sábado, 27 de dezembro de 2014

O&B reitera sua fé na conversa fiada

                                     
Maio de 2010, antes de sua primeira postagem, o “hacker” que ajudou nos trâmites técnicos iniciais, veio com uma indagação prosaica: “Qual é mesmo o nome do blogue?” Não tinha pensado nisso, mas uma sucessão de alusões e referências oscilando do fútil ao completamente inútil no texto sem o menor compromisso com Aristóteles ou Descartes, pura conversa fiada, implicitamente, apontava para algo como “Ociosidades & Bagatelas”, locução que, no momento, pareceu muito original e exclusiva.

Porém, na semana que procedeu o Natal, uma breve ciscada no gúgol desfez a ilusão, registrando duas referências consideráveis. No livro “Las Delícias de la Religión Cristiana o El Poder del Evangélio para Hacernos Felices”, do abade Antoine-Adrien Lamourette, 1832, vem consignada com todas as letras num contexto de exaltação mística que, até certo ponto, lembra a jornada do passaredo no poema (A Linguagem dos Pássaros) de Farid Ud-in Attar em busca do Simorg, ou Todos-os-Pássaros. O abade, tal como o poeta persa, vislumbra a Unidade no Absoluto e nela se deleita, em texto, tanto quanto o do persa, de altíssima poesia. Sufis e cristão podem, eventualmente, ter seus pontos de convergência.

Em livro um pouco mais antigo, “Tratado en que se dan algunos médios preservativos para librarse del mal” etc. (1780) o padre catalão Vicenç  Ferrer classifica como “ociosidades e bagatelas”, e como tal a reprocha e condena, toda literatura, incluindo os clássicos da antiguidade, que não esteja estritamente comprometida com a doutrinação eclesiástica. Nada mais impiedoso do que um pregador piedoso, quando se trata de preservar as fronteiras de suas crenças perfeitas e incontrastáveis. Ele e põe no mesmo balaio as obras dos autores gregos e latinos, meros pagãos, livros de cavalaria, obras blasfemas, heréticas, ficções e livros de sacanagem em geral. Lá pela página 338, o padre Ferrer recomenda a quem tenha tais livros que os queime ou “os entregue ao Santo Tribunal”, o que, de antemão, pode ser considerado uma rematada temeridade. Vai que um inquisidor daqueles resolva perguntar algo irrespondível ou meramente difícil de responder. Evasivas do inquirido podem reacender num átimo propensões letárgicas à incineração de obras, autores, leitores e o que quer que se preste a alguma combustão glorificadora de sua fé. Epa, cruz credo!

Falei a respeito ao meu amigo Fernando Fabbrini, na calçada do Café Três Corações, na Savassi, que fez o seguinte comentário: “Ora, a linearidade do tempo é algo tão arbitrário quanto o próprio Santo Ofício. Não tem nada demais que a fama tenha precedido `Ociosidades & Bagatelas´ de uns duzentos e poucos anos”. Tá bem, Fabbrini, tá muito bem.

A percepção sui generis do padre Ferrer pode ser até lisonjeira para “Ociosidades & Bagatelas”, que alça na direção “ciceroniana” dos clássicos, a considerar apenas seu descompromisso com o que não esteja no plano da conversa fiada, além e acima de qualquer credo ou doutrina. Em pretensão, mas benigna, inofensiva presunção, expande-se a vaidade do blogueiro, predispondo-o mais e mais a jogar o jogo essencial da palavra bem ao largo das grandes verdades insondáveis, enquanto as  grandes e pequenas certezas que, ao longo das eras, têm inspirado os senhores de todas as virtudes, a gente vai deixando pra lá. Apenas reconheçamos que o padre Ferrer tem sua graça, não só a graça dos que se creem escolhidos, mas também a que vem com isso de “médios preservativos” que, para um leitor “luso-hablante”, remete a contraceptivos de borracha, camisinhas. (NM)


Pra reafirmar origens e propósitos, O&B posta de novo o texto de APRESENTAÇÃO  postado em 23/5/2010

“Ociosidades & Bagatelas” é uma experiência totalmente lúdica, para ser compartilhada com amigos e amigas sem outro ânimo senão o da convivência, da diversão, como um jogo que permita à gente, sem maiores considerações, lobrigar, por entre as sombras de uma noite esplêndida, quadrantes da abóbada constelada que se apropínquam pelas lentes do coração, mesmo se apenas para constatar que Aldebarã é que esplende mais: gala do céu de maio. Pra quem pensava que lobrigar e apropinquar fossem a própria impossibilidade verbal, o inconjugável, já é um começo de jogo, despretensioso, “a leite de pato”, como se diz em jargão de sinuca se o jogo não é apostado. Mas aí é como lançar búzios ou jogar caxangá usando conchas de museu, das que alimentaram algum ancestral da garça lá pelos meados do período terciário: Guerreiros com guerreiros fazem zigue, zigue, zá!!!  Mesmo no jogo mais ocioso, porém, se palavras virtualmente extintas ganham curso, ainda que num texto na rede eletrônica, por breve que seja, respiram, viram fósseis vivos, persistentes, celacantos léxicos, e não é despropositado alegrar-se com esse tipo de pequeno milagre.

Jogar é representar, fingir, interpretar, mas também tocar viola, piano, berimbau, qualquer instrumento e, sobretudo, é brincar, o que as crianças nem discutem, porque apenas brincam. E também é jogar mesmo, com cartas, varetas, cavalos, torres, dados, bolas, dardos, facas, pedras, plumas, flechas. Com palavras valem trava-línguas: “Num ninho de mafagafos, dezesseis mafagafinhos há. Quem os desmafagafizar...” e jogos de adivinhação, folguedo na infância e, depois, fonte do poder de sibilas e feiticeiras, do prestígio dos profetas e da glória de algum poeta. Para a cigana, uns trocados parcos, mas pouco importa, ela é tão bonita!


Uns, cheios de certezas, jogam o jogo da verdade, o da mentira, mentira dos outros, deles, só verdades, mas antinomias não são perfeitas e, feito rios no oceano, dissolvem-se em tautologias: entre o crepúsculo e a aurora, a noite e, inversamente, o dia;  o Minguante entre a Cheia e a Nova e, invertidos os termos, o Crescente. Parece que, no tocante à ordem dos fatores, não é como na multiplicação aritmética, mas também não deixa de ser: Não é sempre a mesma Lua? Entretanto, há uma Maja Desnuda, uma Vestida, uma gérbera amarela, uma branca margarida, que assim é a vida. No talho a navalha se materializa, o desamor numa  dor no peito e muita tristeza; nas  modulações suaves de seu canto, o curió; a grande borboleta primordial, no vôo leviano e no azul das asas. E, só para concluir, ao fim e ao cabo, o jogo é jogado, o lambari, pescado. (NM)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Voar é o que importa

Chegou ontem, da África do Sul, e me alegrou, como sempre, mensagem da Sônia Galastro:
“Pedi permissão à minha amiga para enviar-lhe o poema que ela fez inspirada pelo tema de um de nossos saraus: `Voar com asa ferida?´. Esta frase é de um poema do Leminski. Espero que goste.
Sônia”

Gostei sim, Sonel. E me permito postar o texto da Flávia para compartilhá-lo com os amigos de O&B.
(NM)                      
ASA FERIDA 
Habita em mim um pássaro migrante
que anseia flores mas adentra o bosque em chamas.
Visita sombras onde apenas brota o musgo,
velhos dormentes sob trilhos esquecidos,
carrilhões silenciosos onde as horas não ressoam.

Habita em mim um sabiá dolente 
que inveja o rouxinol de colorido canto,
e busca melodias sem queixa, sem lamentos,
bem-te-vi de olhos vendados, cego de horizontes,
pois enxergou demais  e se calou de espanto.

Habita em mim uma andorinha solta,
diversa de outras tantas se movendo em bando.
Seu pouso não disfarça a extensa trajetória 
na rota das mudanças, nuvens passeando...,
das voltas e distâncias já perdeu a conta.

Habita em mim um tiê-sangue agreste,
o rubro peito aceso no desejo à vida.
A sorte se ausentou, o sonho foi desfeito
e ainda assim insiste alçar-se em céu aberto
- sobrevoar desertos mesmo com a asa ferida. 

Flávia
30.10.2014 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Manoel de Barros, Guimarães Rosa, cavalos, passarinhos


Quinta-feira, dia 13, veio a notícia do falecimento, em Campo Grande, MS, do poeta Manoel de Barros. Não chegou a surpreender, porque, aos 97 anos, vinha enfrentando ultimamente graves problemas de saúde, mas, mesmo assim, deixou o travo de tristeza das grandes perdas. Poeta essencial do Brasil, referência espiritual e afetiva de todos nós, ele jamais, com tanta poesia que nos deixa, será de fato uma ausência a lamentar. Antes, lembrá-lo em versos sutis, plenos de alegria e surpresa, versos reveladores de nosso povo, de nossa terra, sempre em conexão com o Universo misterioso e imenso, atento ao galope dos alazões da Aurora. Manoel de Barros, enquanto viveu, foi um grande decifrador de enigmas.

Hoje, O&B repete, para homenageá-lo, postagem do dia 1 de junho de 2011, recuperando momentos da visita que lhe fez lá Pantanal sul mato-grossense outro poeta de sua mesma linhagem, João Guimarães, quando conversaram sobre muitas coisas, também sobre cavalos e passarinhos.

“Quando não sei onde estou, as palavras me acham”
      Manoel de Barros


Em 1953, então já consagrado como autor de “Sagarana”,Guimarães Rosa foi ao Pantanal do Mato Grosso, onde o recebeu ninguém menos que Manoel de Barros. Até os grilos e os sapos pararam um tempo só para ficar ouvindo as conversas deles dois naquele âmbito misterioso e mágico que tem por hierofante e druida precisamente o poeta da “Gramática Expositiva do Chão”.

Manoel de Barros conta como foi o memorável encontro, como se desfrutaram um ao outro os dois grandes poetas brasileiros, obcecados ambos pelas palavras, o pantaneiro assumindo-as mais pelo lado da intuição; mais eruditas, talvez mais “científicas”, as abordagens do sertanejo. Mas aí que está: não discutiram como filólogo de preceito, mas como qualificados amantes da palavra, fazendo daquele encontro algo impossível de ser repetido. Manoel contou ao Rosa que o Pantanal quase teve seu dialeto, mas o isolamento de muitos anos da região estava se acabando muito depressa, estradas, automóveis, rádio, essas coisas. Os modos pantaneiros de falar apenas sobreviviam aqui e ali, numa ou noutra expressão.

Eles andaram falando sobre passarinho, conforme está registrado nas “Conversas por escrito (Entrevistas: 1970 – 1989)”, de Manoel de Barros:

– E passarinho, Manoel?

 Manoel comenta: “Rosa me especulava por trás do couro, como quem sonda urubu. Queria saber de tudo. De avoador, eu disse, só urubu, garça, cracará – esses pássaros grandes. O resto quase é inominado. Passarinho pequeno é passarinho à-toa. Rosa sabia essas coisas, só estava me sondando. Falei para ele. Isso é como a gente não saber o nome de todas as pessoas que vão atravessando o Viaduto do Chá.”

Aí Manoel lembra que “Rosa estrelou sua risada”, antes de dizer: - É isso mesmo, Manoel! É tanta gente que não se sabe o nome. E passarinho é a gente daqui.

Em seguida Rosa perguntou: – E o tordo, qual é a letra do canto que ele canta? A música eu sei de cor, mas a letra eu não sei.

Manoel respondeu: – A letra é assim: “Primo com prima não faz mal, finca, finca...”

E o Rosa: – Oi tordo erótico, Manoel. Os lá de Minas têm mais compostura...

Depois a conversa derivou para exotismo e folclore no Pantanal, e Manoel ponderou ao Rosa:

– Aqui não há nada exótico. (...) O que tem aqui tem em toda parte. Mas de folclore, que é outro departamento, tenho um amigo, Neto Botelho, que sabe das coisas, que informa sobre nosso monumento nessa área que é o cavalo. Cavalo é nosso enfeite, nosso instrumento de trabalho, nosso meio de transporte, nosso amigo, nossa arte. Com ele se ganha o pão, com ele se vai namorar.

E ofereceu ao Rosa um poema do Neto Botelho sobre um cavalo que teve:

“Tive um cavalo ruano
De nome Balança-os-Cachos
De cheirar e mandar guardar
Cavalo de confiana
Pegava em quarenta metros
Galardão de cola e ancas
Um ente desanormal
Coisa de prateleira
Ventena como o fedor
Não foi de ensebar serviços
Nem teve queda pra cangas
Pastor de primeira instância
Cavalo de putear delegado
Livre como as vertentes
Podia até lavar louças
Leve de patas que era
Só faltava ir no cinema.”


Manoel disse que Rosa gostou demais, do cavalo e do poema. Tanto que “tomou nota. Gravou na caderneta”. Parece que, naquele encontro inesquecível lá no Pantanal, as palavras, como sempre, realmente acharam o Poeta, mas então tinham nome e sobrenome: João Guimarães Rosa. (NM)

(P.S) Uma neta de Manoel de Barros consolou-se da grande perda: “Ele virou passarinho”. 

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

A nostalgia do mar de cada um

                                                                              Fisgado pelo enigma do peixe. De metal, sim,
mas azul, como deve ser um marlim



Mineiro tem nostalgia do mar, tão longe, a bramir 
ronco pra lá e pra cá, a branca espuma que, feito no bolero de Ari Barroso, “se desmancha na areia”. É tudo clichê, claro, mas, em se tratando de mineiro, não precisa ser abstrato nem de anedota, para, em algum momento nesta vida ou em passadas encarnações, para tê-la sentido com maior ou menor intensidade. Também não é preciso verão. Basta que esquentem uns dias de nossas primaveras tropicais    
para que venha aquela incoercível ânsia por brisas marinhas que, nos dias de hoje, remete diretoa praias do Nordeste, ensolaradas,águas mornas, bom demais. 

Até os anos 80 do século passado, o destino preferencial dos nostálgicos do mar era o Espírito Santo de incontáveis e encantadoras praias, umas de areia grossa, de um tom quase rosado à luz do entardecer, outras de areia fina e clarinha que o vento levanta sem esforço. Tem até praia de areias escuras, monaziticamente pretas. O clima é bom, o calor não a sufoca ninguém, e os capixabas, sempre gentis, põem à mesa moquecas inigualáveis, de camarão, de badejo, de badejo ao molho de camarão e a variedade inesgotável de combinações que lhes permitem a prodigalidade atlântica da costa e a riqueza de sua cozinha ancestral. Olor e cor, sabor e textura, e temos a moqueca para todos os gostos e sentidos. Todos? Não vá dizer que dá pra ouvir moqueca! Não. Realmente não dá, mas, atento ao som do mar batendo nas pedras, você completa a festa dos sentidos.


Mística ou não, a ânsia de liberdade, 
como manifestação, é sempre generosa













O versículo (Filipenses 4:13) faz o freguesa baixar o tom antes de entrar na loja, mas um blogueiro ocioso pode preferir, por menos belicosa, a tradução “Tudo posso Naquele que conforta” e, ainda, com alguma petulância, achar que não acrescente muita coisa ao salmo 23: “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”.



                          



                                                     Badejo, moqueca, mistérios do marlim

Depois de mais de trinta anos de ausência, a gente mal pôde reconhecer Guarapari. A cidade cresceu bem cuidada, limpa, a orla foi urbanizada com o melhor critério, o comércio é movimentado, vivo, muitos hotéis, mas não há agitação demais. E cuidam eles lá, em Guarapari, de evitar ruídos desnecessários, feito aqueles com os quais temos de nos conformar, por exemplo, nas praias do Sul da Bahia. Caixas de som a todo volume nos carros, nem pensar. É desfrutar a água, areia, o drinque à sombra da amendoeira e, depois, ir às moquecas. A do Osmar, antiga, merece o prestígio que tem.

Quem se lembra da “Moqueca do Osmar” em seus primórdios, lembra-se de cabanas rústicas em que só contava, mesmo, o pescado posto à mesa. Hoje o restaurante está muito bem instalado, serviço muito bom, sem chegar a sofisticado, a comida deliciosa, no mesmo lugar, mas no segundo piso de uma espécie de sobrado. No primeiro, funciona, entre as tantas que pululam em Guarapari, uma igreja neopentecostal, claro indício de mudança de aprisco no antigo rebanho cristianizado pela pregação suave do padre José de Anchieta. A  recorrência de versículos bíblicos inscritos em  fachadas e placas de muitas lojas apenas confirma.


Se o céu de Castro Alves “é dos condores”, o mar do Espírito Santo é do badejo, do badejo e do marlim, peixe mitológico, epifania do próprio Posseidom, que atrai aventureiros do mundo àqueles páramos de luz. Por que insistem em pescá-lo? Talvez por contraponto a Moby Dick, a baleia branca de Herman Melville, que o capitão Ahab via como encarnação do Diabo, ou quem sabe ao peixe demiúrgico em cujo ventre de abismo, por três dias e três noites esteve retido o profeta Jonas. E não é preciso ser Santo Agostinho para render-se à tentação de desvelar mistérios, mesmo os que, enfim, são só do marlim. 

Voltar a praias do Espírito Santo, a Guarapari, depois de mais de trinta anos de ausência, é entregar-se à nostalgia da nostalgia do mar, deixar-se levar, nostalgia ao quadrado. (NM)

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Sete de Setembro, professoras e o fervor do Brasil

Setembro corre em disparada, montado em seu cavalo baio para chegar, sôfrego amante, aos braços da Primavera, os dias correndo junto para o ansiado encontro que, conforme as lembranças de lindos selos comemorativos do tempo da infância, haverá de celebrar-se no dia 22, que já está bem perto. E olhe que o mês começou devagar, indeciso, uns dias muito quentes, outros frios, como se quisessem confundir abelhas e andorinhas, mas não há como perder a entrada triunfal da estação florida. O Sete de Setembro, por exemplo, chegou e foi-se embora em branca nuvem, sem graça como os feriados que caem no domingo, e sem a emoção que traziam as celebrações do Dia da Pátria. Onde, porém, aquelas professoras jovens, bonitas, que insuflavam nos corações infantis, feito um sopro vital, o fervor do Brasil?

Os hinos e canções que ensinaram ainda reverberam na consciência e na memória: “Brava gente brasileira! // Longe vá... temor servil: // Ou ficar a Pátria livre // Ou morrer pelo Brasil!”, a letra de Evaristo da Veiga, a música de nosso Imperador Dom Pedro, o primeiro; “Ó Pátria amada, // Idolatrada, // Salve! Salve!” 

O Sete de Setembro passou em branca nuvem, feito qualquer pobre feriado que caiu num domingo. Alguma banda, algum coral, terá elevado os tons de Francisco Manuel da Silva no refrão ardente e vivo que, nos tempos da escola, incendiava versos esdrúxulos que mal podíamos compreender, do estro parnasiano de Osório Duque Estrada: “Deitado eternamente em berço esplêndido, // Ao som do mar e à luz do céu profundo, // Fulguras, ó Brasil, florão da América, // Iluminado ao sol do Novo Mundo!”

Na banalização, porém, dissolveu seu espírito e, junto,  qualquer possibilidade de fervor do Brasil, uma pena, menina. Ah, cantam nos jogos de futebol, mas sequer como o melhor cântico dos estádios. Nas vozes da malta torcedora, prefiro, sem desdouro para ninguém, as notas de “Clube Atlético Mineiro, // Galo forte, vingador...”. Que  outros prefiram outras canções, eis o sal do jogo, a essência da democracia.

O Sete de Setembro passou em branca nuvem. Passou mesmo? Quase me esqueço de dizer, menina, que, justo na manhã do Dia da Pátria, ensolarada e fria manhã, o ipê que pontifica na esquina de Antônio Albuquerque com Sergipe, na Savassi, em BH, achou de antecipar a Primavera mostrando-se em todo o esplendor de sua florada estonteante. Não é extraordinário que ipês floresçam nesta época do ano, mas intriga o fato de que sempre nos surpreendam, não importa quantas vezes tenhamos visto o mesmo espetáculo. Talvez seja porque, não sei não, tanto amarelo assim devolva-nos alguma secreta fagulha do fervor do Brasil que, de algum modo, nos alegra o coração. (NM)

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Triunfo dos ipês na paisagem de BH



Olhe só que florada de ipês amanheceu esses dias na paisagem de Belo Horizonte, em alegre e consoladora epifania!  Tão discreta ultimamente, Harmonia, se incorpora à consciência vegetal dos ipês, com todos seus tons do rosa clarinho a um lilás encorpado, diante dos olhos, ao alcance das mãos. As árvores da ordem Tabebuia Avellanedae, paus d`arco, peúvas, ipês roxos ou que nome se lhes dê, como se  tivessem deliberado em assembleia:  - É hoje.

E no tempo e no prazo, em perfeita sincronia, lançam à luz o esplendor de inflorescências que colorem, iluminam e enfeitam BH e todos os outros lugares onde gostam de florescer. 


Ah, o “vasto mundo” de Drummond, agora poluído, violento, injusto, superaquecido e triste!  Boa rima deu-lhe o Poeta, mas deixou insolúvel e, embora as cores da inocência, a rosa despedaçada da velha cantiga de roda é só uma metáfora, crianças despetaladas em Gaza, a concretude do horror. É de desesperar, mas melhor não. A gente olha a florada dos ipês e não se cansa de olhar. De repente, dá até pra acreditar que o caos da insensatez e da intolerância, ao fim e ao cabo, não prevalecerá. (NM)

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Da nomenclatura zoológica

    
      
65 – 66 – 67 – 68  ///  57 – 58 – 59 – 60   ///   13 –14 – 15 – 16


Em seu tempo primordial, Adão fez perfilar “os animais paramentados e a cada um deu um nome de batismo”, nomes bonitos, gratas sonoridades nem sempre suaves, laguasca, jaratataca, lombriga, cágado, ornitorrinco, mafagafos em seus ninhos, com dezesseis mafagafinhos. Desde então um atende por gafanhoto, por vulcchereria bancroft outro, e também vêm bem-te-vi e libélula, tiranossauro rex, abelha-rainha, coelho, lépido e pequeno, grandes orelhas, hipopótamo, pesado, enorme, orelhas curtinhas, e assim por diante.
Aí vem o barão Viana Drummond e inventa o joguinho. Águia, galo, cavalo, cabra e cobra,  avestruz de passo ligeiro e pavão de fulgente esplendor ganham números, em dezenas, centenas e milhares, e prestígio e presença nos sonhos dos humildes. 

Luiz Gonzaga disse em canção conhecida, aquela do chofer de praça: “Para batizado, tenho um terno branco, // para casamento tenho um terno azul”. Um terno de macaco, jacaré e borboleta e até mesmo um estudante pobre, pobre de marrais, marrais, pode celebrar um glorioso fim de semana com a namorada em Ouro Preto, “tempranillo” da Rioja, queijos de boa índole, bambá de couve num fim de noite em Mariana e, na friagem nivosa de Lavras Novas, aconchego de iglu na pousada lá no alto, onde a montanha se eleva até quase encostar na Lua; uma ou duas taças de espumante para enlevo dos espíritos apaziguados, muito mesmo a calhar.

De repente, o quase milagre: não mais mera ausência, sombras, abstração, prosaicas criaturas ganham sentido, substância, as cores e, principalmente, os nomes que têm, e viram objeto de ternura e cuidado: Ararinha azul, tartarugas marinhas, baleia jubarte, mico-leão dourado....  Vêm à baila, à tona, aos holofotes, de mansinho, aos poucos, nas asas de nossa nostalgia. Nostalgia da mais gentil das aves, o dodô, a mais indefesa, que um dia caminhou a passo desengonçado pelas praias dos Galápagos; da pomba avoante, de  movimentadas estações de choca no Sertão nordestino; dos pigmeus da Tasmânia, caçados, esportivamente, em sua ilha paradisíaca até que fosse abatido o último de sua estirpe amável; e nostalgia de todas as espécies animais e vegetais que se foram para sempre, até dos dinossauros, ou que estão indo agora, antecipando nosso deserto.  

Leão, Escorpião, Caranguejo, o Capricórnio de agudas aspas, Áries de cenho pensativo, Peixes silenciosos.  Estes há muito esplendem as noites do Mundo e, cada um em seu momento, cruza o céu constelado carregando enigmas do Tempo, perplexidades e presságios, um ou outro aterrador. Digam, porém, o que digam, o que passou, passou.  Eles acolhem, com benignidade, suspiros, arrepios e outras prendas do Amor que, de outro modo, haveriam de dissolver-se ao clarão esmaecido do lânguido Minguante. Por toda a extensão zodiacal, esparrama-se o Touro, que a atravessa de cabo a rabo, enquanto chispas azuis desprendem-se de seu olhar quase terno.

– Aldebarã, Aldebarã!

(NM)



domingo, 1 de junho de 2014

“O Vestido”, arte, emoção e liberdade

Blogueiro não é crítico de espetáculos, senão, há muito, teria destilado sua emoção, considerando que a apresentação do solo “O Vestido”, no Teatro Klauss Vianna (Oi Futuro), em BH, aconteceu não neste final de semana, mas no anterior (23, 24 e 25 de maio). Aconteceu? Isso mesmo, porque foi um tremendo happening. Baixada a adrenalina, já pode dizer que Terpsícore e Calíope, assim como Isadora Duncan e Pina Bausch, de algum modo, estavam no palco do Klauss Vianna, invocadas – quem sabe? – pela coreógrafa, bailarina e atriz Rosa Antuña.

E Denise Stoklos? Houvesse comparecido, provavelmente teria aplaudido com o mesmo entusiasmo da plateia em cada uma daquelas três noites, deixando-se levar pela emoção que artes, artes de Rosa Antuña, por supuesto, sublimam e materializam no palco, incorporando ora fragor de muitas águas, ora o suave descair do rocio na hora da Estrela da Manhã.

“O Vestido” é uma alegoria da condição da mulher universal, de todos os lugares, de todas as idades, de todas as épocas, feita de pura emoção. No cerne do “argumento”, a ideia de que o importante é que, uma vez vestido o seu vestido, uma mulher pode voar, voar, nas asas de seus sonhos mais altos de liberdade, acima de quaisquer tiranias e de todas as formas de opressão.

Parece simples, até banal, mas a emoção está na forma de expressar tais banalidades e simplezas na linguagem dos gestos, do movimento, na sintaxe do corpo. A palavra, apanágio sutil do homem, o mais sublime, é meramente incidental no “texto” e no contexto de “O Vestido”. Chega como um balbucio entrecortado ou num idioma estranho, desconhecido. E, no entanto, cada um pode senti-la como se ouvisse na língua de sua infância. São variações de tons e inflexões que explicitam todas as significações necessárias em um discurso impronunciado, mas complexo e arrebatador.

Com gestos, passos e movimentos harmoniosos assimilados no ballet clássico, na dança de salão e na dança contemporânea, Rosa despetala suas delicadas intuições de artista; das bailaoras andaluzas, a dança das mãos, que lhe permite dizer coisas importantes ou triviais, de um jeito sempre bonito, aos homens de nossa terra insólita ou aos deuses que, desatentos, nos assistem desde o céu constelado.

“O Vestido” não é espetáculo que se materialize assim, sem mais, só no plano da arte. Requer comprometimento de iniciado que possa mover-se na dimensão do inefável, aquela em que uma mulher que tenha vestido o seu vestido sobrepõe-se à banalidade da Morte. Um tiro no peito? Não é nada. Na hora de ir-se embora, abertas as asas do espírito, é voar e voar.

(NM)
As fotos são de Duda Las Casas (A) e Marco Aurélio Prates (B) 

sábado, 26 de abril de 2014

Noite quase barroca

"!!!Oh bella Galatea,
mas süave que los claveles que tronchó la Aurora; (...)”

Don Luis de Góngora  (Canto de Polifemo)



...quanta lua, meu amor, enluarando suas varandas; perfumando a noite clara, quanto jasmim! E, no entanto, pesa-me o recolhimento da murta, branca ausência em seu jardim florido; no escuro verdor da folhagem espessa, ainda guarda brando manacá as essências misteriosas que exalam o branco e o violeta quando, de mansinho, vem o rocio beijar-lhe as pétalas, o que sempre deixa você com excelente disposição. Branda Lua afaga a branca açucena, a açucena uns olhos brandos, de ametista muito escura.

Mal se percebe, tão quietas, o murmúrio das estrelas, a noite esplende no silêncio cavo do nosso Planeta, nas sombras, farfalham asas, mariposas, invejosas de impudicos pirilampos a alardear núpcias cintilando graciosos arabescos em coruscante voejar rente à grama úmida.

Quanta lua, meu amor, enluarando suas varandas, a alta mansão, altas janelas, os beirais altos...  Em adormecidos ninhos, o crepuscular azul das plumas, um piripipi sutil, quase-gorjeio, andorinhas, ligeiras na hora de ir embora, esperando a Aurora para a celebração de mais um dia.

– Pra quê tanto gerúndio, tanto hipérbato, sinédoques, aliterações, essas hipérboles todas? Até quiasmos! Anáforas? E quanto afã de cores vivas, adjetivos demais! Tudo bem, amor, mas chega de palavras. (NM)


sexta-feira, 4 de abril de 2014

Santa Tereza, tanto bar, o viaduto...

Voltar a Santa Tereza é voltar a um ou outro bar. Há quem busque a Parada do Cardoso, na Rua Dores do Indaiá, no coração do Baixo Santê, ou o Bar do Orlando, bar de pescador, frequentado por vendedores, caixeiros, bancários, mas principalmente por aficionados da pesca e gente chegada a uma conversa fiada. O estabelecimento, que tem um procedimento secreto para colorir os ovos que serve aos fregueses e que, talvez, seja o único bar de Minas Gerais que também vende artigos de armarinho, é um tremendo mentideiro.

Se achas, porém, que é tempo de ir peregrino a Santê, a Caaba pode estar no Bar Temático, lá embaixo, perto do desativado mercado municipal. Umas mesas dentro, outras no passeio, o mesmo serviço, ótimo, garçons solícitos, mas do jeito antigo, sem frescura, sa´comé: cachaça boa, boa cerveja, costelinha de porco bem fritinha, torresmo de barriga, carne de sol com mandioca... Bom demais.

E uma peregrinação dessas, se for bem articulada, por transformar-se num conclave para grandes e irrelevantes deliberações, conforme soem ser os grandes conclaves, firmes na defesa de seus pontos de vista os cardeais Luiz Fernando e Rogério Perez, Wanderley Panther de Lima, Danilo Andrade, Ivan Drummond. Pontificam mais, pelo afeto e pelas presenças bonitas, Marina, Cristina, Vera...

Viaduto

Antes de um conclave desses, o blogueiro apresentou ao Panther, que não precisa ir a Santê, pelo simples fato de que ele é de lá, vive lá e, na medida do possível nunca sai de lá, uma questão crucial, de tão irrelevante. – Ô cara. Como é isso do viaduto que liga o Centro à Floresta ser conhecido e reconhecido como Viaduto de Santa Tereza?

– Simples, meu chapa. A linha do bonde, quando havia bonde, vinha do Centro e, passando pelo viaduto, alcançava o Bairro da Floresta, que atravessava, é óbvio, antes de entrar em Santa Teresa, onde continuava até o final da Rua Mármore. Então o viaduto é mesmo de Santa Tereza, até porque, o outro, o que cruza o ribeirão Arrudas um pouco mais a montante, é que é, por excelência, o “Viaduto da Floresta”.

A foto é dos anos 30, quando o Viaduto de Santa Teresa estava novinho e a harmoniosa simetria de seus arcos encantava mais na paisagem urbana de BH. Hoje, poucos podem associá-los ao jovem poeta Carlos Drummond de Andrade e à madrugada insólita em que ele caminhou sobre o da direita, caminhou de cabo a rabo, subindo passo a passo antes de descer, também passo a passo, do outro lado. Teria parado por um momento ao chegar ao ápice, estendendo os braços para o céu. É de se supor que, então, forças telúricas de Minas, poderosas, soltaram a corda misteriosa que mantinham tesa. As livradas tensões dispararam o poeta, flecha flamejante e viva, na direção das estrelas.

Todos os bares

Odilon, tão  paranaense quanto o poeta, mandou para O&B uma pequena joia de Paulo Leminski:

“pariso, novaiorquizo, moscoviteio
sem sair do bar
só não levanto e vou embora
porque há lugares que eu nem chego a Madagascar”

Daí ocorrer voltar aos bares, de Santa Teresa ou ao bar universal, que a Poesia e o cancioneiro abre para nós. Pelas notas misteriosas de “As time goes by” chega-se ao “Rick`s Café Américain”, na Casablanca dos tempos da Ocupação. Tomar uma tacinha de champanha, ouvir o Tango Delle Rose e ainda cantar com fervor a “Marsellaise”! De repente, vejam quem acaba de chegar: Ilsa Lund (Ingrid Bergman). Como ela está bonita!

Deste nosso lado do Atlântico, em referências explícitas ou em meras sugestões, o bar se distancia do âmbito alegre, quieto às vezes, às vezes ruidoso ou mesmo barulhento demais, mas sempre aberto à exposição de teses improváveis, a discussões sempre inconclusivas sobre futebol ou filosofia, para o qual afluem pessoas empenhadas em conversar fiado, rir, contar novidades, histórias, para espairecerem, enfim. Homens, e mulheres, carregam angústia, solidão, desesperança, saudades, o escambau. De vez em quando algum sentimento desses pode aflorar numa mesa de bar. Bar é bom, alegra o coração, mas, pra compaixão,  misericórdia, não é lugar. A percepção dos outros nunca corresponde à do sujeito que, por incontinência etílica, deixe vazar sua tristeza de bêbado, por mais única e exclusiva que lhe pareça. Quanto mais a situação se aproxima do trágico, mais ridícula, o que é realmente patético. Porém, ninguém liga e, ao fim e ao cabo nos bares da vida a vida continua.

É só a preferência dos poetas do cancioneiro que explica o bar impregnado de patético de tantas canções. Ari Barroso, por exemplo, em seu samba-bolero “Risque” (“meu nome do seu caderno”) entra no clima, mas trata de atenuá-lo: “Mas, se algum dia, talvez, a saudade apertar, // não se perturbe, afogue a saudade nos copos de um bar.” No tango de Herivelto a situação se desenfreia: “...deste bar alguém gritava com ironia, // entra mano, que o fulano vai pagar...”

Enquanto isso, na “cantina” de Lila Downs alguém implora à “teibolera”: “Cantame Tacha uma rancherita // porque el recuerdo me va a matar // cantame Tacha, de esas bonitas, // de esas que a un hombre // lo  hacen llorar...”

“Entre copa y copa se acaba mi vida, // llorando borracho su pérfido amor...” Aqui, o ressentimento do protagonista de uma canção de Felipe Valdés Leal também remete ao clima da “cantina” mexicana e ao patético universal.

A manchete que encerra a “Ronda” de Vanzolini é de incomparável radicalismo: “E nesse dia, então, vai dar na primeira edição // “Cena de sangue num bar // da Avenida São João”.

Em tocante paragoge, o grande Enrique Santos Discepolo se dirige ao “cafetin”, não como a um estabelecimento que sirva bebidas e “otras coistas”,  mas entidade sensível e plena de espírito: “Como olvidarte en esta queja, // cafetin de Buenos Aires, si sos lo único en La vida // que se pareció a mi vieja...” Quando era mais jovem, em outra composição, ofereceu o porre como alternativa ao suicídio: “Mirad, si no és pa suicidarse, // que por este cachivache, // sea lo que soy! // Esta noche me emboracho bien, // me mamo bien mamao // pa no pensar...”

“E às pessoas que eu detesto // diga sempre que eu não presto, // que meu lar é um botequim...” O Noel de “Último desejo”, que tangencia o patético, nem parece o mesmo daquela “Conversa de botequim”, em que remete à alegre descontração de um bar de verdade, estendendo-se em demandas, algumas bem esdrúxulas, ao garçom que, sem mais, toma de contraponto e ainda o esculhamba: “Se você ficar limpando a mesa // eu me levanto e não pago a despesa...”

A filha de um blogueiro ocioso, que, por esses dias de final de inverno por lá, andava, um tanto entediada, na friagem cinzenta e plácida de ruas da Jutlândia, em mensagem eletrônica queixava-se da pasmaceira do lugar. O quê dizer? Meu amigo Gregório Cisneros já advertira com autoridade: “Hay mas bares em la Calle Atocha de Madrid que en todo el reino de Dinamarca.”

Olha lá que Santê, nesse quesito, ganha fácil da Rua Atocha.

(NM)


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Todos os dias da Mulher (*)


As fadas e as bruxas das primeiras histórias, a voz mansa e afetuosa da avó; sempre jovens, sempre lindas, as professoras da primeira escola, inefável presença vida afora, no afeto e na memória; namoradas, namorada, a companheira, “mulher de amor” cujos braços, como na canção desesperada de Neruda, “me acogieron” quando “era la negra, negra soledad de las islas”, e as amigas de sempre, algumas que a gente nem sabe por onde andam.  

Mulheres, mulher, a mulher, assim, nominativamente ou num acusativo banal, abstração. E, no entanto, delas é o primado da fonte e o do riacho e o primado do mar. Sem mulher que se banhe nele, para quê o verdor calmo das brandas lagoas? Seu toque demiúrgico, materializador dá razão de ser às águas que escorrem com estrépito de altas montanhas, e substância e sentido aos vales, floridos ou de candentes lágrimas que, incidentalmente, cumpre-nos atravessar.

A aura misteriosa, o fascínio arrebatador, a irrecorrível vertigem, quanta prenda!  Mais o Sol, a Lua, as estrelas, os solstícios de Verão, os equinócios de Primavera!...  Assim, a noite, o dia, cada noite, cada dia, as horas, a Aurora, oh!  dourados amanheceres,  tardes radiantes ou mesmo uma ou outra que um Outono frio resolveu de repente envolver em névoa! E os crepúsculos, sobretudo aqueles profundamente azuis.

Oceânica, múltipla, protêica, qualquer mulher pode, quando quer, transformar, por exemplo, em alegre delfim o mais taciturno mergulhão. Feitiçaria, magia, sabe como é. Ou, simplesmente, ferir de ausência um marinheiro incauto, ferir tão fundo que, incontinênti, ele vira Robinson Crusoé. Mas sempre há um momento de embarcar e, sem cuidado demais, deixar-se levar ao sabor de suaves correntes e, panos ao vento, divagar, divagar em caravela de hipérbole, branca, branca, de papel crepom. (NM)


(*)  O grafite que ilustra a postagem foi “pirateado” do blogue “De Titanio e Porcelana”, de minha amiga Ana Ruiz, de Jerez de La Frontera, que o achou no sítio “Acción Poética” (Chile). Há instâncias que recusam a primazia feminina. Paciência, pois não têm a menor graça. O blogueiro, porém, sempre a reconheceu, como o grafiteiro, que desvela na parede o seu critério excelente.