terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

O catador de papel e seus cachorros

Adelmar Correia da Silva, 61 anos, mora sozinho em sua casa no Bairro Goiânia, região Nordeste de BH, na estrada de Sabará: “Minha mulher, Maria Conceição Bomfim, morreu já tem muito tempo. Quando eu era novo, trabalhei com carteira assinada, mas na época do governo Collor a empresa fechou e nunca mais arrumei outro emprego. Sou homem de pouca leitura, quase não sei ler, então é difícil. Tenho um filho de quarenta anos, casado, mas a gente pouco convive. É eu e meus cachorrinhos. Vou fazendo meu trabalho e eles me acompanham cidade afora”. É verdade. Os cachorrinhos o seguem com a devoção própria da espécie pela Savassi e outras áreas de comércio da região central onde, habitualmente, coleta lixo reciclável.

O trabalho de Adelmar é penoso, sobretudo porque o transporte de sua “produção” até o depósito na Rua Itapecerica, Bairro da Lagoinha, para a venda do material recolhido, é feito na carroça pequena, mas não tão leve, cuja tração é ele mesmo, feito um chinês puxando seu riquixá. “Produção”? Sim, posto que ele entrega tudo separadinho, embalado ou empacotado e classificado, para obter uma receita diária que varia de dez a sessenta reais, às vezes um pouco mais. Isso vale pra papel, papelão, garrafas de vidro, plástico, alumínio das latinhas de cerveja e refrigerantes, eventualmente outros metais que, é claro, precisa transportar até o depósito.

Da Savassi à Rua Itapecerica ele demanda hora e meia, duas horas, arrastando sua carroça carregada, muito peso, sempre acompanhado dos cachorrinhos de muita estima:  Sofia, Pirulito, Pretinha, Nina, Ximbica, Chica, Princesa, Bolinha...  Safira também, com sua ninhada de dez filhotes encantadores que, vão na boleia. Todos estão com os certificados de VACINA rigorosamente em dia, bem cuidados e alimentados. Carinho e responsabilidade. Parabéns Adelmar!

Pra ir pra sua casa, no Bairro Goiânia, a carroça já aliviada de sua carga, ele gasta mais de seis horas, enfrentando as ladeiras do trajeto com a força de suas próprias pernas. Quem conhece BH sabe que a topografia não é a mais favorável para esse tipo de jornada. Montanhas, montanhas, orografia caprichosa, sabe como é.  Então, muitas vezes ele desiste de ir pra casa e recolhe-se para passar a noite sob a marquise de uma agência bancária nos inícios da Rua da Bahia, lá embaixo, ele e seus cãezinhos. Perto, um posto de polícia, cujo pessoal acabou por acolhê-los como vizinhos. Sempre tem alguém puxando prosa, oferecendo água e comida para a matilha. Além disso, proporcionam-lhes segurança numa área em que as noites podem ser perigosas, mesmo para quem tem tão pouco ou quase nada para ser roubado.

Ser brasileiro não anda fácil para ninguém. Porém, desamparado completamente da pátria-amada-idolatrada-salve-salve, é admirável que um brasileiro pobre possa encontrar na lealdade e afeto de seus cães o alento necessário para encarar o precário da existência de catador de papel que se empenha em sobreviver como pode, recolhendo material reciclável nas ruas de BH. (nm)

(As fotos são de Cláudio Antuña)

domingo, 6 de fevereiro de 2022

Flores brancas para enfeitar um verão

A querida amiga Maria Luisa enviou-nos flores, primorosas flores brancas de “melocotonero”, “colhidas” nos jardins do Alcázar de Sevilha, que chegam como um pouco da Primavera andaluza, um consolo para os rigores deste nosso Verão de chuvas devastadoras, inundações e desastres. “Pêssego” é uma palavra bonita, que remete à origem pérsica da fruta que os romanos, por a apreciarem tanto, espalharam por toda a Europa, antes que, de caravela, chegasse até aqui. Mas, em “Melocoton”, é mais viva sugestão do sabor inigualável, do sumo e perfume delicados. Só de pronunciar, dá-nos água na boca, “melocoton”, uhmmm! “Pêssego” também é bom e tem lá sua graça em termos de sonoridade, mas deixa escapar uma certa aspereza, quem sabe, por causa do proparoxítono.

Aqui, temos floradas brancas de pessegueiro, porém, mais recorrentes as róseas. As flores do “melocotonero” dos jardins do Alcázar vêm com essa brancura desconcertante de narciso, a calhar para enfeitar um verão insólito. (nm)