sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Saudade, o Plínio foi embora

O sábado que passou tinha tudo para ser um dia aziago. A chuva ainda não se havia decidido a lançar seus consoladores eflúvios sobre BH, ansiosamente esperados depois de meses de secura e canícula, o fogo comendo solto nas serranias do entorno da cidade, castigando flora e fauna; Havia desconforto e apreensão. Aí, logo de manhã, o telefone e a notícia de que, naquela mesma madrugada, o Plínio, Plínio Bossi Barreto, havia ido embora.

Como evitar o grande sentimento de perda? Ninguém evitou nada, mas a ideia do Plínio indo embora ficou claramente dissociada de qualquer tristeza no velório do Cemitério do Bonfim, onde uma legião de amigos e familiares foi se despedir dele. Todos e cada um tinham lembranças boas e alegres do grande jornalista que, caso raro, exerceu, e com a maior dignidade, a sua lide até a noite, aquela noite em que recebeu a visita da Parca. Escreveu sua última crônica logo depois de cerrar-se o crepúsculo dos seus 93 anos.

Ele nunca conheceu qualquer perda de lucidez e manteve intata a memória prodigiosa, no semblante e nos olhos o brilho da inteligência com que terá encarado sem medo uma respeitosa Fiandeira que sabia muito bem que Plínio não tinha medo dela. Como no poema de Geir Campos, pôde apresentar-se diante dela “sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,  (...) a alma limpa, a face descoberta,  aberto o peito, e – expresso documento – a palavra conforme o pensamento.”

Carregou desde sua longínqua infância a paixão do velho bairro da Lagoinha, que expressou em textos memoráveis no livro “LAGOINHA MEU AMOR”, afetuosa metonímia da cidade dos mais belos horizontes. Conhecia, no tempo e no espaço, e se alegrava no amor de BH que, diga-se de passagem, sempre o quis muito bem.

Futebol ocupou muitos anos de sua longa carreira de jornalista, como repórter, redator, editor, o escambau. Em 1976, quando já se ocupava de outras áreas do jornalismo que não o esportivo, publicou, só por desenfado, “Futebol no embalo da nostalgia”, um livro precioso, com histórias impagáveis vivenciadas em anos e anos de experiência e trabalho, entesouradas nos cofres de sua memória de prodígio.

Agora, o seguinte: privilégio era ouvi-lo numa mesa de botequim contanto histórias que só ele era capaz de lembrar, conversas circunstanciadas com a maior precisão quanto a datas e locais com gente que ele teve oportunidade de conhecer ao longo de seus muitos anos de jornalismo, assim, Ary Barroso, Lamartine Babo, Pixinguinha, e a turma do futebol, Zezé Moreira, Telê Santana, Garrincha, e muitas histórias envolvendo Felício Brandi, o grande presidente do Cruzeiro Esporte Clube, seu time do coração. Também da infância na Lagoinha, bairro construído basicamente por imigrantes italianos, incluindo sua família, ele trouxe a irremissível paixão do antigo Palestra, o Cruzeiro de hoje, paixão jamais influiu no rigor profissional com que sempre tratou os fatos e a notícia. Sujeito exemplar, o Plínio! E que jornalista!

Saudade? Claro, muita saudade, de seus amigos, de sua mulher e de seus sete filhos e muitos netos. Mas saudade dessas que vêm devagar, envoltas em lembranças boas e muito afeto. Nem poderia ser de outro modo, posto que, na razão e na emoção, Plínio sempre foi antes de tudo um tremendo afetivo. Ele gostava das pessoas que, talvez por isso mesmo, gostassem tanto dele. (NM)

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Rosa Antuña apresenta “O Vestido” na Casa do Conde


A bailarina e coreógrafa Rosa Antuña apresenta neste final de semana, sábado, dia 8, às 20 h, e domingo, dia 9, às 19 h, o solo “O VESTIDO”, segundo de sua Trilogia do Feminino. A apresentação insere-se no Projeto Ocupação Diálogos da Funarte, no galpão 3 da antiga Casa do Conde (Rua Januária, BH), com ingressos a R$ 5,00 e R$ 2,50.

As fotos são de Marco Aurélio Prates

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Ipês, paus d`arco, não importa: benza Deus!

O&B subestimou, em sua última postagem sobre as floradas, a generosidade dos ipês. Aqueles tons de rosa inacreditáveis, à vezes com tons violáceos, de azul outras vezes, estão por toda parte em BH, embora sem a unanimidade de outros anos. Mesmo na Praça da Liberdade, onde a florada começou tímida, chegou a habitual explosão de cores que,  prenda dos paus d`arco, sempre enfeita e alegra a cidade nesta época do ano. Benza Deus! (NM)
  



















No cruzamento da Rua São Paulo, ali onde a Rua Felipe dos Santos despenca rumo à Praça Camões (Marília de Dirceu) a florada dos paus d`arco converte uma perspectiva banal num vislumbre de pura magia na nossa paisagem urbana. 

sábado, 18 de julho de 2015

Canastra com Mr. Sharif

Fernando Fabbrini (*)

Em homenagem a Omar Sharif, que desembarcou da Nave na semana passada, e atendendo aos pedidos de alguns amigos, segue crônica publicada originalmente no jornal O TEMPO em 16 de março de 97.

Bigode e Magrelo tinham vinte e poucos anos. Eram brasileiros, cabeludos e se diziam hippies. Chegaram à Europa de navio - porque naquele tempo navio era muito mais barato - com mochilas, violões, sonhos de liberdade e alguns trocados no bolso. Em pouco tempo já estavam ganhando uma graninha em boates de segunda, corredores de metrô e arredores das universidades. Pra completar, Magrelo ainda reforçava o orçamento com aulas de bossa nova, acordes dissonantes, macetes e coisa e tal. Em Madri, uma das alunas era Susan, uma americana que adorava o Brasil; tinha morado no Rio com seu marido Pedro, um famoso produtor de cinema da época. Harpista de mão cheia, Susan curtia transcrever para seu instrumento os acordes diferentes que Magrelo sabia. De aula em aula, o casal ficou amigo de Magrelo e sempre o convidava para as festas em sua mansão nos arredores da cidade. Magrelo chegava, tocava o inevitável “Garota de Ipanema” e o jantar estava garantido.

Naquela noite de sábado ia ter mais festa. Magrelo tomou banho, separou o jeans menos sujo, botou seu velho Di Giorgio na surrada capa de lona; conferiu as pesetas para a passagem do metrô e saiu caminhando pela noite gelada. Chegando à mansão, percebeu que a festa seria especial: carros de luxo na porta, motoristas fardados, um agito diferente no ar. No salão imenso, gente finíssima, mulheres lindas em vestidos tão brilhantes quanto decotados, risadas e champanhe em profusão. Susan e Pedro receberam Magrelo com a simpatia habitual:

— Que bom que você veio! Tem alguém aqui que você deve conhecer... – disse Susan, puxando Magrelo pelo braço. Alguém que ele devia conhecer era realmente alguém conhecidíssimo: nada menos que Omar Sharif, o ator de “Doutor Jivago” e “Lawrence da Arábia” em pessoa. Velho amigo do casal, ele estava na Espanha de passagem; foi convidado para a festinha e apareceu, por que não?

Nice to meet you! - disse Sharif, com aquela voz de Hollywood. – Hummm... Brazilian? So, you play canastra, don’t you?

Ora, ora! Que pergunta! Magrelo era viciado em jogo de buraco e no seu similar, a canastra. Faltava um na mesa e lá foi Magrelo fazer dupla com Omar Sharif, deixando o violão num canto. Jogaram a noite inteira e a coalizão egípcio-brasileira estava com sorte. Ganharam várias rodadas. A cada batida, Sharif dava palmadas nas costas de Magrelo, eufórico.
E Magrelo, desinibido por conta do bom uísque que corria solto, devolvia-lhe as gentilezas, como se fosse a coisa mais normal do mundo bater nas costas de Omar Sharif numa mesa de jogo. Fim de noite, Mr. Sharif – empapado de vodca como nos tempos de “Doutor Jivago” – fez questão de abraçar o brasileiro:

You are a wonderful partner, my friend! - disse Omar, cambaleando. Depois, escorando-se numa bela mulher, entrou numa Mercedes-Benz prateada e sumiu na neblina do amanhecer.
Magrelo voltou para o Brasil tempos depois; engordou um pouco, ficou mais velho, ganhou cabelos brancos e continua contando essa história quando alguém lhe pede. Alguns acham que é pura invenção do Magrelo, mas ele nem liga. Já está acostumado.

Nota de O&B – É assim mesmo, Fabbrini. Os bons sempre se encontram, seja numa mesa de boteco ou numa roda de carteado. 


(*) Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália. 

quarta-feira, 1 de julho de 2015

"Não faz mal que amanheça devagar"

Chegou a O&B , enviado por Sônia Galastro, texto de Nazareth Soares, participante ativa e assídua do sarau mensal frequentado por um grupo de mulheres, criado e alentado por ela há muitos anos, quando ainda morava em BH. Sonel, hoje, vive na África do Sul, mas o sarau mantém o fôlego e a vitalidade, graças a possibilidades que vieram com a rede eletrônica, “apesar de algumas das participantes já terem virado história”.

Não faz mal que amanheça devagar

Nazareth Soares

Gostaria que a madrugada demorasse bem a despertar os sinais de passagem de tempo que se mostram no rosto do meu amado. Ultimamente ele tem amanhecido cansado, desiludido consigo mesmo porque vê com tristeza o corpo macilento e as pernas trôpegas.
             
        - Fique um pouco mais na cama, digo a ele. O dia ainda tarda a aparecer. Ele me olha com olhos desapontados e me diz: - quero ver o dia amanhecer aos poucos, quero ver os primeiros raios de sol caírem sobre o gramado do jardim. Não sei quanto tempo tenho ainda para ver esse espetáculo e quero encher os olhos com a suavidade desta hora.
             
        - Tenho médico hoje, não é? Certamente ele irá pedir mais exames e me virará pelo avesso procurando alguma machinha na pele, algum carocinho perdido neste corpo magro.
           
        - Fique mais um pouco na cama, digo, puxando o cobertor sobre o seu peito. 

        - Lembra-se daqueles dias que passamos em Sevilha, ele me diz num tom que em nada combinava com o pouco entusiasmo de antes. Você procurava vestígios do João Cabral, que foi cônsul lá. Você estava certa de que encontraria os poemas dele em alguma livraria e andamos muito atrás de poemas e livros que não encontramos. O calor intenso nos obrigava a parar sempre que encontrávamos um lugarzinho menos cheio de turistas. E quando voltávamos ao hotel, tontos de tanto andar, o sol ainda teimava em iluminar as águas do Guadalquivir e nos fazia sentir, da maneira mais intensa, os  cheiros da Andaluzia. Com os olhos fixos no anoitecer que custava a expulsar as cores da tarde e da cidade, a gente sentou-se num dos muitos bancos à beira do rio e ficamos  relembrando poemas do Cabral sobre Sevilha. A gente ria muito porque o nosso entusiasmo pelos poemas sevilhanos do poeta não nos garantia ter memória para recitá-los. Acho que até chegamos a declamar juntos alguns versos do “Viver Sevilha”. Lembra-se?

Só em Sevilha o corpo está
com todos os sentidos em riste,
sentidos que nem se sabia,
antes de andá-la, que existissem;

sentidos que fundam num só:
viver num só o que nos vive,
que nos dá a mulher de Sevilha
e a cidade ou concha em que vive.

           Enquanto ele buscava na memória os versos do poema, eu cavava outros tão significativos para mim naquele momento.

Se viver-te será curto,
como pequena é Sevilha,
que viver-te seja intenso
carregado qual nova pilha.

(Lições de Sevilha)
           
           Até recordei as brincadeiras que fazíamos vivendo nossa intensa felicidade, amarrando a alegria de viver com versos sevilhanos do Cabral:

Tenho Sevilha em minha cama,
eis que Sevilha se faz carne,
eis-me habitando Sevilha
como é impossível de habitar-se.


(Mulher da Panaderia)

            Ele se lembrou de que, em um daqueles fins de tarde demorados, resolvemos comprar uma garrafa de vinho e ir para o hotel para descansarmos um pouquinho antes do jantar. O vinho pediu umas azeitonas pretas molhadas no azeite e um queijinho memorável. Lembra-se disso? Lembrou-se até de que eu me recostei na cama com os pés quase tocando no chão e que ele ficara folheando o livro do João Cabral. Qual era? Seria “Sevilha andando”?

            Madrugada já quase dia, ele me disse: “ você acordou reclamando de mim por tê-la deixando dormir e perder o jantar naquele restaurante que tinha uma comida deliciosa regada a   danças sevilhanas”. A madrugada caía sobre os jardins do hotel  puxando o sol preguiçoso que já despontava sobre o rio. “Lembra-se de que você se aconchegou melhor na cama, fechou os olhos e perdeu o espetáculo do amanhecer? Perdeu o belo espetáculo daquele dia!”
           
            Olho para ele, tão magro e desamparado, tentando descobrir no seu rosto o entusiasmo que havia visto em Sevilha quando andávamos como dois alucinados pelas becos e vielas da cidade. Tentei buscar vestígios do homem valente que desafiava a autoridade nos tempos do “Violão de rua”, no Rio de Janeiro, entusiasmado pelos movimentos poéticos que explodiam numa cidade ameaçada pela ditadura cruel. Eram os anos 60 e a gente participava ativamente de várias atividades contra o regime imposto pelos militares.

            O “Violão de Rua”, dizem agora os que estudam o período, foi a maior expressão do Romantismo Revolucionário da década de 60. O movimento contou com o apoio de poetas como Geir Campos, Ferreira Goulart, Reynaldo Jardim, Vinícius de Morais, Affonso Romano de Sant’Anna e outros de que não me lembro mais. Para nós, ele era ardor, entusiasmo e esperança de liberdade. Éramos jovens e nosso amor era partilhado com a certeza de que o mundo voltaria a ser melhor porque mais justo.

            Olhando-o tão desamparado ainda na cama, meus olhos retomam cenas daquele tempo: estamos na Avenida Presidente Vargas ouvindo os poetas do Violão de Rua. Geir Campos declama um poema romântico e a gente entende que “Alba” é uma referência simbólica ao amanhã que se projeta nos discursos inflamados dos jovens, nos versos declamados com paixão. O corpo cansado que eu vejo agora estava cheio de vigor. Magro, muito magro, mas forte para as muitas tarefas que fazia. 
           
            Olho para ele com ternura, muita ternura, procurando reconhecer no rosto de hoje os traços do jovem que me conduzia pelas estradas de revoluções que aconteciam em tantos lugares: nos Estados Unidos, com Luther King, em Praga e em Paris, nas ruas cheias de estudantes revoltados.

             Relembro o entusiasmo dele nas passeatas, na distribuição de livros de poemas nas estações de trem, nos pontos de ônibus. Os livrinhos do “Violão de Rua”, agora, na minha imaginação, misturam-se aos poemas de João Cabral sobre Sevilha, aos passos fortes das dançarinas de vestidos rosa forte, amarelo ouro, azul turquesa; pentes imensos nos cabelos, leques e castanholas nas mãos. Misturam-se ao gosto das “tapas”que comíamos pelas ruas de Sevilha.
           
            “Não faz mal que amanheça devagar”, digo baixinho para mim mesma. Ele estará protegido do desatino do dia e do muito que pensa ter tempo de fazer ainda. “Não faz mal que amanheça devagar”, porque teremos tempo para reviver os nossos sonhos distantes, as muitas aventuras que vivemos juntos e, quem sabe, até nos prepararmos para, ao anoitecer, bebermos uma taça de vinho espanhol como nos velhos tempos, lembrando os versos de “Alba” do Geir Campos:


Não faz mal que amanheça devagar,
as flores não têm pressa nem os frutos:
sabem que a vagareza dos minutos
adoça mais o outono por chegar.
Portanto não faz mal que devagar
o dia vença a noite em seus redutos
do leste — o que nos cabe é ter enxutos
os olhos e a intenção de madrugar.



Na evocação do “Operário do canto”

Nazareth trouxe a este blogue lembranças de João Cabral e de Sevilha que enriquecem e alentam, por mais recorrentes que sejam aqui em O&B. A evocação de Geir Campos, tão sumido das súmulas literárias, das tertúlias de botequim, sumido de tudo, surpreende mais e, por isso mesmo, mais alegra o coração. Houve um tempo, porém, que declamar “Da profissão do poeta” , principalmente os versos incluídos por Millor e Milton Rangel no exórdio de “Liberdade, Liberdade”, que a voz portentosa de Paulo Autran levou aos quatro cantos do Brasil, foi realmente impositiva para toda uma geração de brasileiros:

Operário do canto, me apresento
sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
minha alma limpa, a face descoberta,
aberto o peito, e — expresso documento —
a palavra conforme o pensamento.
(...)
Trabalho à noite e sem revezamentos.
Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
sem se tornar com isso menos pura
a voz sobe uma oitava na mistura.
Não canto onde não seja o sonho livre,
onde não haja ouvidos limpos e almas
afeitas a escutar sem preconceito.
Para enganar o tempo ou distrair
criaturas já de si tão mal atentas,
não canto...
Canto apenas quando dança,
nos olhos dos que me ouvem, a esperança.

Mas, aí, vêm aqueles versos emocionantes, pungentes,  versos que, de algum modo suscitam umas vibrações de “As Parcas”, de Hölderlin. O blogueiro se refere a “Questões de Tempo”, um momento particularmente inspirado da poesia de Geir:

Quem perguntará por mim
quando a última passar
com seu facão?
Que mulher grave desfalecerá
vendo apagados meus olhos
na multidão?
Que homem de bem guardará
o adeus meu
seco na palma da mão?
Quem lembrará minha voz
coral ausente
em qualquer canção?
Quem se pagará a herança
inteira ou em pedaços
do meu indivisível coração?
E a quem a flor
de raiz em mim
fará os acenos do não?
 


(NM)

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Inverno, floradas,devastação na Praça

Depois do solstício de junho, registrado e celebrado no dia 21, agora é oficial:  o inverno chegou ao nosso hemisfério, mas, do ponto de vista das temperaturas, chegou indeciso, instável, volúvel, leviano, alternando intempestivamente frio e calor no mesmo dia, na mesma noite, sem preocupar-se em afirmar quaisquer convicções próprias da estação.

Em BH, não fosse pelas informações de folhinha, da Folhinha de Mariana, principalmente, a gente nem notaria a presença dele. O&B, porém, não teria como ignorar sua presença ilustre, não depois da mensagem generosa e estimulante, sobretudo em tempo de muita preguiça, de Luiz Fernando Perez, amigo do blogueiro que, sempre de ânimo compassivo, frequenta o blogue.

“Oi Nilseu,

Nas vésperas do inverno, ainda não tive a satisfação de ler sua inspirada celebração anual para comemorar a floração dos ipês, na despedida do outono. Na Praça da Liberdade, já há manifestações florais discretas, mas estou à espera do grande espetáculo da natureza, que não falha, apesar das agressões humanas. O festival roxo, rosa, branco e amarelo talvez só esteja aguardando seu empurrão poético. Um abraço amigo, LFPerez”

Antes de alcançar os ipês, sobretudo os da família “tabebuya avellanedae”, que, de fato, apenas começam a levar à Praça da Liberdade as cores do inverno, rosa clarinho e aqueles róseos gentis, quase azulados (ainda não chegou a hora do ouro baço dos ipês amarelos), a pequena câmera digital distraiu-se na Praça da Savassi, surpreendida pela florada persistente das quaresmeiras, olhe que a Páscoa já ficou lá atrás, árvores da família das melastomáceas, dos gêneros Tibouchina e Rhynchanthera. Calma, gente! Esses nomes empolados são coisa de cientistas. Elas árvores atendem por “quaresmeiras”, simplesmente, “manacás-da-serra”, sons que contêm muito de sua poesia vegetal. Ó nobilíssimas entidades que carregais todos os tons de violeta, tanto rosa, tanto azul, tons que enfeitam nossas ruas, nossos parques, nossas vidas!

Dois exemplares magníficos estão no umbigo da Savassi, ali onde a Rua Antônio de Albuquerque desemboca na Praça Diogo Vasconcelos propriamente dita, o influxo vital de tantas flores sobre a estátua de bronze do escritor Roberto Drummond, sobre a rua, sobre a praça, sobre a cidade. Lá do alto, até as estrelas se comprazem em seus tons de ametista, topázio, até algum fulgor de rubi, que se combinam e realizam nas cores da Paixão.

Na Praça da Liberdade já há florada de paus d`arco, que, todavia, não chegou unânime nem exuberante demais, como de outras vezes. Talvez os ipês ainda estejam se refazendo do esplendor ostentado ano passado, mas também pode ser cansaço pela utilização demente daquele espaço por gente ensandecida que, mais e mais, em nome de conceitos discutíveis de “revitalização”, saturam a grande praça de Minas de decibéis, decibéis de caixas de som trazidas diretamente do meio dos infernos.

Tudo que é vivo se ressente, goram as ninhadas no arvoredo, pássaros voam pra longe levando seu espanto, pensativas, as árvores tentam resistir. “A praça é do povo”, mas prevalece uma apropriação do decreto de Castro Alves enviesada, favorável a pequenos e grandes vandalismos, o das multidões desgovernadas que chegam com impacto devastador, ou de duas ou três dezenas de pessoas que se revezam passeando com seus cachorros no círculo gramado, uns oito ou dez metros de diâmetro, da fonte da ninfa, o que a grama não pode suportar.


No último sábado, uma senhora, indignada em seus mais de setenta anos, apelava em vão à gentileza urbana do bando de capadócios que nem notava estar destruindo o gramado e defenderam bravamente seu inalienável direito de transformar jardim em deserto. E os cachorros, hem? Uma mocinha, produzidinha, bem falante, prá lá de “fashion”, lembrou com muita autoridade à mulher que reclamou que “cachorro também é humano”, como proclamou, em seu tempo, o ministro Magri. Mas a água da fonte está suja, a grama morrendo, a ninfa, mais uma vez, de braço quebrado. Assim, nem ipê aguenta e, é melhor mesmo que esconda as galas de sua inflorescência. (NM)




segunda-feira, 11 de maio de 2015

A força que elas têm

Um fim de semana atípico: sexta-feira assisti ao show de Monica Salmaso (ao lado de Dori Caymmi) interpretando o incomparável Dorival, Maria Bethânia completando 50 anos de carreira e a interpretação de Rosa Antuña com o espetáculo “A mulher que cuspiu a maçã”. Sábado era dia de Maria Bethânia no show “Abraçar e Agradecer” em que comemora os 50 anos de carreira, que começou lá com a música ‘Carcará’... 
(...)
Domingo, dia das mães. Fim de noite e vou lá para o teatro do CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil para assistir a última apresentação de Rosa Antuña com seu espetáculo “A mulher que cuspiu a maçã”. Não, não há muito o que falar. É preciso assistir para se emocionar do princípio ao fim. Quarenta e cinco minutos de adrenalina e comoção. Como pode uma única criatura em cena transformar a vida num ir e vir de ser e não ter e querer e escolher e pedir e desistir e envolver e sensualizar e jogar o resto da maçã para o ar. Assim é o resumo desse espetáculo. Resumo, repito, pois não há como dimensionar cada gesto, cada olhar, cada ‘suspiração’ dessa bailarina, dançarina, atriz, performer chamada Rosa Antuña.

O palco é dela. Assim como Monica abusa dos graves e Bethânia das emoções, Rosa Antuña se transforma numa artista antenada em seu tempo presente passado futuro. Ela não surgiu agora. Ela mostra que ouviu muito, viu tudo e olha com detalhe a evolução de cada uma de nós. Ela respira vida, transforma o riso em choro, as lágrimas em sal da terra. Foi um fim de semana especial. Conheci e reconheci a força de três mulheres que são assim: de carne, osso e alma. Com silêncio e respeito. Com alegria e dor. Com abraço e agradecimento. Com amor e emoção.

Malluh Praxedes (11-5-2015)


Ainda o solo de Rosa Antuña

Depois de assistir a apresentação do espetáculo solo de Rosa Antuña, “A Mulher que Cuspiu a Maçã”, que emocionou o público que compareceu ao teatro do Centro Cultural Banco do Brasil, no último fim de semana, o Prof. José Maria Santos enviou suas impressões em generosa mensagem que O&B faz questão de postar:

Caro amigo Nilseu,

Escrevo-lhe a fim de agradecer-lhe o presente recebido na forma de um convite para assistir ao espetáculo "A Mulher que Cuspiu a Maçã", apresentado por Rosa Antuña. Fiquei mesmerizado do primeiro ao último minuto. Perfeita é o adjetivo para apropriado para sua performance. Ela demonstrou ser uma artista incrível, capaz de executar um solo de uma hora sem deixar de dominar o espaço do palco por um minuto sequer, usando apenas o corpo como expressão de múltiplas emoções e retirando de um número limitadíssimo de objetos simples (uma necessaire, um par de sapatos, uma escova de dente, uma calcinha sexy e um pedaço de tecido) uma quantidade inacreditável de significados e potencialidades.

Esse é um espetáculo que enobrece o termo "modernidade", tão vilipendiado por fraudes sem conta de pseudoartistas que o usam para justificar suas limitações. Rosa Antuña, ao contrário, é visceral, e por isso nos atinge no âmago com sua ironia, com sua paródia iconoclasta, com sua capacidade de dominar o público o tempo todo com seu olhar cortante como aço, como se exercesse domínio sobre cada um dos espectadores individualmente. Julgo um privilégio ter tão perto de nós uma artista tão linda e com um talento tão extraordinário, acostumados que estamos a ver performances desse nível somente em terras estrangeiras. E foi com o coração acelerado pela emoção do espetáculo que somei meus aplausos espontâneos e incontidos aos dos espectadores que, emocionados, com muita justiça, aplaudiram-na de pé!

José Maria

sábado, 9 de maio de 2015

A fonte misteriosa das poetas

Versos de Consuelo Velazquez e de Maria Grever, damas de bolero, de Dolores Duran, dama de samba-canção, e versos de Florbela. Infeliz Florbela, tão doce e tão amável, no destino de tragédia e no tom da poesia, dama de fado.  

Bésame, bésame mucho,
Como si fuera esta noche
La última vez.
(...)
Piensa que tal vez mañana,
Estaré muy lejos,
Muy lejos de aquí.

                                                                         (Consuelo Velazquez)



Te quiero, dijiste
poniendo mis manos
entre tus manitas
de blanco marfil.

Y sentí en mi pecho
un fuerte latido,
después un suspiro
y luego el chasquido
de un beso febril.

Muñequita linda
de cabellos de oro,
 etc.

(Maria Grever)




A primeira e a última estância materializam-se em formas subjuntivas, as intermediárias vêm totalmente apoiadas numa sucessão de gerúndios que, o mais provável, seria descambar para o enfadonho, mas não é assim. O que temos é um lirismo desconcertante, lirismo de Dolores, brilhos, cores, aromas, texturas, as harmonias mais sutis do sentimento apaixonado. Ah! Dolores!


Hoje, eu quero a rosa mais linda que houver 
Quero a primeira estrela que vier
Para enfeitar a noite do meu bem 


Hoje, eu quero a paz de criança dormindo
E o abandono de flores se abrindo
Para enfeitar a noite do meu bem

Quero, a alegria de um barco voltando
Quero a ternura de mãos se encontrando
Para enfeitar a noite do meu bem

Hoje, eu quero o amor, o amor mais profundo
Eu quero toda a beleza do mundo
Para enfeitar a noite do meu bem

Quero, a alegria de um barco voltando
Quero ternura de mãos se encontrando
Para enfeitar a noite do meu bem

Ai! como esse bem demorou a chegar
Eu já nem sei se terei no olhar
Toda a ternura que eu quero lhe dar

(Dolores Duran)

Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.

E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!

Sinto os passos de Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!

(Florbela Espanca)


O&B acrescenta, um tanto arbitrariamente, uns versos de Angela, Malluh, Sônia, Adriana, Maria Cecília, Alcea, Rosinha, estas, é bem verdade, amigas do blogueiro. não para estabelecer qualquer tipo de contraponto, mas para vislumbrar a possibilidade, tentadora, de uma fonte de muitas intuições, bruxedos, sabe como é, fonte de muitos mistérios, exclusiva das poetas e comum a todas elas. Um espírito distraído pode até a achar que elas não distinguem o real de virtualidades recorrentes, sem dar-se conta de, apenas, não se preocuparem em distinguir. E, no entanto, em seu espelho de palavras, reflete-se todo o non sense das coisas e da vida!

Onde anda o luar
nesta noite escura dentro
de meu coração?
(Angela Leite em “Lição das Horas” - Editora Miguilim)

Eu saí em minha casa procurando por mim. 
No banheiro eu não estava. 
No quarto, também não. 
Talvez na quinta, num bar qualquer (...)
(Malluh Praxedes)

É no repouso da memória
que amanso minha solidão;
reviro meus recônditos,
faço leituras de mim.
Canalizo energias,
volatilizo espaços
e temporalizo rios.
Pensar é também viver
como o agricultor sedentário (*)
que semeia grãos invisíveis.
(Sônia Galastro)

(*) Referência ao rurícola da "Teoria da Viagem - Poética da Geografia" , de Michel Onfray

meça suas palavras, ele disse
medi e eram do tamanho do mundo
não cabiam mais em mim
atravessaram oceanos
e as veias quentes do corpo
saíram pelos poros em meu suor
e desapareceram
como as tardes mornas de dezembro
(Adriana Godoy - Sem rumo)

Lâmpada

Uma janela aberta,
uma lâmpada pendurada
do lado de fora
– cheia de idéias –
e nós, do lado de dentro
olhamos as idéias penduradas
do lado de fora
– cheias de janelas!
(Rosa Antuña Martins)

Entre a pele na mancha:
Repuxam esteios pelos arrepios
Que iludem espaço
Pelo avesso do senso óbvio.
Quinam-se pescoço e queixo-duplo,
Mas antes de alcançar a preguiça
Para arrancar os tecidos já mortos da mucosa
Pelo abaixo que se esteira em bubuias soltas
Formigam-lhe os tendões anestesiados.
(Maria Cecília Rodrigues Campos - In-tenso)

Às vezes não basta ser.
Às vezes ser não basta.
Às vezes precisa-se ser
duas, dez, dúzias,
para se ser uma só.
(...)
Invista em
Ser isto e aquilo
sem pressa e com estilo.
Calmamente, simplesmente,
integralmente SER.
Mulher.
(Alcéa Romano  - Mulher)

Agora sim, um contraponto, este totalmente arbitrário, de Antônio Machado:

En la mar de la mujer
pocos naufragan de noche,
muchos ao amanecer.

(NM)

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Noite inesquecível no CCBB

A estreia de “A mulher que cuspiu a maçã” foi um tremendo “happening”, quarenta e cinco minutos de tirar o fôlego. Rosa Antuña brindou o público que compareceu ao teatro do Centro Cultural do Banco do Brasil, na Praça da Liberdade, em BH, com bom gosto e o melhor de sua técnica refinada. Foram momentos de pura arte, muita arte, inesquecíveis.

O espetáculo será reapresentado hoje (sexta-feira), no sábado e no domingo, sempre às 20 horas. Vale a pena, vale muito a pena, ir ao teatro do CCBB para ver a performance de Rosa Antuña. “A mulher que cuspiu a maçã” é um espetáculo lúcido, brilhante, bonito. Em sua criação e realização, experiência, técnica e sensibilidade, além da genuína vocação de artista de Rosa Antuña. (NM)

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Réquiem por uma mangueira que caiu em Lourdes

Rua da Bahia, entre Antônio Albuquerque e Fernandes Tourinho, na altura que corresponde mais ou menos ao número 2567, Bairro de Lourdes, BH. Os especuladores imobiliários chegaram, compraram a velha e charmosa casa que havia no lugar e, rapidamente, demoliram tudo e transformaram a área em estacionamento, enquanto iam ultimando os meios e os termos para a construção de mais um prédio.

Um enorme pau d´arco guarnecia o acesso ao terreno e, nos fundos, gloriosa remanência dos antigos pomares de Lourdes, uma mangueira de uns oitenta, cem anos, gigantesca catedral verde. A consciência dos homens anda desandada. Ambição, ganância, cupidez, sabe como é. Mas os homens há muito deixaram de ser o centro do Universo, com o qual, aliás, parece terem perdido toda e qualquer conexão, nesta estranha época de indiferença e soberba, preparatória do advento do Capeta e da escuridão irremissível que o Livro das Revelações antecipa.

O ruído exasperante de moto serras começou cedo na manhã da última quarta-feira e, na quinta, ainda persistia implacável, no afã de fragmentar a madeira do que, até a véspera, tinham sido árvores monumentais. Que tristeza! Desde as grades que guarnecem os muros do estacionamento, pombas-trocazes tímidas e amáveis; há muita perplexidade nos olhinhos das pequenas almas aladas, cuja gentileza silvestre não pode compreender a devastação gratuita.Ó espanto, ó desolação!

A consciência dos homens anda desandada, mas a consciência vegetal, de outra ordem, funda-se na paciência e na  generosidade e perde o rumo nem o fulcro. Ela  ainda será gala e ornato deste nosso mundo insensato  mesmo quando os homens tenham consumado seus mais sombrios impulsos de autodestruição.Tanto o pau d`arco quanto a mangueira intuíram, por assim dizer, o que estava por vir e vestiram suas cores mais bonitas para aguardar o desfecho. Primeiro a florada magnífica, depois, os frutos sazonados que, ao serem abatidos por moto serras, entregaram à terra pela última vez . 


(NM)

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Battistella, Jader de Oliveira, Carlos Alberto

Na quarta-feira de 2011 a Parca intempestiva e caprichosa reivindicou para si a  generosidade e o bom humor de Jader de Oliveira, privando de seu convívio a animada tertúlia de incontáveis manhãs de domingo na calçada do Tip Top, na Rua Rio de Janeiro, em BH. No Sábado de Aleluia daquele ano, passado o primeiro impacto da grande perda, este O&B publicou texto ocioso e anacrônico sobre o tango Cuartito Azul, só para evocar momentos bons da presença amiga dele.  Agora, também, a de Carlos Alberto de Barros Santos, com quem compartilhava irremissível preferência pela canção de Mores e Battistella. A reinserção da postagem pode ser só nostalgia de blogueiro, mas também pode ser que não:

Para quem nunca tenha 
lido um verso de Chénier

(Sábado, 23 de abril de 2011)

Em delicada prosopopéia, a personagem que toma por confidente o “Cuartito azul de mi primera pasión”, no tango de Mores e Battistella, abre-se feito se abriria um branco jasmim que exalasse os mais recônditos aromas de seu afeto, depois de sofrer as penas de uma ruptura apenas sugerida, para transformar-se em confortadora nostalgia na memória e na consciência. Mas é uma canção de 1939, e seria de todo impossível justificar o extemporâneo de qualquer discussão, fora de um contexto estrito de história do tango que, aqui, não se aplica. Mas nesta aziaga Semana Santa, na quarta-feira, veio a notícia da partida de nosso amigo Jader de Oliveira. Ele era doido por tangos em geral e, em particular, por esse de Marianito Mores e Mário Battistella, que cantou mais de uma vez em tertúlias no Tip Top. A voz não ajudava muito, mas era afinado e hábil com as inflexões. A preferência por esse tango, compartilhada por Carlos Alberto, de algum modo também explicitava a grande amizade de toda a vida, deles dois.

Agora o seguinte, nesse tango, Battistella e Mores alcançam as mais elevadas esferas da inspiração e da criação. “Cuartito Azul”, a par de canção belíssima é de desconcertante eficácia, fundada sobretudo na metagoge encantadora. É através dela que as nuances do sentimento de um amor arrebatado vão sendo desveladas, contadas/cantadas pela primeira vez pela voz de Ignácio Corsini:



Cuartito azul

Tango - 1939

Música: Mariano Mores
Letra: Mario Battistella

Cuartito azul, dulce morada de mi vida,
fiel testigo de mi tierna juventud,
llegó la hora de la triste despedida,
ya lo ves, todo en el mundo es inquietud.
Ya no soy más aquel muchacho oscuro;
todo un señor desde esta tarde soy.
Sin embargo, cuartito, te lo juro,
nunca estuve tan triste como hoy.

Cuartito azul
de mi primera pasión,
vos guardarás
todo mi corazón.
Si alguna vez
volviera la que amé
vos le dirás
que nunca la olvidé.
Cuartito azul,
hoy te canto mi adiós.
Ya no abriré
tu puerta y tu balcón.

Aquí viví toda mi ardiente fantasia
y al amor con alegria le canté;
aquí fue donde sollozó la amada mía
recitándome los versos de Chénier.
Quizá tendré para enorgullecerme
gloria y honor como nadie alcanzó,
pero nada podrá ya parecerme
tan lindo y tan sincero
como vos.


A partir da sutil invocação do testemunho e cumplicidade de umas paredes pintadas de anil, que, de repente, ganham vida, consciência e plenitude de sentimentos na letra de Battistella, é tudo um espevitar de lembranças e reiteração do amor apaixonado. E há aquela referência a André Chénier, insólita, quase esotérica, que impregna o “cuartito azul” de um lirismo mágico, prenunciador do Romantismo. 

O poeta foi guilhotinado em 1794, durante o Terror, aos 32 anos, dois dias antes que Robespierre, seu algoz, conhecesse a mesma sorte. Argentinos que viveram as primeiras décadas do Século XX sempre estiveram expostos aos influxos da cultura francesa, mas não é abusivo especular, ainda que num âmbito de botequim, que Battistella tenha usado Chénier como cortina de fumaça. Era muito recente, então, o assassinato de Federico Garcia Lorca pelos franquistas, vítima da mesmíssima combinação maligna de radicalismo, intolerância, prepotência e brutalidade. A Argentina de 1939 estava em plena “Década Infame”, governo de Roberto Marcelino Ortiz, muita corrupção, muita repressão. Se tivesse tido oportunidade, teria perguntado a Battistella se, de fato, ele não pretendeu lançar luzes sobre Chénier para projetar a sombra de Lorca... Governantes argentinos, militares ou civis, quanto mais corruptos, mais idolatravam o generalíssimo espanhol e, talvez, não fosse prudente naqueles tempos mencionar diretamente o poeta andaluz.

Mas voltemos ao plano do botequim e ao tipo de conversa que suscita e admite: havia muitas pessoas em torno do chope bem cortado e da cachaça de Salinas do Tip Top, entre as quais muitos leitores vorazes e contumazes que, unanimemente, responderam que não à pergunta “alguém aí já leu Chénier?”

Chega a ser estranho, considerando-se que Chénier está há mais de dois séculos no panteão dos poetas da França, não por seu destino trágico, mas por sua altíssima poesia, que nunca deixou de interessar aos críticos, em seu país e alhures. Mas registro apenas um comentário de Rubén Darío que, com autoridade, dá boa medida das qualificações do poeta: “Entiéndase que nadie ama con más entusiasmo que yo nuestra lengua [...] y que soy enemigo de los que corrompen el idioma; pero desearía para nuestra literatura un renacimiento que tuviera por base el clasicismo puro y marmóreo en la forma, y con pensamientos nuevos; los de Chénier, llevado a mayor altura: arte, arte y arte.”


E para quem nunca tenha lido um verso de Chénier, busquei na Anthologie de la Poésie Française (*), vol. II (De Malherbe à Chénier) uns realmente muito bonitos:

Élégie

André Chénier

Jeune fille, ton coeur avec nous veut se taire.
Tus fuis, tu ne ris plus; rien ne saurait te plaire.
La soie à tes travaux offre en vain des couleurs;
L´aiguille sous tes doigts n`anime plus des fleurs.
Tu n`aime qu´à rever, muette, seule, errante,
Et la rose pâlit sur ta bouche expirante.
Ah! mon oeil est savant et depuis plus d`un jour;
Et ce n`est pas à moi qu`on peut cacher l´amour.
Les belles font aimer; elles aiment. Les belles
Nous charment tous. Heureux qui peut être aimé d`elles!
Sois tendre, même faible; on doit l`être um moment;
Fidèle, si peux. Mais conte-moi comment,
Quel jeune homme aux yeux bleus, empressés, sans audace,
Aux cheveux noirs, au front pleine de charm et de grace...
Tu rougis? On dirait que je t`ai dis ton nome.
Je lê connait pourtant. Autour de ta maison
Cèst lui qui va, qui vient; et laissant ton ouvrage,
Tu vas, sans te montrer, épier son passage.
Il fuit vite; et ton oeil, sur as trace accouru,
Le suit encor logtemps quand il a disparu.
Certe, en ce bois voisin ou trois fêtes brillantes,
Nul na as noble aisance et son habile main
À soumettre un coursier aux volontés du frein.


(*) Éditions Bernard Valiquette – Montreal

(NM)