sexta-feira, 17 de abril de 2015

Réquiem por uma mangueira que caiu em Lourdes

Rua da Bahia, entre Antônio Albuquerque e Fernandes Tourinho, na altura que corresponde mais ou menos ao número 2567, Bairro de Lourdes, BH. Os especuladores imobiliários chegaram, compraram a velha e charmosa casa que havia no lugar e, rapidamente, demoliram tudo e transformaram a área em estacionamento, enquanto iam ultimando os meios e os termos para a construção de mais um prédio.

Um enorme pau d´arco guarnecia o acesso ao terreno e, nos fundos, gloriosa remanência dos antigos pomares de Lourdes, uma mangueira de uns oitenta, cem anos, gigantesca catedral verde. A consciência dos homens anda desandada. Ambição, ganância, cupidez, sabe como é. Mas os homens há muito deixaram de ser o centro do Universo, com o qual, aliás, parece terem perdido toda e qualquer conexão, nesta estranha época de indiferença e soberba, preparatória do advento do Capeta e da escuridão irremissível que o Livro das Revelações antecipa.

O ruído exasperante de moto serras começou cedo na manhã da última quarta-feira e, na quinta, ainda persistia implacável, no afã de fragmentar a madeira do que, até a véspera, tinham sido árvores monumentais. Que tristeza! Desde as grades que guarnecem os muros do estacionamento, pombas-trocazes tímidas e amáveis; há muita perplexidade nos olhinhos das pequenas almas aladas, cuja gentileza silvestre não pode compreender a devastação gratuita.Ó espanto, ó desolação!

A consciência dos homens anda desandada, mas a consciência vegetal, de outra ordem, funda-se na paciência e na  generosidade e perde o rumo nem o fulcro. Ela  ainda será gala e ornato deste nosso mundo insensato  mesmo quando os homens tenham consumado seus mais sombrios impulsos de autodestruição.Tanto o pau d`arco quanto a mangueira intuíram, por assim dizer, o que estava por vir e vestiram suas cores mais bonitas para aguardar o desfecho. Primeiro a florada magnífica, depois, os frutos sazonados que, ao serem abatidos por moto serras, entregaram à terra pela última vez . 


(NM)

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Battistella, Jader de Oliveira, Carlos Alberto

Na quarta-feira de 2011 a Parca intempestiva e caprichosa reivindicou para si a  generosidade e o bom humor de Jader de Oliveira, privando de seu convívio a animada tertúlia de incontáveis manhãs de domingo na calçada do Tip Top, na Rua Rio de Janeiro, em BH. No Sábado de Aleluia daquele ano, passado o primeiro impacto da grande perda, este O&B publicou texto ocioso e anacrônico sobre o tango Cuartito Azul, só para evocar momentos bons da presença amiga dele.  Agora, também, a de Carlos Alberto de Barros Santos, com quem compartilhava irremissível preferência pela canção de Mores e Battistella. A reinserção da postagem pode ser só nostalgia de blogueiro, mas também pode ser que não:

Para quem nunca tenha 
lido um verso de Chénier

(Sábado, 23 de abril de 2011)

Em delicada prosopopéia, a personagem que toma por confidente o “Cuartito azul de mi primera pasión”, no tango de Mores e Battistella, abre-se feito se abriria um branco jasmim que exalasse os mais recônditos aromas de seu afeto, depois de sofrer as penas de uma ruptura apenas sugerida, para transformar-se em confortadora nostalgia na memória e na consciência. Mas é uma canção de 1939, e seria de todo impossível justificar o extemporâneo de qualquer discussão, fora de um contexto estrito de história do tango que, aqui, não se aplica. Mas nesta aziaga Semana Santa, na quarta-feira, veio a notícia da partida de nosso amigo Jader de Oliveira. Ele era doido por tangos em geral e, em particular, por esse de Marianito Mores e Mário Battistella, que cantou mais de uma vez em tertúlias no Tip Top. A voz não ajudava muito, mas era afinado e hábil com as inflexões. A preferência por esse tango, compartilhada por Carlos Alberto, de algum modo também explicitava a grande amizade de toda a vida, deles dois.

Agora o seguinte, nesse tango, Battistella e Mores alcançam as mais elevadas esferas da inspiração e da criação. “Cuartito Azul”, a par de canção belíssima é de desconcertante eficácia, fundada sobretudo na metagoge encantadora. É através dela que as nuances do sentimento de um amor arrebatado vão sendo desveladas, contadas/cantadas pela primeira vez pela voz de Ignácio Corsini:



Cuartito azul

Tango - 1939

Música: Mariano Mores
Letra: Mario Battistella

Cuartito azul, dulce morada de mi vida,
fiel testigo de mi tierna juventud,
llegó la hora de la triste despedida,
ya lo ves, todo en el mundo es inquietud.
Ya no soy más aquel muchacho oscuro;
todo un señor desde esta tarde soy.
Sin embargo, cuartito, te lo juro,
nunca estuve tan triste como hoy.

Cuartito azul
de mi primera pasión,
vos guardarás
todo mi corazón.
Si alguna vez
volviera la que amé
vos le dirás
que nunca la olvidé.
Cuartito azul,
hoy te canto mi adiós.
Ya no abriré
tu puerta y tu balcón.

Aquí viví toda mi ardiente fantasia
y al amor con alegria le canté;
aquí fue donde sollozó la amada mía
recitándome los versos de Chénier.
Quizá tendré para enorgullecerme
gloria y honor como nadie alcanzó,
pero nada podrá ya parecerme
tan lindo y tan sincero
como vos.


A partir da sutil invocação do testemunho e cumplicidade de umas paredes pintadas de anil, que, de repente, ganham vida, consciência e plenitude de sentimentos na letra de Battistella, é tudo um espevitar de lembranças e reiteração do amor apaixonado. E há aquela referência a André Chénier, insólita, quase esotérica, que impregna o “cuartito azul” de um lirismo mágico, prenunciador do Romantismo. 

O poeta foi guilhotinado em 1794, durante o Terror, aos 32 anos, dois dias antes que Robespierre, seu algoz, conhecesse a mesma sorte. Argentinos que viveram as primeiras décadas do Século XX sempre estiveram expostos aos influxos da cultura francesa, mas não é abusivo especular, ainda que num âmbito de botequim, que Battistella tenha usado Chénier como cortina de fumaça. Era muito recente, então, o assassinato de Federico Garcia Lorca pelos franquistas, vítima da mesmíssima combinação maligna de radicalismo, intolerância, prepotência e brutalidade. A Argentina de 1939 estava em plena “Década Infame”, governo de Roberto Marcelino Ortiz, muita corrupção, muita repressão. Se tivesse tido oportunidade, teria perguntado a Battistella se, de fato, ele não pretendeu lançar luzes sobre Chénier para projetar a sombra de Lorca... Governantes argentinos, militares ou civis, quanto mais corruptos, mais idolatravam o generalíssimo espanhol e, talvez, não fosse prudente naqueles tempos mencionar diretamente o poeta andaluz.

Mas voltemos ao plano do botequim e ao tipo de conversa que suscita e admite: havia muitas pessoas em torno do chope bem cortado e da cachaça de Salinas do Tip Top, entre as quais muitos leitores vorazes e contumazes que, unanimemente, responderam que não à pergunta “alguém aí já leu Chénier?”

Chega a ser estranho, considerando-se que Chénier está há mais de dois séculos no panteão dos poetas da França, não por seu destino trágico, mas por sua altíssima poesia, que nunca deixou de interessar aos críticos, em seu país e alhures. Mas registro apenas um comentário de Rubén Darío que, com autoridade, dá boa medida das qualificações do poeta: “Entiéndase que nadie ama con más entusiasmo que yo nuestra lengua [...] y que soy enemigo de los que corrompen el idioma; pero desearía para nuestra literatura un renacimiento que tuviera por base el clasicismo puro y marmóreo en la forma, y con pensamientos nuevos; los de Chénier, llevado a mayor altura: arte, arte y arte.”


E para quem nunca tenha lido um verso de Chénier, busquei na Anthologie de la Poésie Française (*), vol. II (De Malherbe à Chénier) uns realmente muito bonitos:

Élégie

André Chénier

Jeune fille, ton coeur avec nous veut se taire.
Tus fuis, tu ne ris plus; rien ne saurait te plaire.
La soie à tes travaux offre en vain des couleurs;
L´aiguille sous tes doigts n`anime plus des fleurs.
Tu n`aime qu´à rever, muette, seule, errante,
Et la rose pâlit sur ta bouche expirante.
Ah! mon oeil est savant et depuis plus d`un jour;
Et ce n`est pas à moi qu`on peut cacher l´amour.
Les belles font aimer; elles aiment. Les belles
Nous charment tous. Heureux qui peut être aimé d`elles!
Sois tendre, même faible; on doit l`être um moment;
Fidèle, si peux. Mais conte-moi comment,
Quel jeune homme aux yeux bleus, empressés, sans audace,
Aux cheveux noirs, au front pleine de charm et de grace...
Tu rougis? On dirait que je t`ai dis ton nome.
Je lê connait pourtant. Autour de ta maison
Cèst lui qui va, qui vient; et laissant ton ouvrage,
Tu vas, sans te montrer, épier son passage.
Il fuit vite; et ton oeil, sur as trace accouru,
Le suit encor logtemps quand il a disparu.
Certe, en ce bois voisin ou trois fêtes brillantes,
Nul na as noble aisance et son habile main
À soumettre un coursier aux volontés du frein.


(*) Éditions Bernard Valiquette – Montreal

(NM)