sábado, 27 de julho de 2013

De repente, um tapume pintado de azul

                             
                              “Cada tauba que caía //
                                     doía no coração (...)”
                              (Saudosa Maloca - Adoniram Barbosa)


Bastaram dois dias para que um enorme gafanhoto mecânico dotado de muitas manhas hidráu-licas, colossais dentes de metal, pusesse abaixo todo o conjunto de edificações que, heterogêneo, se sustentou, desde antes de adquirir os privilegiados, e especulados, foros do Bairro da Savassi, por décadas e décadas, com muita dignidade, na esquina de Fernandes Tourinho com Rua da Bahia. Quem pôde observar aquele estranho inseto desincumbindo-se da tarefa de demolir tudo que se erguia na área de 1.200 metros quadrados, sei lá, também pôde achar que, de fato, os dois dias foram o tempo que o monstro gastou para devorar telhados, alicerces, tubulações, telhas, assoalhos, ferragens,  rede elétrica, de águas e toda a alvenaria do grande sobrado mais ou menos arruinado, mas firme em suas fundações e paredes, e das casas e lojas ao redor, incluindo uma de construção mais ou menos recente, com um lindo pé de pitanga no terreiro, muitas rolinhas e bem-te-vis, bicos-de-lacre, algum sabiá.

Era um conjunto de edificações vivo, pulsante. Muitas pessoas nasceram, trabalharam, viveram nele, abrigados, protegidos como pássaros, abelhas, borboletas, num grande pé de jatobá, coisas pequenas, insignificantes, que o madeireiro jamais considera ao derrubar uma árvore. É assim de simples, embora no espaço urbano a construtora que elevará no local mais uma torre de concreto tenha precisado de uns quantos meses, algum dinheiro e, claro, de advogados, até que todos se conformassem em deixar o que, para qualquer empresa, era um espaço para construir, para eles o lar, doce lar, o local de trabalho, de ganhar o pão da vida.

Não tem jeito. A especulação imobiliária é poderosa e voraz. Paulatinamente foram desalojados o barbeiro, o relojoeiro, a lavanderia, o salão de cabeleireiro e manicure, a pequena oficina do eletricista, a do bombeiro; o pequeno restaurante, à hora do almoço, exalava olores e odores da cozinha mineira, frango com quiabo, vaca atolada, rabada com agrião e angu; costelinhas de por porco bem fritinhas, sempre; no galpão com teto de estrutura metálica, um “sacolão” oferecia frutas e hortaliças frescas à vizinhança; a colchoaria funcionou no local desde quando a Rua da Bahia nem chegava à altura do Minas Tênis Clube que, aliás, nem existia, além da loja e oficina do estofador...  O artesão das palhinhas preferia trabalhar na calçada, à porta de entrada do sobrado, tecendo assentos e espaldares de cadeiras e canapés.

O “mercado” é assim mesmo. Pessoas não contam, não entram em sua contabilidade nem fazem parte de sua lógica. Pode-se argumentar que o novo espigão será ocupado por outras pessoas, centenas de pessoas. É aí que está o busilis. Com tanta gente, tudo fica impessoal, não haverá mais qualquer termo de convivência, aquilo de você por o pé na Rua da Bahia e já ir dizendo “bom dia Fred”, “olá, Margarida”, “ô, Moreira, meu relógio já está andando?” Nada, nada. Sem nome nem alma, a multidão que vem traz tédio, muito, e muita solidão.

Depois de tudo derrubado, o material da demolição foi posto em caminhões e levado não se sabe pra onde, tudo em não mais do que dois dias. Nesse ínterim, foi construído o tapume, estacas e placas de aglomerado de madeira, uma base de tijolos, para proteger a obra prestes a começar. Do lado da Rua Fernandes Tourinho um grafiteiro anônimo registrou com letras grandes no tapume novinho a sua bronca: “BH, cidade sem memória”.

Não dá pra saber se foi por isso que, rapidinho, os donos do tapume fizeram-no pintar de azul, um azul-petróleo até bonito, contraponto pálido, porém, ao esplendor sem nuvens dessas tardes de julho de luminosidade incomparável. No ar fresco e transparente, o azul se expande desconcertante, profundo, em todas as direções. O grafite agora é um palimpsesto, enquanto, pretensioso, o tapume alça-se com suas tintas para o céu alto. É muita demasia, contudo, achar que possa realizar-se “nel blu dipinto di blu”, como na canção de Modugno. Calma, meus amigos. Isso é só metagoge ociosa e fora de propósito, a primeira. Outra, também ociosa, increpa com afeto a cidade do coração:

– BH, BH, que ingrata, pensares que a gente nem te liga! Liga sim. Liga demais.


(NM)

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Sônia Galastro conta mais de seu Planeta África

“Saímos de Doko, na República Democrática do Congo, num monomotor de doze lugares com destino a Bunia. A parada nesta cidade é para um segundo controle de passaporte e do vôo (com algo relacionado a espaço aéreo). A pista de pouso em Doko é uma pequena faixa de terra que agora foi aumentada em seu comprimento para que haja mais tempo para a freada dos aviões.

Ao subir na balança (devido ao tamanho da aeronave é preciso pesar mala e passageiro!) fui logo comentando que eu havia engordado muito ali no Congo, para gargalhada geral. É que no meu francês enferrujado troquei a palavra "grossir" por "grossesse" (ou algo assim) ou seja, eu havia dito que tinha me engravidado ao invés de ter engordado! Foi um senhor (belga ou francês) que veio em meu socorro com toda a sua franqueza. E foi este mesmo homem que me ajudou uma segunda vez com a tradução quando, já em Bunia, eu quis saber sobre uma aglomeração de pessoas, entre elas muitas mulheres, padres e alguns guardas (e quase todos usando uma camiseta cuja estampa era um rosto de mulher) no aeroporto asfaltado da cidade, onde também havia vários helicópteros das Nações Unidas.

O segurança já havia me dito que eles aguardavam um cadáver que estava para chegar. Mas foi o senhor franco-belga (?) que se ofereceu para ir colher mais informações para a minha mente inquieta. "Foi a mulher do arcebispo que faleceu. Por isso há vários padres aqui", disse ele. Pouco depois chegou uma caminhonete repleta de mulheres batendo palmas e cantando em suas roupas muito coloridas. Mas era o amarelo que predominava. 

Não pude ficar para ver o que se sucederia porque já estava na hora de embarcar. E, de volta no monomotor, sobrevoamos o lago Albert até o lago Victoria, em Entebbe (Uganda) num vôo de uma hora. Cruzando-se o lago Albert (também chamado de Mobutu Sese Seko, o ditador congolês) que pertence aos dois países, se cruza  também uma fronteira.

De Entebbe iríamos direto para Kampala, a capital, mas uma de minhas malas só viria no vôo seguinte e, assim tivemos que fazer uso da pousada da companhia em Entebbe até que a mala chegasse. Cometi o erro de colocar a bagagem de mão dentro da mala para ter de carregar apenas um volume, e isso causou excesso de peso. Só fomos saber disso quando já tínhamos aterrissado! Aproveitamos então para descansar e comer um "ugali" (angu branco) com molho de tomate e pimentão.

O fuso horário na Uganda é de uma hora na frente do Congo (RDC) e seis horas na frente do Brasil. Já era tarde quando chegamos a Kampala depois de uma viagem praticamente em linha reta numa estrada boa, mas de tráfego bastante intenso.
Quando chegamos ao hotel tivemos a grata surpresa de que nos seria dada uma suíte ao invés do "standard" reservado, pelo fato de o hotel estar lotado devido a uma visita dos presidentes da Tanzânia e de Rwanda, com suas comitivas, àquele país. Mas porque haveria uma suíte disponível para nós? Não compreendemos, mas aceitamos de bom grado aquilo que faria a celebração de nossos vinte e cinco anos de relacionamento bem mais prazerosa!

Já no bar do hotel, Benson ao piano nos homenageava. Depois veio dividir um drink e uma prosa conosco assentados ao scotch-bar. Na tevê ligada sem o som, as imagens me diziam que Nelson Mandela não iria esperar o nosso retorno à África do Sul. Senti um aperto no coração. Em Kampala visitamos o Museu Nacional, que tem uma boa gama de instrumentos musicais, depois o local onde os reis da etnia buganda são enterrados (Kasubi Tombs) e, finalmente, o palácio - residência real de Kabaka, rei buganda. Buganda é um grupo minoritário, semi-independente, com população de uns 2 milhões de pessoas. O rei buganda é uma figura símbolo na Uganda porém com poderes limitados.

Dentro da região do palácio (que não está em funcionamento), mas afastadas do prédio, estão as câmaras de tortura usadas por Idi Amim durante seu reino de terror. Causaram-me arrepios e indignação. Mensagens de desespero escritas com fezes ou sangue nas paredes são testemunhos das atrocidades da época. Mais de 300 mil pessoas morreram durante a ditadura. O governo atual está no poder há quase trinta anos. Conversei com muitas pessoas e todas querem mudanças, mas as coisas não são tão fáceis assim. A história do país é carregada, pesada, muito embora o dia a dia das pessoas não o denote.

No dia 27 de junho, Sam (cujo nome africano é Kazibwe) - nosso guia e motorista - veio nos apanhar no hotel para uma longa viagem que atravessaria inclusive a linha do equador. Na estrada, Sam nos distraía com conversas e palavras em Luganda: matooke = banana (na estrada havia bananeiras e bananas a perderem de vista e que, segundo Sam, foram importadas do Brasil primeiro, pela Ásia e, depois pela África); mwengue/muganga = cerveja local feita de banana; bulamo = vida e asssim por diante. As cobras são animais satânicos e o "Crested Crane" é o pássaro nacional.

Grandes mamíferos, os primatas de Bwindi

A infinidade de motocicletas, fabricadas e importadas da Índia, são chamadas de "Boda Boda" e carregam vários passageiros, quando não uma família inteira. Em uma delas cheguei a ver um neném dentro da jaqueta (na parte das costas) do motorista. A necessidade leva as pessoas às mais diversas formas de criatividade. Gastamos umas sete horas e meia de viagem de Kampala até o Parque Nacional Rainha Elizabeth (Sam e eu fizemos um pouco de "poko poko" ou seja, fofoca: porque é que esses "benditos" governantes não trocam o nome deste parque e de outros lugares que cheiram a colonialismo? Certos governantes não gostam de escutar essas coisas.)
Ainda na estrada pudemos avistar de um ponto mais alto o grande vale Rift de uma beleza sem igual, e por onde passearíamos em ocasião seguinte. Também passearíamos de barco pelo canal de Kazinga, onde avistaríamos búfalos, elefantes e hipopótamos em seu habitat natural. Embrafustaríamos mata adentro na reserva de Kyambura numa caminhada de três horas, na tentativa de vermos alguns chimpanzés. No meio da savana, que só se vê em filmes, avistaríamos os famosos leões que sobem em árvores.

Tudo isso era uma prévia para a finalidade principal da viagem: ver os gorilas das montanhas! Mas estes não vivem no "parque da rainha" e sim na impenetrável floresta de Bwindi, o que fez com que levássemos mais meio dia de estrada. Bwindi, na verdade significa "impenetrável", "escuridão". E o parque onde vivem - patrimônio da Unesco - chama-se "Bwindi Impenetrable Forest National Park", situado na parte oeste da Uganda. O parque possui metade da população mundial de gorilas, ou seja, por volta de 350, além de outros animais, entre eles chimpanzés. A Uganda tem a maior concentração de primatas no continente.

Nossa pousada, de frente para a impenetrável floresta, tem doze quartos e foi quase toda construída utilizando-se matéria prima local como cipó, sisal e pedra ardósia cor de rosa. Nos anos 90 os pigmeus Batwa foram retirados da floresta e transferidos para áreas nas cercanias da comunidade de Bwindi. Tivemos oportunidade de visitar uma das famílias de pigmeus, que atualmente precisam do turismo para a sobrevivência. E em 1994, a floresta foi declarada patrimônio da humanidade.
Da pousada eu ouvia um tocar de tambores constante, mas só no dia seguinte, quando fui dar um passeio pela comunidade com Sam, é que descobri que os tambores eram tocados por uns meninos que fazem parte do grupo de órfãos (257) da região. As crianças dançaram para mim, espectadora única, enquanto uma rápida tempestade desceu dos céus. Foi a conta de Sam arranjar uma sombrinha e a chuva passar como se nos ignorasse.

O dia 30, um domingo, foi realmente o grande dia. Da pousada Sam nos levou para a entrada do parque Bwindi onde os funcionários (guias e ajudantes) nos ensinam sobre os gorilas e a floresta e depois nos dividem em grupos. São três grupos de oito pessoas por dia, com apenas uma hora para ver os gorilas a partir do momento em que os encontramos. Alguns guias com GPS os localizam anteriormente à saída dos grupos. Podemos caminhar quarenta minutos como foi o caso do nosso grupo, ou levar um dia inteiro, como no caso de um casal de alemães, para chegar aos primatas. Cada grupo é selecionado para visitar uma das três famílias de gorilas da região. Confesso que foi uma experiência muito emocionante ficar quase que cara a cara com aqueles animais que dividem conosco (humanos) 95 ou 98% dos seus gens. E como eles são dóceis! Há tanto o que aprender com a natureza!

Bonito, sim, mas tudo longe demais

Já a viagem de volta a Entebbe, sem passar por Kampala, durou doze horas e meia de automóvel, sendo que Sam parou para descansarmos e almoçarmos numa cidade chamada Mbarara. Pouco antes dessa cidade há uma central de um campo de refugiados. Aqui eles são recebidos, vindos de outros países fronteiriços, e depois distribuídos para outros campos, de acordo com suas nacionalidades. Passamos também por uma fábrica de remédios que usa as ervas locais. [Quando visitei os pigmeus adquiri um livreto sobre as plantas medicinais que eles usavam (creio que não usam mais porque foram retirados da floresta) e que foram catalogadas por alguns estudiosos.]

Minha imaginação se perdeu nessas tantas horas de viagem, em meio a observações atentas, com olhos bem abertos, de tudo aquilo que passava caminho afora. Desde gigantescos e pontudos chifres de bois ou as intermináveis plantações de bananas até os cenários de esculpidas belezas naturais coloridas, às vezes, pela densa poeira levantada nas estradas.

Um sol vermelho e fulgurante sobre as águas do canal de Kazinga ainda estava preso na memória,  qual um amanhecer que não findasse. Nas montanhas e na alma restava o frescor vivo da floresta impenetrável. E a imagem daqueles robustos e dóceis primatas se assentava de maneira delicada no pensamento que apenas recordava. Cinesia e estagnação perfuravam vivamente  minhas retinas ávidas e maravilhadas, enquanto eu pensava em como a Mãe África é realmente abençoada. Seja através das pequenas gentilezas do gerente Mordecai ou do canto sincero dos órfãos de Bwindi. Terra e gente confundem-se, se mesclam, e me inundam de uma sensibilidade tão profunda de quase atropelar o coração. No ar há algo de misericordioso. E criancinhas acenam, sorriem e correm paralelas às rodas do carro que pulsa lentamente no curso árduo e sinuoso da estrada.

Era já início de noite quando atingimos a margem do lago Victoria para o atravessarmos em um ferryboat do governo. Na outra margem estava Entebbe. Porém, a poucos metros do ferryboat, nosso carro pede arreglo. Um ajuste de contas justo para uma viagem longa e penosa. Sam fica desolado por não conseguir amenizar o cansaço do automóvel. Nós apaziguamos os ânimos dele, sugerindo pegar um dos barcos de madeira motorizados disponíveis também para o transporte até a outra margem. Sam deixa de sorrir. O incidente esvaiu-lhe as forças e a alegria.
Tiramos malas e mochilas do carro e as carregamos até o barco. Colocamos umas sujas e surradas jaquetas salva-vidas e, em poucos minutos, atravessamos esta parte estreita do lago. O carro, empurrado por uma dúzia de mãos, fica lá num canto aguardando a solução e o retorno de Sam. Ainda transtornado, Sam negocia um carro parado na margem de Entebbe para nos levar até a pousada. Carro brilhante de polido em meio a todo tipo de coisas e pessoas a serem desembarcadas ou embarcadas no ferryboat: bananas, cabritos, sacolas cheias, crianças...

Tão logo o carro parte, observo que o ponteiro da gasolina está na reserva e a luz está acesa no painel. Comento minha observação com Bruce, que apenas esboça um sorriso. E assim esperamos que o automóvel nos leve até a pousada para um merecido descanso. Essas coisas acontecem, dizemos um ao outro. E recostamos a cabeça no encosto do carro até que, finalmente chegamos à pousada. Já é noite. Mas estamos felizes, satisfeitos. Com um grande aperto de mão nós nos despedimos de nosso guia e companheiro de jornada. Adeus, Mr. Kazibwe. Até uma próxima volta, com certeza.

Abraços saudosos,


Sônia”