segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Ouvir o que vale a pena ouvir

Nilseu,

Clóvis está escrevendo e descansando em Monte Alegre do Sul, SP, e está encantado com o lugar. Na viagem de ida, precisou pegar quatro ônibus. No primeiro, de BH a Três Corações, teve como companheiro de assento um senhor que vinha do Mato Grosso, e foi sobre esse encontro que ele escreveu.

Marilia

Clovis Salgado Gontijo Oliveira 

Apesar de um pouco longa, gostaria de partilhar esta reflexão com os amigos andarilhos e com aqueles que acompanham minhas buscas e andanças.

Chi son? Sono un poeta.
Che cosa faccio? Scrivo.
E come vivo? Vivo.


Quando criança gostava de cantar este trecho da célebre ária de Puccini. Décadas depois, continuo a entoar as mesmas perguntas. Outras, nesse meio tempo, descobri em mim. As antigas tinham então respostas curtas e simples, como a própria infância. Hoje, mais que poeta, sou peregrino. O que faço? Caminho. Minha identidade é a busca, a pergunta. Empreendo a marcha para colher respostas. Nesta, como em outras caminhadas, fecho a porta para subir a montanha. Quero estar a sós com as minhas perguntas. Temo a chegada de outras. Há tempo de perguntar e há tempo de responder. Ilusão? Estas palavras o sábio não diz. Mas assim quero crer, para não me perder.

Faço uma pausa na travessia extenuante da vida, mudo de direção, busco uma canção capaz de embalar os meus passos pelo percurso rumo a um “por quê?” talvez sem resposta. Warum? Em outras viagens, acreditei, por angústia ou tentação, nos “oráculos tagarelas”. Incoerência de quem ainda não havia provado e comprovado uma de suas principais matérias de estudo, com fortes ressonâncias na vida: só como graça as respostas são colhidas. De onde então elas vêm? Do silêncio de Deus ou do piar das andorinhas?

Após algumas caminhadas, sei que, quando sintonizado com a minha “solidão sonora”, sou capaz de reconhecer certas fontes de paz. Contudo, também há a resposta que, inesperada, brota da voz do próximo. Se conservo um par de ilusões, outras já perdi. Não sem tropeços, agora sei que as respostas não são pedras prontas a nos aguardar por séculos ao longo da vereda. Há pedras que só se cristalizam a quatro mãos, a duas vozes. Mal ponho o pé na estrada, uma nova voz se apresenta. Seu sotaque gaúcho me acompanha da capital a Três Corações. Quatro horas partindo do mais superficial com destino ao mais profundo.

  Viemos combinando a camisa.

Falou da longa viagem que acabara de fazer, do trabalho, da cidade natal, da mudança a terras mato-grossenses e, até mesmo, de um risco corrido na infância. Mencionou, logo de início, ter tido três filhos: um rapaz e duas moças. Fazia exatamente nove anos que o primeiro, o mais velho, havia deixado este mundo. Precisaríamos de alguns quilômetros de confiança para que aquele senhor de 68 anos desvelasse algo da sua dor maior. Certamente se abriu por encontrar no companheiro de viagem alguns traços do filho: nascido apenas dois anos antes de mim, também fora professor e nunca se interessara em dirigir. Mas, rodovia afora, não só ele se abria. Coloquei-o a par dos meus projetos, relatei frustrações, temores, conquistas, novos desafios. Sentindo, como bom pai, uma lacuna na minha fala, lançou-me a pergunta decisiva. A sua viagem já chegava ao fim. Com sinceridade, respondi e me justifiquei. Refletiu por alguns instantes e, por fim, ponderou:

  Deus nos deu a audição para ouvirmos o que vale a pena. Este é o sábio.

O tempo se estendeu à medida que o motorista reduzia a marcha. Às vezes a colheita mais fecunda se dá no prelúdio da jornada. Apertei com gratidão a sua mão e, emocionado, vi as lágrimas clarearem o azul escuro dos seus olhos miúdos. Ainda acenei para ele da janela do ônibus, enquanto, afobado, remexia com a outra mão a mochila, procurando onde registrar tão precisas palavras. Também desejo ouvir – e, se possível, voltar a ouvir – o que vale a pena. Sinto que a resposta do pai não havia sido pedra pronta. Este é o sábio. E este foi um encontro.
Assim se constroem as respostas para as perguntas que hoje canto.

14 de janeiro de 2018

domingo, 14 de janeiro de 2018

"Piropo" é "piropo", assédio é assédio

Pitigrilli (Dino Segrè) escreveu, em crônica antológica no início dos ano 50, que piropo é uma das mais bonitas palavras da língua espanhola: “Como o piropo, uma espécie de granada resplandecente, com reflexos de chama, esta palavra contém a solidez do mineral e a luz variável do Sol. É uma das mais belas expressões da língua espanhola, dizia eu, no sentido figurado. O seu equivalente italiano complimento, o francês compliment, estão viciados por um defeito constitucional, que certo etimologista original fazia derivar do latim complete mentiri, mentir completamente.”

O escritor acrescenta que piropo “é a primeira palavra que desperta a atenção da bela europeia desembarcada em Buenos Aires. Palavra cálida, luminosa, sonora, que um imaginativo mal informado em matéria de mineralogia poderia confundir com uma flor rubra e amarela, perfumada como um cravo, grande como um crisântemo e atormentada como uma orquídea. Josephine Baker, que neste momento canta suas canções no Rio da Prata, já se apaixonou por esta palavra, que pronuncia à francesa: Pirhopô.”

Como é bonito um pirhopô! teria dito a cantora.

Na paráfrase famosa do poema de Amado Nervo, Le Pera alinha uma delicada sucessão de piropos, como o que se segue: El día que me quieras // Endulzará sus cuerdas // El pájaro cantor. Em "Maria Bonita", Agustin Lara lembra haver adulado Maria Felix com piropos: Te dije muchas palabras, // de esas bonitas con que se arullan los corazones. Muitos piropos, também, na canção  “Maria Dolores”: (...) en tus ojos, en vez de mirada, hay rayos de sol (...) Te mueves mejor que las olas  (...) Envidia te tienen las flores (...) etc., tudo da lavra feminina de Sarita Montiel que, ao fim e ao cabo, renuncia à pluralidade pela unidade monolítica da própria canção que compôs: Y en vez de decirte un piropo, María Dolores, // Te canto un bolero. Talvez mais que a Maria Dolores, Sarita tenha merecido ao longo de sua vida intensa, incontáveis piropos, de Gary Cooper, Hemingway, Indalécio Prieto, o líder socialista espanhol em seu exílio republicano no México, James Dean... Na foto, comprazida, talvez ouvisse piropos do ícone da juventude transviada. Porém, nenhum mais tremendo que aquele do poeta León Felipe:

La Mancha en tí, mujer, y en mi corazón el dardo.

Loura, lourinha, de olhos claros de cristal, // Desta vez, em vez da moreninha, // Tu serás rainha do meu carnaval, piropo bonito, do Braguinha. Antes ele já viera com aquilo de Linda morena que me faz penar, // a lua cheia, que tanto brilha // não brilha tanto quanto o teu olhar.

Aqui, meramente diamante pequeno, mineral, portanto, como a granada, e que também carrega sua fração de Sol, pura luz, um insólito xibiu de palavras apócrifas de grande circulação nos anos 60:

Se cada vez que pensasse em você,
caísse um pedaço de mim,
cadê eu!

As mulheres desses nossos tempos estranhos, como as do século passado, sabem distinguir um piropo para não renunciarem a galanterias a que têm direito. E não precisam de juízos fundamentalistas para reconhecer e repudiar manifestações insultuosas ou assédios grotescos ou brutais, capitulados no Código Penal e que não podem ser postos no mesmo plano do cumprimento devido, compliment, complimento. Ora! Piropo é piropo, afaga o espírito e alegra o coração. Assédio molesta, chateia, ofende e fere, cruz credo! (nm)