domingo, 18 de março de 2012

Sombras do ocaso com Bolero de Ravel

Os pessoenses admitem sem ressentimento que João Pessoa e, por extensão, a Paraíba toda, são “a sobremesa” do turismo no Nordeste. “O sujeito vai passear em Fortaleza, Natal, Recife e diz: se der tempo, dou uma passadinha na Paraíba, que está logo ali.” E assim é. E os paraibanos sabem tirar partido de seus vizinhos mais afeitos a atrair turistas, e não poupam esforços para oferecer o que têm de melhor: praias lindíssimas, muita luz, claridade, a brisa sempre branda, clima ameno, a harmonia colorida dos sobrados do centro, reminiscências dos séculos XVI e XVII em igrejas e mosteiros e outras edificações, como a que, por um tempo, abrigou o conde holandês Maurício de Nassau.

Agora o seguinte: a gente vai ver um poente sobre o rio Paraíba e espera o entardecer entre quiosques e lojas ao longo de ruazinhas encantadoras na margem oriental, tudo muito colorido, alegre, ruidoso, ruído bom, de música, canções novas e antigas, pessoas dançando, uma festa. Há muita cerveja e a linhagem das cachaças da Paraíba é inesgotável. É a hora pra quem queira provar tapioca, essa massa de farinha de mandioca, tão nordestina, que se dissolve na boca feito hóstia, com recheio doce ou salgado, ao gosto do freguês.

De repente o Sol começa a declinar depressa do outro lado do rio. Aí entre muitas embarcações ancoradas, impõe-se à nossa visão como uma sombra do ocaso, uma pequena canoa, o piloto sentado na popa e, de pé, no meio da embarcação, a silhueta de um homem tocando um saxofone. Um dispositivo de som traz aos bares e restaurantes da orla o Bolero de Ravel, que ele toca com inspirado virtuosismo. É surreal, como surreal é a figura de Jurandir, o saxofonista, ao desembarcar vestido de branco, uma faixa amarela sobre os ombros, no ancoradouro de um restaurante. O público que se apinha nas balaustradas, por toda a orla, se entusiasma, se emociona, aplaude. Com tempo bom, o concerto de Jurandir do Sax repete-se a cada entardecer há dezesseis anos.

Hora de comer, comer

Sobre a mesa, o requinte do pescado fresco, peixes, camarões, lagostas e toda sorte de mariscos, tudo muito bem adereçado segundo padrões da tradição local, mas é possível achar receitas de outras partes do Brasil ou mesmo estrangeiras. No que concerne a carne de bode, que é como chamam os cabritos por lá, os paraibanos aferram-se a modos ancestrais, o que nos favorece tremendamente, porque vem sempre deliciosa. Bom demais. Há um jeito paraibano de preparar a “buchada” que deve ser ótimo para quem gosta do prato. O embutido de vísceras, fígado, coração, rins e o quê mais no estômago do bode é comida que demora pra ficar pronta, mas deixa de água na boca os apreciadores.

História, histórias

A Paraíba é muito rica em História e em histórias, a começar pelo nome de sua capital, fundada em 1585 como Vila de Nossa Senhora das Neves. Nos tempos em que Felipe II da Espanha reinou sobre Portugal e, por extensão, sobre o Brasil, passou a chamar-se Nossa Senhora das Neves Felipeia, nome que, ao tempo das invasões holandesas, foi mudado para “Frederica”, em homenagem a Frederico de Orange. Os holandeses, derrotados em Guararapes, foram embora, voltaram os portugueses, mas o povo paraibano, que nunca assimilara aquilo de “Cidade Frederica”, já estava afeito a chamar a antiga vila de Nossa Senhora das Neves de “Cidade da Parahyba”, nome que persistiu até 1930, quando do triunfo do movimento getulista desencadeado a partir do assassinato do então presidente da Paraíba e candidato a vice-presidente da República na chapa de oposição encabeçada por Getúlio Vargas. Para homenagear o líder assassinado e, claro, fazer propaganda do novo regime, a capital da Paraíba virou “João Pessoa”.

Luiz Gonzaga e o baião famoso

Em 1950, eleições. O Brasil está mergulhado em política, e a Paraíba também. O candidato a senador José Pereira Lira encomendou a Luiz Gonzaga um “jingle” para sua campanha. Em parceria com Humberto Teixeira, o Rei do Baião compôs “Paraíba”, que não deu a vitória ao candidato, mas transformou-se numa canção dessas que o povo brasileiro, de norte a sul, conhece, reconhece, canta e dança, um rematado “cult” nacional:

Paraíba

(Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)

Quando a lama virou pedra
E mandacaru secou
Quando a ribaçã de sede
Bateu asas e voou
Foi aí que eu vim'embora
Carregando a minha dor
Hoje mando um abraço prá ti pequenina
Paraíba masculina
Muié macho sim senhor

Êta pau-pereira
Que em Princesa já roncou
Êta paraíba
Muié macho sim senhor

Êta pau-pereira
Meu bodoque não quebrou
Hoje mando um abraço pra ti pequenina
Paraíba masculina
Muié macho sim senhor
Êta, êta
Mulher macho sim senhor


O xaxado da comadre Sebastiana

A personagem da canção de Dorival, uma vez decidido que iria pra Maracangalha, cogita “convidar Anália”, mas disposta a ir mesmo só, que nem Jó, “se Anália não quiser ir.” Mas é assim mesmo “neste Brasil lindo e trigueiro, terra de samba” e do meu compadre Jackson do Pandeiro, que conta do convite que fez à sua comadre Sebastiana “pra dançar e xaxar na Paraíba”. E conta como ela se entusiasmou, mas “veio com uma dança diferente // E pulava que só uma guariba // E gritava: a, e, i, o, u, y”

Ariano e a Pedra do Reino na Lagoa

A Paraíba dignifica e enriquece o Brasil pela presença pontifical de Ariano Suassuna, hierofante da brasilidade irrenunciável. No Parque Solon de Lucena, um dos cenários urbanos mais bonitos de João Pessoa, o monumento que o povo paraibano consagra ao Romance da Pedra do Reino e a seu autor. A mitologia criada por Ariano emerge à beira da Lagoa em cores vivas e brilhantes com graça e beleza, pura harmonia, numa composição escultórica dessas que a gente olha e diz assim: “Diacho!”
Ô Ariano. Muito obrigado. Que o teu sonho armorial não se desvaneça nunca, e que a bicha Bruzacã não te pegue não!

Tamandaré, Pedro Américo, Caixa d`Água

O povo de João Pessoa se compraz em homenagear seus próceres e artistas em bronze, mármore, essas coisas, para perpetuar sua presença. Em sua própria praça, João Pessoa de dedo em riste reitera a negação de apoio às pretensões de Júlio Prestes. De costas para o mar, na avenida que tem o seu nome, o busto do marquês de Tamandaré, a efígie corresponde à que circulou nas notas de Cr$ 1,00, cabelos desgrenhados, inclusive, ergue os olhos, desde sua herma, para a cidade, para seu Estado da Paraíba e para Brasil. E no olhar do almirante, serenidade e confiança, temor nenhum.
A gente segue av. Epitácio Pessoa até chegar ao centro e à Praça Pedro Américo, o pintor de cenas épicas do Império, “O Grito do Ipiranga”, “A Batalha do Avaí”, entre tantas outras, que tem lá herma e busto, bem imponentes. Do lado de cima da praça, ergue-se em bronze, tamanho natural, como se estivesse passeando por ali, a figura de Caixa d`Água, poeta popular e boêmio conhecido e querido das ruas do centro velho da Cidade da Paraíba, falecido há uns poucos anos.

Poeta à sombra do tamarindo

Quem também está na Praça Pedro Américo, em bronze, claro, é o poeta Augusto dos Anjos, que aos 30 anos, em 1914, morreu em Leopoldina, MG. Sua figura está recostada a um tamarindo estilizado, à sombra de um pé de oiti de verdade; na relva, ao lado, em placa de metal, os versos de “À sombra do tamarindo”, soneto muito bonito, como em geral é a poesia de “Eu”, livro essencial da literatura brasileira, único publicado pelo grande poeta.

Quando, há muito tempo, um blogueiro ocioso compôs sua própria “Tamarindagem”, não foi para comparações descabidas, plenamente consciente de que lá na parte mais alta do panteão dos poetas brasileiros onde Augusto dos Anjos está, é alto demais para ele. Uma coisa é estro, meu irmão, outra é gradação Gay-Lussac.

“Tamarindagem”

À sombra em flor do tamarindeiro, teu colo, meu amor, meu travesseiro. Um afago na face, teus olhos mansos, um estalo no pálato, um travo brando, um beijo, outro beijo, um trago, outro mais... Vida tamarinda, ê, pinga tabaroa! Rico eu não fico, meu amor, mas vou ficando à toa, à sombra em flor...
(NM)