quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Em Santa Tereza, cerveja

Dia desses, encontrei-me na fila de autógrafos do livro “Bandeiras de Minas”, dos jornalistas Airton Guimarães e Taquinho, com a também jornalista Eliza Peixoto, que não via há muitos anos. Pedi-lhe um endereço eletrônico que pudesse agregar à lista de contatos deste O&B, que ela passou-me protamente, com o do sítio “Santa Tereza Tem” (www.santaterezatem.com.br a que vem se dedicando com energia e sensibilidade. O sítio oferece história, histórias, tradição, arte, comércio, restaurantes, festejos, carnavalescos inclusive, tudo de bom, enfim, que a gente pode encontrar no velho e charmoso bairro  da região Leste de BH. E, assim, em águas virtuais navegar, navegar, navegar por Santé, nela passear.

Agora o seguinte: pra tomar uma cerveja e saborear ricos tira-gostos em bares como o “Temático”, por exemplo, o jeito é comparecer  pessoalmente. Para um blogueiro mais ou menos incrustado no burburinho da Savassi, se for em companhia, fidalga e sempre amiga, boa companhia, Luiz Fernando Perez, Perão,  Danilo Andrade, Ivan Drummond,  Wanderley Panther,  Cristina Crocco, da Tecris, Marina, gente do bairro ou aficionados irredutívels de Santé, é muito melhor.

(NM) 


A foto do “Temático” é do Toninho Almada

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Em frente à Biblioteca, Quatro Cavaleiros

Foi muito celebrada a passagem, em outubro, dos 90 anos de nascimento do escritor Fernando Sabino, autor do sempre celebrado “Encontro Marcado”. A badalação apenas tornou inevitável a foto dos “Quatro Cavaleiros do Apocalipse”, Sabino, Otto Lara, Pellegrino e Paulo Mendes Campos, figurados em bronze em frente à Biblioteca Pública, em BH. É coisa recente, pois o grupo de estátuas esteve, antes, no pequeno jardim implantado no pátio da antiga Secretaria de Educação, dando acesso, sob o anexo da Biblioteca, da Rua da Bahia para a Praça da Liberdade. Sabino e Otto estão sentados num banco dos mais prosaicos, Pellegrino e Paulo Mendes Campos estão de pé.

Os quatro merecem o reconhecimento e a simpática homenagem, mas aquelas  estátuas  se salvam mais pela interação cordial entre elas, que acaba envolvendo os curiosos que se aproximem. Figuras assim, acadêmicas, podem parecer anacrônicas na cidade de Alfredo Ceschiatti. É o mesmo caso dos bronzes de Pedro Nava e Carlos Drummond na pracinha à sombra art-déco do velho Teatro Municipal, atualmente uma agência enorme do Bradesco. Como as Roberto Drummond e da poeta Henriqueta Lisboa, na Savassi, as estátuas sugerem reproduções de photoshop. É tudo muito bom, detalhadinho,  à vontade, natural, mas é no detalhe que resvalam no kitsch. Como no fox de Mário Lago / Orlando Silva, o livrinho que cada uma carrega “é demais para o meu coração”.

Parece que estamos diante de uma fórmula inspirada na estátua de Fernando Pessoa em frente à “Brasileira”, em Lisboa, monumento de passado um pouco mais pretérito. Como arte de estatuária, o busto do escritor  Bernardo Guimarães (Escrava Isaura, O Garimpeiro, O Elixir do Pajé,êpa! ) que também tem sua herma na Praça da Liberdade há mais tempo, é muito mais expressivo. As novas composições, porém, com livrinho e tudo, têm sua eficácia, sobretudo junto às crianças, talvez pela encenação algo naïf,  que lhes permite, e também a adultos de espírito mais lúdico, inventar brincadeiras e formas de interagir com as estátuas.
Em manhã clara de domingo, blogueiro ocioso se intruja na placidez nada apocalíptica dos insólitos cavaleiros, em sua presumível conversa fiada, mas não dá palpite, fica só assuntando. Uma garotinha que passava no momento da foto apontou com o dedo e perguntou à jovem mulher que lhe segurava a outra mão, “Mamãe, o quê que é isso?”.
Com essa indagação veio à lembrança o refrão do Caxangá, cantador e repentista que manteve, nos anos 70 e 80, programa de cantoria de muita audiência na Rádio Itatiaia, aqui mesmo e BH: “Eu vi um nêgo sentado // no bueiro da osina, //  de chapéu de panamá, de casaca e de botina. “ Não há “osina” nem bueiro, casaca e botina também não há, só um neguim sentado. E o chapéu de panamá.

Não é o caso ser rebarbativo. É bom lembrar e celebrar  nossos artistas e heróis. Heróis? Vamos tentar esquecer o Tiradentes de bronze do cruzamento das avenidas Brasil e Afonso Pena, que mais parece um Rasputin de filme “c”, a túnica horrorosa de condenado, crucifixo preso à cintura para consolar sua fé na hora patibular, as barbas enormes, aquela corda no pescoço de quem se dirige à forca devidamente equipado... Ao “artista” que realizou o monumento, ou a quem o encomendou, não ocorreu representar o herói da Inconfidência na gala de sua juventude de alferes, de preferência montado em cavalo bom. Optou-se pelo patético. Quê fazer?

Paulo Mendes Campos, a vida, a Parca, Alice

Uma vez o Roberto Drummond, que tinha na mais alta conta a literatura de Fernando Sabino, tentou convencer-me de que o “Encontro Marcado” era uma obra essencial, para ser lida por todo brasileiro alfabetizado. Foi numa noite, na redação de jornal em que ambos trabalhávamos. Ele me apresentou Geraldo Boi, o tipo bizarro que teria inspirado o protagonista de “O Grande Mentecapto”. A figura não me causou a menor impressão, e jamais li livro algum de Fernando Sabino.

Daqueles “Quatro Cavaleiros do Apocalipse”, a memória afetiva de leitor só guardou registro de Paulo Mendes Campos, iluminado nas tertúlias dominicais do Tip Top por Carlos Alberto de Barros Santos, que teve trato e convívio com o grande cronista, e autoridade para, em mais de uma ocasião, falar com entusiasmo da sua arte de escrever, que  tangenciava as estrelas, de tão alta! Uma ou outra vez mencionou aspectos mais atribulados da vida do escritor,  a alma atormentada por demônios que jamais conseguiu exorcismar. Tão afetuoso e reverente era o tom dessas referências que todos os que pudemos desfrutá-las, de um modo ou de outro, nos deixávamos impregnar do mesmo afeto. Do Otto Lara, alguma pala dessas que, de vez em quando, alguém repete: “Mineiro só é solidário no câncer”; de Pellegrino, nada. Para a geração que veio “Caminhando contra o vento, // sem lenço e sem documento”, isso tudo estava distante demais.

Depois de um domingo dos domingos do Tip Top, Carlos Alberto mandou-me uma carta em que relatava o ultimo encontro que teve, aqui mesmo em BH, com Paulo Mendes Campos. Foi em agosto de 2008 e, então, O&B nem existia. Em 2010, já com o blogue na rede, perguntei-lhe se podia postá-la e ele aquiesceu, mas, com modéstia, disse tratar-se não de uma crônica sobre o cronista, mas de um bilhete para encaminhar-me a belíssima paráfrase que PMC fez de Lewis Carroll em “Para Maria da Graça”. E fez outra ressalva: “O Paulo foi descrito no texto na fase outonal da vida. Sempre foi amigo do copo, mas a amargura de que falo surgiu por volta da última década. Antes era alegre, botafoguense fanático, jogava futebol de praia e era um grande papo e companheiro de mesa...”
(NM)

A carta do Carlos Alberto

“Querido amigo,

O Paulo Mendes Campos, estranho, controvertido, muitas vezes ingênuo, puro, gentil e sempre esquivo, mesmo celebrado pelos notáveis do seu ramo, era uma figura, dessas para se guardar para sempre e morrer sem saber interpretar. Profundamente culto, fazia a maior força para dissimular essa condição. Não, ele não sabia nada, era um observador da vida. É o que dizia entre duas doses de uísque, que adorava, ou duas batidas de limão com pinga, que bebia para se embriagar.

Conheci-o muito e tornamo-nos amigos. No Rio, nossos apartamentos eram próximos e freqüentes nossos encontros em botequins das redondezas. Só que, nos últimos anos, nenhum botequim da Zona Sul o aceitava. Ele bebia e brigava com os garçons, o gerente e quem mais se metesse na confusão. Quase sempre por questões frívolas. Que coisa estranha, que coisa triste num homem daquela altitude, num grande poeta! Cheguei a vê-lo praticamente atirado à rua por seguranças truculentos e sem a menor paciência, e recompor-se para afetar a dignidade possível, nas circunstâncias, mas era uma dignidade  cambaleante, fingida, chapliniana. Assisti a isso duas vezes e me doeu muito.

Em Belo Horizonte ele me telefonou. Aonde poderíamos tomar um chope? Sugeri o Primo e ele foi. Como o marinheiro do poema bandeiriano, estava triste e lúcido. Não quis beber. Falou-me de coisas circunstanciais, de algumas memórias, tudo muito sem graça, em voz baixa, bebendo água tônica. Ao final perguntou:
- Pode me deixar em casa?
- Claro.

Deixei-o na casa do pai, na Avenida Getúlio Vargas quase esquina com Contorno. Uma casa velha, velhíssima, onde morou sua família, seu pai, meu professor, há pouco falecido. Deixei-o em frente e, pelo retrovisor do carro, vi que ficou parado na calçada. Esperando o quê? – perguntei-me. Não sei, não posso dizer, mas acho que ele já estava esperando a morte. Acho que estava morrendo aos pouquinhos. Acho...

Dois meses depois fui colocar minhas mãos sobre as dele, geladas, dentro de um esquife trasladado para a cidade de onde saiu para um mundo que foi, a um tempo a glória e a tragédia da sua vida. Hoje, acho que não seria leviandade afirmar que o Paulo, viajor incansável, nunca deveria ter empreendido qualquer viagem para além de sua própria interioridade. O seu mundo.

Era um grande cronista, talvez, não sei, melhor do que poeta. O mais provável é que, nele, os dois gêneros se confundem, ou se completem. O exemplo que lhe envio é baseado na obra-prima de Lewis Carroll. Mas é também um texto para nós, bem mais velhos, para os homens de todos os tempos.

Carlos Alberto”

PARA MARIA DA GRAÇA

Paulo Mendes Campos

Agora que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.
Este livro é doido, Maria: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não descobrires um sentido na loucura, acabarás louca. 
Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. 
Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.
A realidade, Maria, é louca.
Nem o Papa, ninguém no mundo pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz a sua gatinha: “Fala a verdade Dinah, já comeste um morcego?”
Não te espanes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isto acontece muitas vezes por ano. “Quem sou eu no mundo?” 
Esta indagação perplexa é o lugar comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares esta charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta: o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.
A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. 
Foi o que Alice falou no fundo do poço: “Estou tão cansada de estar aqui sozinha!”. O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! 
Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, fechar uma porta bem aberta.
Somos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.
Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda a sabedoria tem que ser grave.
A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: “Oh, I beg your pardon!”. Pois viver é falar em corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para sua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. 
Foi o que o rato perguntou à Alice: “Gostarias de gatos se fosses eu?”
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na Literatura. 
Até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, que quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: “A corrida terminou! Mas quem ganhou?” 
É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiverdes de ir a algum lugar, não te preocupes a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhastes.
Disse o ratinho: “Minha história é longa e triste!”. Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: “Minha vida daria um romance!”. Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro. E não se desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo”. Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.
Escuta essa parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. 
E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. 
A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.
Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande, para o humor mais ou menos barato, que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; e por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. 
Chamo de “grandes ocasiões” os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade; em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos; em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado Maria, com as grandes ocasiões.
Por fim, uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. 
A dor também tem seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”.

Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida. É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassarmos a fronteira de nossa própria dor, Maria da Graça.