domingo, 24 de fevereiro de 2019

Resistir na Arte


Rosa Antuña

Como foi que comecei?
Hummm! Ouvindo Clara Nunes quando era bebê (Obrigada, mãe!). Depois ouvindo aqueles disquinhos de histórias infantis (na hora de dormir), cheios de bom português e músicas excelentes! “Banana” foi a primeira palavra que escrevi, após ter aprendido a ler sozinha, movida pela angústia de pensar que havia coisas à minha volta, combinadas em códigos que eu não compreendia! Desde então, escrevia sem parar. Mas antes de escrever já coloria, desenhava, pintava. Sim. Foi aí que comecei.

Cores no papel. Depois palavras. Depois as histórias criadas com os brinquedos, com toda uma dramaturgia. Depois os teatrinhos onde eu era atriz e era diretora. Só então veio a dança, aos seis anos, e ocupou quase tudo. Estudava ballet clássico, mas, em casa, imitava Michael Jackson dançando. Com catorze anos os poemas vieram reivindicar seu lugar. A música veio aos vinte e dois: maracatu, coco. Com vinte e três a pintura voltou com força total. A Dança sempre.

Mas os textos, poemas, pintura e música iam-se revezando em períodos. Veio a primeira coreografia aos 26 anos. E assim estou até hoje. Dança, Teatro, Música, Poesia, Canto, Dramaturgia, Pandeiro, Coreografia, Pintura. Por aí vou seguindo a vida.

Por que estou falando isso?

Porque Arte é resistência. 

O cachorro e a Fonte


Era uma vez um cachorro maltês que, em manhã de domingo, ensolarada, insólita manhã, buscou refresco e amparo em Fonte clara, no burburinho da Savassi. Ante brancura tão nívea, confundiu-o com Narciso, a clara Fonte, e mimou-o com prendas ternas de águas transparentes, seus frescores, os melhores.
Não vou deixar que morra outra vez.

Feito o cigano do romance de Lorca, o cachorro portou-se como o maltês que era. Só não dá pra saber se não terá cismado se não era casada a Fonte que o mimava. Apenas bebeu. (nm)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Flores, flores, e rios de dor e desolação


Não é longo o trajeto a percorrer desde a Rua da Bahia, pela Rua Antônio de Albuquerque, até a Rua Paraíba, passando pelo cruzamento mágico de ruas e avenidas que os mapas da cidade assinalam como “Praça Diogo de Vasconcelos”, para a gente de BH, apenas de Savassi, nome de antiga padaria que existiu por ali. Quatro ou cinco quadras não são muita coisa, mas a expectativa do chope gelado e bem cortado do Café Três Corações ou do Gujoreba, do pescado do Baiana do Acarajé, entre outras possibilidades daquele entorno, dá uma medida da intensidade dessa passagem feliz. No entanto, o passeante deve manter o espírito, senão atento, pelo menos aberto à poesia circunstante. Florada de muitos tons nas quaresmeiras dos passeios; nas floreiras do calçadão isento de tráfego dos quarteirões fechados, inflorescências de um azul tão suave que enternece o próprio céu e o verão. Na branda contemplação, a memória acolhe, fácil, uns delicados florais de Juan Ramon:

Hoy que se abrieron esta tarde // las rosas de tu rerraza (...)

Entre Levindo Lopes e Sergipe, ergue-se elegante e majestoso pau ferro na direção do céu alto, como se disposto a tocar com sua ramagem verde-escuro, lá em cima, o azul dipinto di blu. Deferência da flora, dignar-se uma árvore dessas a enfrentar conosco as vicissitudes de nossa cidade. Antes que alcancemos a praça propriamente dita, outro monumento, o gigantesco cedro “sete barbas” que sombreia o bronze em tamanho natural do escritor Roberto Drummond contemplando, comprazido, buliçosos ires e vires. Poema vegetal, catedral? Por pura implicância, há alguns anos, a árvore teria sido posta abaixo, não a tivessem defendido bravamente. Ela continua lá, exuberante, impávida, colosso(?), para sempre. Valeu a indignação. Irrelevância? Não sei não. Potencializada a uma escala apropriada, a mesma indignação pode, quem sabe, salvar os rios que estão morrendo e mesmo os que já estão mortos, à espera de uma chance para ressuscitar, e as florestas, o cerrado e tudo o mais.

Flávio Friche, meu irmão! Desistir de nossos rios, abandoná-los? Não. Eis livrá-los de toda lama tóxica, o Rio Doce, o São Francisco, o Paraopeba, e Mariana, o Brumado e, quem sabe, ó, esplendor de ouro e prata, o sonho de piracema em águas ligeiras, límpidas, se escapando do Fecho do Funil! A hora é de espanto e desolação. Como nos versos premonitórios de Eliot (*), anteriores aos massacres de Nanquim, a Guernica, ao Gueto de Varsóvia, a Auschwits, à bomba atômica, aos bombardeios de  Hanói e Haiphong, anteriores, também, é claro, ao descaso, indiferença e ganância da mineração devastadora.  Deixar para traz a planície devastada, o travo de absinto, não tem jeito: “A Ponte de Londres está caindo caindo // Poi s`ascose nel foco gli affina // Quando fiam chelidon – Ó andorinha andorinha (...) com fragmentos tais foi que escorei minhas ruinas (...) Shantih shantih”  (nm)

(*) “A Terra Desolada” (The Waste Land) - 1922

"ESTAS MUITAS MINAS"


Num sábado de sorte, na Rua Antônio de Albuquerque, a gente esbarra por acaso com a poeta Angela  Leite de Souza, autografando os versos de “ESTAS MUITAS MINAS” (Prêmio Casa de las Américas, Havana, 1997), que que acaba de relançar em requintada edição da Miguilim, no calçadão da Livraria da Rua. Para quem estava atrasado para o chope concertado com amigos, foi só cumprimentá-la de longe, porque a fila era grande. Na volta, ao passar pela livraria, o calçadão estava vazio, todos tinham ido embora.

Decorridos uns dias, porém, o correio  Inspiração e sensibilidade mais admirável habilidade e engenho na realização dos poemas sem, em momento algum, escorregar pela ladeira fácil dos estereótipos.  A leitura não pode ser mais prazerosa: emoção, sim, porém com muito comedimento; a graça, muita, é só pra sorrir, nada de gargalhadas, e as tristezas, na poesia de Angela, vêm como um travo discreto, sem exasperações nem exacerbações desesperadas. Cada poema, perfeita metonímia desse estado de espírito esquisito, misterioso, enigmático, indecifrável, não para Angela, chamado Minas Gerais.

generoso trouxe o livro. Isso de receber poesia em domicílio é bom demais. Aí, foi reler com gosto cada poema, apreciar a ourivesaria sutil com que Angela captura nuances recônditas, intangíveis, da alma de Minas (?).

Só pra compartilhar, num poema saboroso a ideia de que embarcar numa estação mineira não é tão simples quanto parece. É bom que a gente não se esqueça de que um trem é uma coisa e vice-versa:   

Perdi o trem
e o medo
de perder,

Perdi o trem
e o medo
de perder
trens.

Perdi o trem
e o medo
de te perder.

Perdi o trem
e o medo
de te perder,
trem!

Perdi o trem
de medo
de te perder.
(nm)