que deveriam cuidar do patrimônio natural, preferem entrega-lo à atividade mineradora, para ser destruído.

Minerar o grande parque da Serra do Curral, secar suas fontes e nascentes de águas claras, devastar a floresta nativa; reduzir tudo a crateras desérticas em que erva não medre e pássaros não cantem mais. Esquilos, tamanduás, tatus, répteis, macacos, capivaras, pacas, jaguatiricas e suçuaranas mensageiras, conhecedoras dos caminhos do infra mundo, cedros, perobas, jequitibás, ipês de esplendoroso florir, o brando lilás da florada dos jacarandás... Para quê? Para quem, se só servem para esconder hematita de riquíssimo teor, oba! E tudo rente a uma grande cidade, custo nenhum com infraestrutura, pois. Bom demais pra ser honesto. Ambição, dinheiro, dinheiro, mais dinheiro, o Dinheiro, prova ontológica da existência do Capeta, segundo Santo Agostinho.

Senhores agentes da devastação, lobbies e apaniguados, o governo leniente, inclusive: Respeitem as montanhas dos outros. Nem pensem em destruir a nossa serra. Pra que a gente não descambe de vez no desaire, que tal irem minerar lá no meio dos quintos dos infernos? É a Serra do Curral, caralho!  (nm)

 

Agora a postagem antiga, só de afeto, de maio de 2016:

Se as montanhas cantam? Sim, elas cantam. (*)

 iQué bien los nombres ponia

Quien puso Sierra Morena

a esta serrania!

     (Antônio Machado)

Cáucaso, acorrentado num rochedo o destino de Prometeu, Ararat, porto e guarida da grande Arca; corte e conselho de deuses muito antigos, o Himalaia; passagem difícil para os elefantes de Aníbal, os Alpes; bijou ao pé do Mont Blanc, Chamonix exibe suas neves, no nome, o ritmo de redondilha. E os Andes, de Tupac Amaru, do lago Titicaca e do Urubamba, Olantaitambo, Machu Picchu, Huayná Picchu? Cordilheira, também, de alpacas e vicunhas, e do condor, sim senhor! Eleva-se na paisagem deslumbrante a “Sentinela de Pedra”, com suas torres brancas e o nome que merece o respeito dos e, na voz do hierofante, alegra mais que um salmo o coração dos deuses:  Aconcágua!                                                                              

Sempre a sonoridade grata, às vezes áspera, branda às vezes, nos nomes que, em toda parte, emergem da Terra ao levantar-se em direção ao céu alto e que se expandem pelo Orbe, música, como se as montanhas cantassem.  Les Pyrenées, os Picos de Europa, a Cordilheira Cantábrica; os Apeninos, montes da Itália e da Lua; e o Olimpo e o Parnaso, onde deuses ainda confraternizem em altas libações, os Cárpatos, os Montes Uralo-Altaicos, The Rocky Mountains, Fujiyama, Momotombo, da Nicarágua, feito o Vesúvio e o Etna é montanha que fuma e deita fogo; os Montes Atlas, Lalla-Kadidja e os demais; o Quilimanjaro, o Monte Quênia, mansão dos ancestrais Quicuios, guia e arrimo dos Mau-Mau. A gente pode até pensar se a glória de Roma seria igual sem a magia de suas colinas, impregnado de poesia o nome de cada uma: Palatino, Quirinal, Aventino, Monte Célio, Viminal, Capitólio, Esquilino... 

A Sierra Maestra acolhe aquele “cierbo herido” de Marti, “que busca en el monte amparo” e muitos cubanos pronunciam seu nome de puro encanto com reverências que só à própria mãe são devidas. “Por la Sierra Morena, a dos mexicanos, Cielito lindo, venian bajando, un par de ojitos negros, (...) de contrabando”; a da Espanha, por direito de poeta, pertence a Antonio Machado, assim como a Gustavo Adolfo Becquer, umas cantábricas peñas... Desde Puertu de Payares a gente avista lá embaixo, resplandecente, o verdor dos vales de Astúrias, um deslumbramento! Guadarrama, Guadarrama, primeira linha de defesa da Madri republicana, suas pedras altas; Sierra Nevada da sultana Aixa, branca Lua de Granada, e de Garcia Lorca, Lorca, e Manolo Caracol!

Repartidora de grandes águas, para o Sul, o Rio Grande, para o Norte, o Rio de São Francisco que, serpeando Nordeste afora, vai saciando muitas sedes, Serra da Canastra! Umas vaquinhas de longos chifres escalavam feito cabras montesas, já faz tempo, as encostas íngremes, para alcançar moitas nativas de capim gordura. Um litro de leite a cada dia, porém riquíssimo, para nutrir sua cria e ensejar o queijo sem igual; uma vaca de estábulo, vinte litros ou mais, porém, queijo nenhum que leve com dignidade o prestígio de seu nome mágico.

Serra do Curral, o grande totem da cidade de Belo Horizonte, da Moeda, Serra do Salitre, Serra do Rola Moça, da Borborema, Serra da Mantiqueira, Morro do Papagaio, Pão de Açucar, Morro da Viúva, Monte Pascoal, Monte Azul, Monte de Vênus, epa! Sem grandes proeminências na Geografia, a Serra da Boa Esperança, “Esperança que encerra (...)”, nos versos de Lamartine eleva-se até as estrelas. Serra do Mar, Serra Geral, dos Órgãos, Serra do Caparaó, o Pico da Bandeira, mais alto do Brasil antes de umas medidas mais recentes darem primazia ao Pico da Neblina de misteriosas brumas, sem desprestígio algum a velhos cadernos escolares ou à memória da infância. Muito menos à professora, que ensinou, está ensinado e muito bem aprendido.

Pico do Itacolomi, “menino de pedra”, “pedra que balança”, em idioma Tupi, ou “farol dos bandeirantes”, totem da antiga Vila Rica e desta Ouro Preto de agora, infestada de turistas, testemunha silenciosa da execução de Felipe dos Santos e de uma onírica conjura de poetas: lirismos arrebatados, Gonzaga, Alvarenga, “Bárbara bela do Norte, Estrela ...”

Com seus foros de cordilheira, ergue-se o Espinhaço por léguas e léguas de longitude, uma tripa, considerando a latitude ínfima; seria todo em Minas, mas não pôde resistir à tentação de esticar-se até a Bahia. Quem é que pode? Manda muitas águas direto para o Mar, mas reserva outras muitas para o São Francisco, que, portentoso esbarro, rebate rumo a seu destino; encrespa e eriça suas pedras pretas nas alturas de Diamantina, tremendo arrepio telúrico orientado todo para o Norte, pente de Minas, magnífico, que gemas preciosas enfeitam, umas grandes, muitas pequenas, xibius.

(nm)

Replico alguns dos comentários que chegaram a O&B, não por jactância de blogueiro, mas como registro do apelo afetivo das montanhas, que a todos alcança e, subliminarmente, da ideia de que cada um tem a sua.

J.D. Vital, por exemplo, reclamou, mas alegrou-se nas lembranças suscitadas: Senti falta da Serra da Cambota, onde fica o Garimpo, a serrania mais fantástica e cantante de Minas Gerais. De lá, você vê a Vila de Cocais a seus pés e, lá longe, a Vila do Curral Del Rey. Você alegrou meu sábado.

Luiz Fernando Perez, que foi embora tão intempestivo, alegrou-se, na ocasião, ante a remissão às montanhas, especialmente as de Minas e da Espanha. Tudo faz com que este sábado de maio seja muito promissor.

Marlyana apenas deixou-se impregnar do halo de afeto: Que texto lindo, Nilseu. Muito lindo mesmo. Montanhas...

O Gerrô foi superlativo, como sempre. Claro que seu entusiasmo é pelas montanhas: Belo, belísimo, Nilseu. Bravo, bravo,bravo!

Em todas as serras que efetivamente pensei, estão lá. Texto leve, trabalhoso. Geograficamente alegre.  O Paulo Sergio foi sutil, comme il faut. Mas, à maneira do Hermes Trismegisto, com um adverbio e um adjetivo fez, talvez, derivar a conversa para uma referência distraída a mons veneris ou àquele pente de pedras do Espinhaço, nas contiguidades de Diamantina.

Angela Leite, sempre atenta às postagens desde O&B, sempre gentil: Viajei por todas essas montanhas e fiquei feliz de terminar a viagem em Diamantina, terra de minha família paterna...

João Lincoln deixou-se enternecer ante as referências à nossa Canastra: aproveitei para viajar nas serras, montanhas e cordilheiras do nosso Planeta.

Para a Heloïse Donnard foi uma remissão telúrica a quem está longe da sua terra e de suas serras: Lindo texto, saudade das montanhas da minha Minas Gerais.

(nm)


 


quinta-feira, 21 de abril de 2022

Um brinde do Clube do Livro Aberto a Carol Esser

Chegou a este O&B, direto da Alemanha, mensagem pascal da Carolina Esser que alegrou o coração dos antigos confrades do Clube do Livro Aberto – C.L.A., uma quase-seita de inspiração etílico-literária de alguns jornalistas e outros amigos, todos apreciadores da palavra ociosa, que tinha no Flávio Friche seu mais insigne hierofante. A Carol, aos cinco anos de idade, assumiu, depois de cada seção do clube, a leitura das atas, tão confusas, apenas reclamando de uma ou outra palavra “muito difícil”. Antes já tinha observado: “Esse clube não tem piscina!” Ela foi, de fato e de direito, a secretária do clube que, enquanto existiu, ela chamava de “Cla”. E foram muitos anos, muitas garrafas, muita conversa fiada...

O Cla reunia-se de tempos em tempos, sem qualquer calendário, à base de aviso na véspera, muitas vezes na casa do jornalista Sérgio Esser, pai da Carol, ou do Carlos Pereira, o “presidente”. Muitas vezes, também, as reuniões do Cla aconteceram no Espaço Cultural “No Pasarán”, âmbito totalmente republicano na casa de Ismael Antuña e Denise. Não pensem que as tertúlias do CLA se esvaiam em vinho tinto, cerveja, uma cachacinha aqui outra ali, scotch, sempre havia quem preferisse, e que tais. O Cla nunca desdenhou da face gourmet da boa existência: grandes macarronadas, churrascos riquíssimos, feijoadas, favadas, pescados aviados das mais diferentes e deliciosas maneiras, cores e sabores inesquecíveis. Sandra, Denise, Célia, Rosa... Elas sempre souberam muito dessas coisas.

Bom. Isso é passado. Nossa secretária, depois de tornar-se uma jurista brilhante, casou e mudou, primeiro para Alemanha, depois para a China, Xangai. Numa de suas vindas a BH, o blogueiro perguntou-lhe sobre aquelas escritinhas de casinhas dos chineses... Ela disse, modestamente, que tinha aprovados e juramentados uns seiscentos ideogramas. Demais, Carol! De volta à Alemanha, retomou sua vida acadêmica, sempre no campo do Direito, e de lá enviou a mensagem que este O&B ora publica: 

Caros amigos,

Acaba de chegar às livrarias o livro "Direito, Democracia, Futuro e Risco". Nesse livro, eu realizei a minha primeira tradução do idioma alemão para o português, de um artigo escrito pelo Professor austríaco Stephan Kirste. Esse trabalho marcou o meu retorno às atividades acadêmicas após o nascimento da Victoria (a filhinha dela) e também o meu primeiro trabalho de tradução originalmente em alemão. Essa parceria ainda resultou no convite para que eu migrasse para o programa de doutorado em Direito na Universidade de Salzburg, na Áustria, sob a orientação do próprio professor Kirste.

O livro, em si, é efeito consolidado de discussões travadas no congresso promovido pela Faculdade de Direito Milton Campos, durante o isolamento em razão da pandemia do covid-19. A coletânea é composta por artigos inéditos que lidam com os desafios da contemporaneidade, tematizam o futuro e perspectivam ressignificar conceitos políticos e jurídicos. Ela também conta com escritos de vários membros diretos da rede do Centro de Studi sul Rischio, fundada na Università del Salento, na Itália.

Eis um link que facilita o acesso ao livro:

https://www.editoradplacido.com.br/direito-democracia-futuro-e-risco

Enfim, vou fazer meu brinde daqui e convido-os a brindarem comigo daí do Brasil!

Abs,

Carol Esser

Prost, Carol!  Parabéns pelo livro. Que bom que o melhor do espírito do Cla se mantém em você. Viva a palavra ociosa na descontração dos convivas e, sempre, viva a palavra escrita!

(nm)


segunda-feira, 18 de abril de 2022

Jankélévitch traduzido

Vinte e nove diálogos entre o filósofo Vladimir Jankélévitch e sua discípula Béatrice Berlowitz, um livro, “Em algum lugar do inacabado”. Vigoroso estudo introdutório de Clovis Salgado Gontijo, que o traduziu para o Português, oferece claves essenciais para que, mesmo um leitor não iniciado no universo jankélévictchiano, possa aventurar-se prazerosamente por seus meandros sutis.

Clovis enriquece a edição com uma profusão de notas pertinentes e esclarecedoras, oferecendo referências que iluminam pontos de sombra que poderiam obscurecer uma leitura cuja atmosfera, por mais brilhante que seja, não é nem poderia ser apolínea. Qualquer abordagem de temas como o tempo e a morte, o tempo da morte, estabelece-se com muito mais critério no ambiente noturno. É claro que Jankélévitch leva tudo como muito brilho e, para isso, não lhe falta gênio, mas é sempre o brilho da noite, cintilares de estrelas, cometas fugazes, precários, como o inefável que ele perseguiu por toda a obra, talvez por toda a sua vida.

Clovis oferece ao leitor lusófono as palavras e o pensamento de Jenkélévitch com elegância e clareza, assim a certeza da morte nossa, de cada um, fora de nosso alcance, porém, o “como”, o “onde” e o “quando”, tudo sujeito à ação do tempo, cuja marcha inexorável podemos intuir, sem, objetivamente, apreendê-lo. A Física reduz o tempo a mera função do espaço e da velocidade, variáveis pra lá de discutíveis, tentativa de compreensão que, em nada, satisfaz os anseios do filósofo. Este se aproxima mais da verdade através de percepções e iluminações que lhe proporcionam a Música, “que se forma de eventos que se sucedem”...

Pois é. Música é nave etérea que, de repente, arrebata e eleva a esferas altíssimas. É o inefável, que em momentos de despojada entrega, um homem puro de coração às vezes chega a tangenciar, à maneira dos santos budistas ou daqueles anacoretas do cristianismo primitivo. Tampouco Jankélévitch abdica da poesia. Na abordagem do dilema da borboleta ao redor da chama, a alegoria é primorosa: conhece-la de fora ignorando seu calor ou consumir-se nela, “ser sem saber ou saber sem ser”.

Na memória do blogueiro emergem reminiscências de antigas leituras daquelas “Dores do Mundo”, de Arthur Schoppenhauer, como a remissão ao   precioso “Silogismo” do poeta catalão Joaquin Bartrina (1850 – 1880):  

Si al ser feliz creo serlo,
    sufro en mi dichoso estado,
    porque me hace desgraciado
    sólo el miedo de perderlo,
    y si estoy bien sin saberlo,
    pues no lo sé, no lo estoy.
    Así, mañana como hoy,
    ser feliz nunca podré,
    pues si lo soy, no lo sé…,
    si lo sé…, ya no lo soy.

Aí, o que temos é a verve amarga, outra literatura, outra metafísica. (nm)

Outro momento feliz da edição portuguesa de “Em algum lugar do inacabado” é a capa, que reproduz "Estreas", litografia de Vassily Kandinsky, de 1938. Como expressão da noite misteriosa e vaga, é imagem perfeita. (nm)

terça-feira, 8 de março de 2022

Viva o Oito de Março, Dia da Mulher (*)

Um blogueiro, distraído, embora o burburinho, o alarido que, desde a Praça da Liberdade se expandia, teria deixado que passasse em vão o Oito de Março. O dia estava quase terminando quando chegou, o texto leve e breve, a mensagem da Alcéa: 

Oh, glorioso Oito de Março que, este ano, muito mais que uma celebração, foi uma conclamação tremenda em manifestações encheram de entusiasmo e fervor as tardes em tantas cidades pelo Brasil e mundo afora, espevitando  consciências, exigindo direitos, sim, mas sobretudo respeito: Dia Internacional da Mulher. Então, viva!

Num dístico do poeta catalão Joaquim Bartrina (1850 – 1880) um tanto fora de contexto, a apropriação caprichosa da homenagem que, singelamente, este O&B, sem saber como, gostaria de fazer, talvez pela profunda convicção de que, ao fim e ao cabo, cada dia desta vida é Dia da Mulher, não é não, meu irmão?

¡Oh! quisiéralo Dios! Entonces fueron

hombres los hombres, las mujeres ángeles."

(*) Flanando pela Savassi neste sábado, dia 12, o blogueiro encontrou-se com o Fernando Fabbrini, que também flanava. Com a habitual lhaneza e bom humor, ele lembrou que o blog havia cometido "um pequeno deslise", antecipando de um mês o Dia Internacional da Mulher, que é celebrado no dia 8 de março e não no dia 8 de fevereiro. Um mês de diferença é quase nada, mas é melhor a gente restabelecer tudo direitinho: é 8 de Março. No mais, é deixar rolar. (nm)




terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

O catador de papel e seus cachorros

Adelmar Correia da Silva, 61 anos, mora sozinho em sua casa no Bairro Goiânia, região Nordeste de BH, na estrada de Sabará: “Minha mulher, Maria Conceição Bomfim, morreu já tem muito tempo. Quando eu era novo, trabalhei com carteira assinada, mas na época do governo Collor a empresa fechou e nunca mais arrumei outro emprego. Sou homem de pouca leitura, quase não sei ler, então é difícil. Tenho um filho de quarenta anos, casado, mas a gente pouco convive. É eu e meus cachorrinhos. Vou fazendo meu trabalho e eles me acompanham cidade afora”. É verdade. Os cachorrinhos o seguem com a devoção própria da espécie pela Savassi e outras áreas de comércio da região central onde, habitualmente, coleta lixo reciclável.

O trabalho de Adelmar é penoso, sobretudo porque o transporte de sua “produção” até o depósito na Rua Itapecerica, Bairro da Lagoinha, para a venda do material recolhido, é feito na carroça pequena, mas não tão leve, cuja tração é ele mesmo, feito um chinês puxando seu riquixá. “Produção”? Sim, posto que ele entrega tudo separadinho, embalado ou empacotado e classificado, para obter uma receita diária que varia de dez a sessenta reais, às vezes um pouco mais. Isso vale pra papel, papelão, garrafas de vidro, plástico, alumínio das latinhas de cerveja e refrigerantes, eventualmente outros metais que, é claro, precisa transportar até o depósito.

Da Savassi à Rua Itapecerica ele demanda hora e meia, duas horas, arrastando sua carroça carregada, muito peso, sempre acompanhado dos cachorrinhos de muita estima:  Sofia, Pirulito, Pretinha, Nina, Ximbica, Chica, Princesa, Bolinha...  Safira também, com sua ninhada de dez filhotes encantadores que, vão na boleia. Todos estão com os certificados de VACINA rigorosamente em dia, bem cuidados e alimentados. Carinho e responsabilidade. Parabéns Adelmar!

Pra ir pra sua casa, no Bairro Goiânia, a carroça já aliviada de sua carga, ele gasta mais de seis horas, enfrentando as ladeiras do trajeto com a força de suas próprias pernas. Quem conhece BH sabe que a topografia não é a mais favorável para esse tipo de jornada. Montanhas, montanhas, orografia caprichosa, sabe como é.  Então, muitas vezes ele desiste de ir pra casa e recolhe-se para passar a noite sob a marquise de uma agência bancária nos inícios da Rua da Bahia, lá embaixo, ele e seus cãezinhos. Perto, um posto de polícia, cujo pessoal acabou por acolhê-los como vizinhos. Sempre tem alguém puxando prosa, oferecendo água e comida para a matilha. Além disso, proporcionam-lhes segurança numa área em que as noites podem ser perigosas, mesmo para quem tem tão pouco ou quase nada para ser roubado.

Ser brasileiro não anda fácil para ninguém. Porém, desamparado completamente da pátria-amada-idolatrada-salve-salve, é admirável que um brasileiro pobre possa encontrar na lealdade e afeto de seus cães o alento necessário para encarar o precário da existência de catador de papel que se empenha em sobreviver como pode, recolhendo material reciclável nas ruas de BH. (nm)

(As fotos são de Cláudio Antuña)

domingo, 6 de fevereiro de 2022

Flores brancas para enfeitar um verão

A querida amiga Maria Luisa enviou-nos flores, primorosas flores brancas de “melocotonero”, “colhidas” nos jardins do Alcázar de Sevilha, que chegam como um pouco da Primavera andaluza, um consolo para os rigores deste nosso Verão de chuvas devastadoras, inundações e desastres. “Pêssego” é uma palavra bonita, que remete à origem pérsica da fruta que os romanos, por a apreciarem tanto, espalharam por toda a Europa, antes que, de caravela, chegasse até aqui. Mas, em “Melocoton”, é mais viva sugestão do sabor inigualável, do sumo e perfume delicados. Só de pronunciar, dá-nos água na boca, “melocoton”, uhmmm! “Pêssego” também é bom e tem lá sua graça em termos de sonoridade, mas deixa escapar uma certa aspereza, quem sabe, por causa do proparoxítono.

Aqui, temos floradas brancas de pessegueiro, porém, mais recorrentes as róseas. As flores do “melocotonero” dos jardins do Alcázar vêm com essa brancura desconcertante de narciso, a calhar para enfeitar um verão insólito. (nm)