terça-feira, 18 de novembro de 2014

Voar é o que importa

Chegou ontem, da África do Sul, e me alegrou, como sempre, mensagem da Sônia Galastro:
“Pedi permissão à minha amiga para enviar-lhe o poema que ela fez inspirada pelo tema de um de nossos saraus: `Voar com asa ferida?´. Esta frase é de um poema do Leminski. Espero que goste.
Sônia”

Gostei sim, Sonel. E me permito postar o texto da Flávia para compartilhá-lo com os amigos de O&B.
(NM)                      
ASA FERIDA 
Habita em mim um pássaro migrante
que anseia flores mas adentra o bosque em chamas.
Visita sombras onde apenas brota o musgo,
velhos dormentes sob trilhos esquecidos,
carrilhões silenciosos onde as horas não ressoam.

Habita em mim um sabiá dolente 
que inveja o rouxinol de colorido canto,
e busca melodias sem queixa, sem lamentos,
bem-te-vi de olhos vendados, cego de horizontes,
pois enxergou demais  e se calou de espanto.

Habita em mim uma andorinha solta,
diversa de outras tantas se movendo em bando.
Seu pouso não disfarça a extensa trajetória 
na rota das mudanças, nuvens passeando...,
das voltas e distâncias já perdeu a conta.

Habita em mim um tiê-sangue agreste,
o rubro peito aceso no desejo à vida.
A sorte se ausentou, o sonho foi desfeito
e ainda assim insiste alçar-se em céu aberto
- sobrevoar desertos mesmo com a asa ferida. 

Flávia
30.10.2014 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Manoel de Barros, Guimarães Rosa, cavalos, passarinhos


Quinta-feira, dia 13, veio a notícia do falecimento, em Campo Grande, MS, do poeta Manoel de Barros. Não chegou a surpreender, porque, aos 97 anos, vinha enfrentando ultimamente graves problemas de saúde, mas, mesmo assim, deixou o travo de tristeza das grandes perdas. Poeta essencial do Brasil, referência espiritual e afetiva de todos nós, ele jamais, com tanta poesia que nos deixa, será de fato uma ausência a lamentar. Antes, lembrá-lo em versos sutis, plenos de alegria e surpresa, versos reveladores de nosso povo, de nossa terra, sempre em conexão com o Universo misterioso e imenso, atento ao galope dos alazões da Aurora. Manoel de Barros, enquanto viveu, foi um grande decifrador de enigmas.

Hoje, O&B repete, para homenageá-lo, postagem do dia 1 de junho de 2011, recuperando momentos da visita que lhe fez lá Pantanal sul mato-grossense outro poeta de sua mesma linhagem, João Guimarães, quando conversaram sobre muitas coisas, também sobre cavalos e passarinhos.

“Quando não sei onde estou, as palavras me acham”
      Manoel de Barros


Em 1953, então já consagrado como autor de “Sagarana”,Guimarães Rosa foi ao Pantanal do Mato Grosso, onde o recebeu ninguém menos que Manoel de Barros. Até os grilos e os sapos pararam um tempo só para ficar ouvindo as conversas deles dois naquele âmbito misterioso e mágico que tem por hierofante e druida precisamente o poeta da “Gramática Expositiva do Chão”.

Manoel de Barros conta como foi o memorável encontro, como se desfrutaram um ao outro os dois grandes poetas brasileiros, obcecados ambos pelas palavras, o pantaneiro assumindo-as mais pelo lado da intuição; mais eruditas, talvez mais “científicas”, as abordagens do sertanejo. Mas aí que está: não discutiram como filólogo de preceito, mas como qualificados amantes da palavra, fazendo daquele encontro algo impossível de ser repetido. Manoel contou ao Rosa que o Pantanal quase teve seu dialeto, mas o isolamento de muitos anos da região estava se acabando muito depressa, estradas, automóveis, rádio, essas coisas. Os modos pantaneiros de falar apenas sobreviviam aqui e ali, numa ou noutra expressão.

Eles andaram falando sobre passarinho, conforme está registrado nas “Conversas por escrito (Entrevistas: 1970 – 1989)”, de Manoel de Barros:

– E passarinho, Manoel?

 Manoel comenta: “Rosa me especulava por trás do couro, como quem sonda urubu. Queria saber de tudo. De avoador, eu disse, só urubu, garça, cracará – esses pássaros grandes. O resto quase é inominado. Passarinho pequeno é passarinho à-toa. Rosa sabia essas coisas, só estava me sondando. Falei para ele. Isso é como a gente não saber o nome de todas as pessoas que vão atravessando o Viaduto do Chá.”

Aí Manoel lembra que “Rosa estrelou sua risada”, antes de dizer: - É isso mesmo, Manoel! É tanta gente que não se sabe o nome. E passarinho é a gente daqui.

Em seguida Rosa perguntou: – E o tordo, qual é a letra do canto que ele canta? A música eu sei de cor, mas a letra eu não sei.

Manoel respondeu: – A letra é assim: “Primo com prima não faz mal, finca, finca...”

E o Rosa: – Oi tordo erótico, Manoel. Os lá de Minas têm mais compostura...

Depois a conversa derivou para exotismo e folclore no Pantanal, e Manoel ponderou ao Rosa:

– Aqui não há nada exótico. (...) O que tem aqui tem em toda parte. Mas de folclore, que é outro departamento, tenho um amigo, Neto Botelho, que sabe das coisas, que informa sobre nosso monumento nessa área que é o cavalo. Cavalo é nosso enfeite, nosso instrumento de trabalho, nosso meio de transporte, nosso amigo, nossa arte. Com ele se ganha o pão, com ele se vai namorar.

E ofereceu ao Rosa um poema do Neto Botelho sobre um cavalo que teve:

“Tive um cavalo ruano
De nome Balança-os-Cachos
De cheirar e mandar guardar
Cavalo de confiana
Pegava em quarenta metros
Galardão de cola e ancas
Um ente desanormal
Coisa de prateleira
Ventena como o fedor
Não foi de ensebar serviços
Nem teve queda pra cangas
Pastor de primeira instância
Cavalo de putear delegado
Livre como as vertentes
Podia até lavar louças
Leve de patas que era
Só faltava ir no cinema.”


Manoel disse que Rosa gostou demais, do cavalo e do poema. Tanto que “tomou nota. Gravou na caderneta”. Parece que, naquele encontro inesquecível lá no Pantanal, as palavras, como sempre, realmente acharam o Poeta, mas então tinham nome e sobrenome: João Guimarães Rosa. (NM)

(P.S) Uma neta de Manoel de Barros consolou-se da grande perda: “Ele virou passarinho”.