sábado, 5 de junho de 2021

Tempo de cantar

Quem pôde ouvir a voz de Paulo Autran declamando “Da Profissão de Poeta”, de Geir Campos, em vivenciou, naquele idos de 1965, quando o regime militar ainda não tinha alcançado a plenitude de suas pretensões, um happening inesquecível. O contexto? “Liberdade Liberdade”, de Flávio Rangel e Millor Fernandes. Foi como se o próprio Zeus Tonante quisesse expandir até as esferas altas uma exaltação tão tremenda que tocasse o coração das Musas, mas era puro louvor, louvor apaixonado, à liberdade.

Foi um pouco assim, lembram-se?

(...) Fui chamado a cantar e para tanto há um mar de som no búzio do meu canto.      (...) Se há mais quem cante, cantaremos juntos (**)                                                                                                            

(...) Não canto onde não seja a boca livre. // Onde não haja ouvidos limpos e almas // afeitas a escutar sem preconceito. // Para enganar o tempo – ou distrair criaturas já de si tal mal atentas, // não canto... Canto apenas quando dança. // nos olhos dos que me ouvem, a esperança.

(**) Numa canção que andou em voga em seu momento e em seu lugar, o violeiro Carreirinho cantou que “A moda de um triste assunto // não adianta cantar junto” (...)

Pra que serve o bom e velho Livro da Cabala, senão pra contextualizar incongruências? O que está acima, está embaixo, o que está dentro está fora e por aí vai. Um canta, todos cantam, E pluribus unum. E a Dolores Duran, hem? Pura exaltação do Amor que, como nenhuma outra entidade, potencializa a Liberdade, e vice-versa. “Hoje, eu quero a rosa mais linda que houver // E a primeira estrela que vier // para enfeitar a noite do meu bem”.

Porém, isso de cantar, às vezes, muitas vezes, enfastia, e o sujeito precisa sucumbir ao chamado da Poesia para não perder a perspectiva brechtiana: Nos tempos sombrios, // Se cantará também? // Também se cantará // Sobre os tempos sombrios. (nm)

 Clóvis Salgado Gontijo (*) sucumbe à Poesia, às vezes cáustica, mas asi és la vida Federico:

 

Não dou o braço a ninguém.

Ralentar meu passo para apoiar o velho alquebrado?

Jamais.

Torço o punho e acelero.

Acompanhe-me quem puder.

No meu exército só entram machos.

Aqui os fracos não têm vez.

Tomem suas motocicletas e sigam-me.

Estou farto de frescuras.

Não cubram o rosto, nem sequer com capacetes.

Deem às máscaras outra serventia:

Tampem com elas suas placas,

pois nem todos os meus súditos desligaram

os ferrugentos radares deste império.

Não acreditem, ordeno, que haja algo a temer.

Se ouvirem tossem, gemidos, prantos, sirenes,

aumentem o ronco do motor.

Sejam invencíveis como eu,

como minha prole que reina na garupa,

enquanto ainda me refestelo no trono.

No fundo, sei que meu tempo há de passar.

Assim, que seja profundo o rastro desta devastação!

Deixem-me voar,

deixem-me gozar,

senão da dor alheia,

das divisões que logrei semear.

Eis a minha única conquista.

Acelerem comigo, vestidos de verde e amarelo,

confesso que tenho medo de fraquejar.

A velocidade sobre duas rodas

mascara meu andar trôpego em outros caminhos.

Como todos os homens,

também preciso de um braço,

mas o meu, não o darei a torcer.

Aceleremos juntos,

Sem abraços, sem toques.

Preciso prevenir a solidariedade.

Na comitiva da virulência

É cada um por si

E Deus por todos.

Sim, Deus me livre de omitir,

ao fim de um discurso,

o seu nome acima de todos,

no qual custaria a acreditar

se hoje eu não estivesse acima de tantos.

(*)  Clóvis é professor assistente da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), com dupla formação em Música e Filosofia: cursou bacharelado em Música pela Faculdade Santa Marcelina, SP, e em Filosofia pela FAJE; mestrado em Música pela TCU, EUA e doutorado em Estética pela Universidade do Chile. Entre outras obras, é autor de “Ressonâncias Noturnas”