domingo, 26 de fevereiro de 2012
Diamantina, Diamantina! Sonora, amável e cordial
Diamantina ainda cultiva a cordialidade e a gentileza segundo o antigo metro mineiro. A distância que conteve e, de certo modo ainda contem, a invasão dos turistas e de influências externas em geral, preserva esse traço coletivo que foi tão marcante em nossa velha província, mas anda um tanto desbotado. Querem um mineiro gentil e cordial? Busquem-no em Diamantina, que lá ainda é fácil de achar. A cidade desdobra-se em ruazinhas estreitas, algumas nem tanto, que se amoldam aos caprichos de ladeiras de puro encanto – às vezes uma ampla e ensolarada praça – que escorrem do repuxo do Espinhaço que a ampara e agasalha, e que mimou o antigo Arraial do Tijuco com suas mais brilhantes prendas: crisólitos, ametistas, turmalinas, águas marinhas e, claro, diamantes, diamantes, diamantes...
Com seu casario muito bem conservado perfilando sóbria e refinada elegânciacolonial, a cidade integra-se numa paisagem única que, talvez, como nenhuma outra no Brasil, guarde reminiscências telúricas tão vívidas da grande batalha que os Titãs empreenderam para a conquista do Céu a pedradas. As forças ctônicas são manifestas por toda parte, mas aquela irremissível e unânime inclinação dos rochedos do grande maciço para o norte é realmente impressionante. Dá até dá vontade de acreditar nos geólogos, que afirmam que, em tempos pangéicos, o Espinhaço esteve ligado à cordilheira do Himalaia!
Hora de cantar, cantar
Tudo é bonito na cidade alegre e colorida, cheia de sonoridades, as mais gratas, passarinho no arvoredo dos quintais, oboé, viola, violino, garota cantando na janela, o rádio meio longe tocando “Elvira escuta”... A gente pode até achar que é tudo por causa da Vesperata, evento em que dezenas de músicos se assomam às varandas dos grandes sobrados da Rua da Quitanda com seus instrumentos, atentos à regência de dois ou três maestros que se alternam sobre pequena plataforma no meio da multidão lá embaixo. É uma serenata invertida, os músicos na janela, os ouvintes na rua.
(VESPERATA)
Mas a Vesperata é apenasuma apoteótica síntese da musicalidade dos diamantinenses, que afirmam, com gosto, que em cada casa da cidade existe pelo menos um músico. Eles tocam seus instrumentos e cantam, no mínimo para cumprir seu destino de músicos, nas ruas, becos, ladeiras, bares, no Mercado - que primor de mercado! – nas praças e nas igrejas. Na Vesperata, os melhores e mais qualificados se unem para apresentar um variado e requintado repertório que inclui cancioneiro do Brasil e grandes temas internacionais: Piaf, Armstrong, Agustín Lara, Gardel e Le Pera, Manuel de Falla... O público da Vesperata, que sempre interage com a música, chega ao transe e à catarse, sobretudo com as canções tradicionais de Diamantina, “Amo-te muito”, “O Bardo” e, por inescapável remissão ao presidente JK, o mais ilustre, e o mais querido diamantinense, o “Peixe Vivo”. Todo mundo canta junto, batendo palmas: “Zum, zum, zum, lá no meio do mar...”
A Vesperata ocorre uma vez por mês, sempre num sábado, de abril a outubro, quando a possibilidade de chuva é menor. Vale a pena percorrer os trezentos e poucos quilômetros de BH a Diamantina para ver e ouvir. É uma experiência emocionante. Mas emoção, emoção boa, alegria e encantamento, é o que não falta em Diamantina, em seu entorno de penedia altiva, encachoeirado; nos distritos de Biribiri e Milho Verde; na antiga estrada empedrada pelas mãos de escravos; e um pouco longe, tem até garimpo de verdade pra quem queira ver. Se a gente sai andando daqui para ali, chega uma hora que vem uma sede danada, e fome. Então descobre cerveja boa, boa cachaça, e a rica culinária do Vale do Jequitinhonha. É comer, beber, regalar-se, como convém à melhor democracia.
Como controlar o controlador
Os diamantinenses adoram ouvir e contar histórias. Histórias de JK, de garimpeiros, escravos, uma outra história de padre. Pudera! Suas ruas, praças, igrejas, são todas cheias de histórias, as casas... Algumas têm mais, e a da Chica da Silva, que agora é museu, é toda história. Minha amiga Maria Luísa encantou-se com essa mulher inacreditável. Imagine uma mulher negra, nascida escrava nuns cafundós do Brasil do século XVIII e acumular tanto poder, simplesmente pelo fascínio que, femininamente, impôs a João Fernandes de Oliveira, o contratador de Diamantes que exercia, em nome da Coroa portuguesa, o poder absoluto no Arraial do Tijuco e tinha o controle de todo o Norte da Província das Minas Gerais. Com seu humor andaluz – Maria Luisa é de Sevilha e foi quem fez as fotos que ilustram este texto – achou simplesmente admirável que Chica da Silva tenha, em tais condições, materializado um ideal feminino universal: “Controlar o controlador, simples, não?”.
Histórias de contar pra turista
Turista também adora ouvir histórias e as agências treinam os guias, apetrechando-os de um anedotário básico, que vão repetindo a cada grupo, sempre com o mesmo desfecho, risos, uma ou outra gargalhada. Um guia jovem, dezoito, vinte anos, por aí, ia conduzindo um pequeno grupo pelo centro histórico, Rua da Quitanda acima, até onde, à direita, abre-se uma ruazinha estreita. “Aqui é o Beco do Mota que, nem faz muito tempo era a parte alegre da cidade, alegre e mal-afamada. As moças de família não podiam nem olhar para este lado, e os homens evitavam ser vistos entrando ou saindo do beco”. Todo esse “understatement” é artificioso, para turista, porque o povo do Jequitinhonha, o de Diamantina, inclusive, não tem esse tipo de frescura e, sem o treinamento, o mesmo rapaz teria dito apenas que o Beco do Mota era zona de mulherio, beco de putas, sem se escandalizar nem achar que estaria escandalizando.
Aí vem a história: “Contam – disse o rapaz – que havia um obstetra muito respeitado em Diamantina e em toda a região, o doutor Lomelino do Couto. Lá pelos anos 40 ou 50 ele veio atender um parto, altas horas da noite, aqui no beco. Foi muito complicado e só terminou com o dia já querendo amanhecer. Quando ia embora, passou em frente à Sé Diocesana, a igreja matriz, ali perto, onde um grupo de beatos e beatas formavam um círculo em torno do padre que, logo mais, celebraria a missa das seis.”
Alguém interpelou-o com certo desplante:
– O doutor pode dizer de onde é que está vindo a essas horas?
O rapaz não especulou a respeito, nem era o caso. Mas é de supor que o doutor estava cansado. Trabalhos de parto, quando a natureza não os resolve “di prima”, sobram para a parturiente e para o parteiro. E é de se supor que, mineiro de Diamantina, empenhou-se em não mostrar toda sua indignação aos guardiães da virtude. Terá respondido com inflexão comedida, comme il faut, sem ser duro demais nem deixar correr frouxo:
– Da puta que pariu!
A anedota é recorrente e qualquer pessoa razoavelmente brevetada em botequim, duzentas, trezentas horas de vôo, tê-la-á ouvido mais de uma vez, em diversos contextos, com uma ou outra variante, mas sempre funciona, e os turistas, quase todos, acharam a maior graça, riram que só você vendo. Porém, contado ali, na boca do Beco do Mota, o velho tema pôde suscitar imagens de uma cena gorkiana: Madrugada escura no beco silencioso. Moças alegres e de olhos muito tristes embalam com suaves cantigas num quartinho mal-iluminado e frio de uma casa modesta, a criança que, através da passagem estreita para a vida, as mão generosas do doutor Lomelino trouxeram em segurança a este mundo sem Deus. (NM)
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