quarta-feira, 9 de novembro de 2016

“iQuevachaché!” e outros fragmentos ociosos

Palavra é ente animado, vivo, sujeito a peripécias da existência, levando, cada uma, sua fração da alma humana. Por muitos modos e processos, as palavras modificam-se, no tempo e no espaço, se desgastam, exaurem-se, mas também se revigoram e renascem transformadas e cheias de vida. Aqui, por apócope, suprime-se um fonema ou uma sílaba inteira no final de uma palavra; ali, a supressão ocorre no interior dela. Síncopes, aféreses, reduções, abreviações e, sempre, o toque mágico dos poetas.

A locução “iQuevachaché!” titulo de composição de Enrique Santos Discépolo, 1928, é voz infantil, corresponde a  “iQue vas a hacer!” Com alguma liberdade, a gente pode traduzir por “O que é que tu vais fazer, meu irmão!” Os “gorilas” argentinos não gostaram e, com o mau humor habitual, proibiram de tocá-la no rádio: “...iQuevachaché! Hoy ya murió el critério... // Vale Jesús lo mismo que el ladrón.“ É antecipação de “Cambalache”, em que, mais tarde, quando ninguém nem suspeitava que Trumpp, um dia, ia virar presidente, o poeta tangueiro proclamou “Que el mundo fué y será una porqueria” etc. Enquanto ventos bons não dissiparam da Pampa aquelas brumas negras, a canção também ficou proibida.

Tratamento respeitoso, até solene, primordialmente, o pronome “vossa mercê” reduziu-se, ”, pelo tempo e pelo uso,  a “vossemecê”, “vosmecê”, “você”, “ocê” e a mais não sei quantas formas, até chegar a “cê”, que parece seu último estágio, fração essencial que oferece novos tons,  ritmos novos.  Ainda mal acordado, o sujeito surpreendeu a mulher escapando-se para o frio da madrugada, provavelmente, pelo modo como a interpelou, em algum lugar ignoto, da ignota Minas Gerais:  – Oncevai, Maúde?
Estupefata, como se saísse de um transe sonambúlico, a mesma economia de palavras: – Dió, do céu! Oncotô?
Maria de Lourdes e Diocleciano voltaram para a cama. Do outro lado da rua, Chico da Maria Ritinha, depois de esperar por mais de uma hora, – Que fazer? – também foi dormir.

Tropo onomatopaico, “gago” está consignado no Aurélio como o que gagueja; balbo ou aquele que gagueja; quiquiqui, linguinha, borboró, tartamudo, inhenho, tartamelo, tártaro, tato, tátaro, que ou quem fala trocando o c por t; tatibitate, tatamba.  Se a criança ainda não domina a fala, o tatibitatear tem sua graça, que sobrevive em uma ou outra forma na linguagem coloquial, mais pela cumplicidade da mãe, que propende a aceitar quaisquer distorções perpetradas pelos filhos. Não só as encampa como, ela própria, inova e inventa para facilitar-lhes a compreensão. E eis que ritmos suaves e benignos da linguagem materna ganham os léxicos do mundo – Que bom! Pra começar, aquelas reduções carinhosas dos nomes, os hipocorísticos, Lola por Dolores, Teca por Teresa, Bia por Beatriz, e Zezé, Tião, Chico e Chiquita, de repente bacana lá da Martinica.

Talvez pelo fato de namorar o “Cebolinha”, cujos cabelos espetados lembravam o das tirinhas do jornal e que, como o Hortelino Troca-Letras, dos quadrinhos do Pernalonga, não se avia bem com os “rr” , Zélia, uma alegre japonesinha, divertia-se em sua  república, na Rua General Osório, em Ribeirão Preto, perguntando a algum distraído:  “– Utêté um fuinho?”. Ela mesma respondia, achando a maior graça: “– É um bulatinho na palede.” 

Armado num pequeno descampado, o circo agitava cidadezinha encravada em primordial bacia vulcânica. De suas bordas erigidas em montanha, a gente podia olhá-la lá embaixo como a um pequeno presépio e, visto assim, o circo, modesto, era só mais um detalhe, mas tinha palhaço, ou melhor, dois palhaços, um grande e, de contraponto, um pequeno, na vida real uma menina, filha do palhaço grande. Descaracterizado, às vezes entrava no picadeiro o dono do circo, para servir-lhes de “escada” em uma ou outra gague. Era tudo muito ingênuo e alegre. Numa sessão vespertina, o palhaço grande iniciou um diálogo com o pequeno:

– Teteté?
– Tatetitô.
– Titô?
– Tatetô.

Entrou o “escada”, esbravejando: – Que conversa é essa? A gente pode saber o que é que vocês estão dizendo?
Os palhaços levaram os polegares à altura das orelhas e agitaram as palmas abertas das mãos. – Você não entende nada mesmo, seu burro.

Um garoto saiu da plateia em seu socorro, cara de tédio de quem estivesse explicando a maior obviedade do mundo:

– O quê é que você quer?
– Papel de cor.
– Que cor?
– Qualquer cor.

E, fora do script, disparou: – Entendeu? Seu burro!!!

As crianças riram muito. Os adultos, também.

Agora, o seguinte: irritava tanto um cara, a cara infantilizada da namorada insistindo a toda hora em chamá-lo de “momô!” que, de saco cheio, ele foi embora e nunca mais voltou. –  “Momô” é a puta que pariu! foi só o que teria dito.

Às vezes o tatibitate vem com cores da senzala, como na velha canção, e é puro encanto:

“Eu vou fazer um casaquinho
De tricô pro meu amor.
– Di que cô qué, ai Ioiô?
– Di caqué cô.”

O rádio já não traz, às 19h, depois dos primeiros acordes de “O Guarany”, na voz inconfundível, a conclamação: “Trabalhadores do Brasillll!”.
– `peraí, mas isso não tá "inserido no contexto".

 – Pode ser que não, mas também pode ser que sim, meu irmão, porque saúva não acabou não, e o Brasil, o Brasil, ah, o Brasil... “iQuevachaché!”  (NM)