terça-feira, 3 de julho de 2012

Já ninguém se chama Guiomar

Desde uma mesa de lanchonete, foi possível observar um rapaz chegar de mansinho e puxar conversa com a moça que, solitária, ocupava a mesa ao lado. – Olá, posso sentar um pouquinho? Ela assentiu, tímida, apenas balançando a cabeça. Mais desenvolto, ele disse: – Linda! Você é linda. Como é que você se chama? – Guiomar. Meu nome é Guiomar, repetiu. Fingindo perplexidade, ele retrucou: – Quê que é isso? Ninguém mais se chama “Guiomar”.

Ficou nisso,

porque o garçom chegou com a conta, e a atenção foi para ele, mas a asserção bizarra não se esvaeceu. Mas foi fácil comprovar que, embora não se trate mais de um nome da moda –  meninas hoje são batizadas de “Luísa”, “Isabela”, “Ana Carolina”, “Ana Letícia”, por aí – não está totalmente fora de linha como, por exemplo, “Urraca”, que tantas damas portuguesas e castelhanas levaram orgulhosamente em séculos, digamos, “mais pretéritos”. Ainda tem muita “Guiomar”. Só na lista telefônica de BH elas são 98.

Melhor que consultar catálogos, foi aceitar a sugestão de uma “visita”, ainda que breve, à poesia vital, eterna, de Antonio Machado, de voltar àqueles versos de seus Provérbios y cantares XXIX, em Campos de Castilla, que o cantor Joan Manuel Serrat, com voz poderosa, expandiu até os limites do Universo:

Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
Se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.


Depois, sim, as Canciones de Guiomar, que a gente lê, relê, de novo, e não se cansa de jeito nenhum.

Nome de cancioneiro

“Guiomar” aparece com freqüência em nosso cancioneiro, inclusive em composições bastante recentes, como no “partido do meu compadre Nei Lopes”, a canção e o compadre do Zeca Pagodinho: “Num pagode no Salgueiro, conheci a Guiomar” que “Devagar, bem miudinho, me chamou pra vadiar”. Depois sumiu e deixou transtornado o pagodeiro: “Já faz tanto tempo, mas, de vez em quando // Eu acordo chorando, sem saber por que. // Ô Guiomar, Guiomar!”

A canção “Sereia Guiomar”, de Délcio Carvalho e Dona Ivone Lara, conta história de pescador: “A sereia Guiomar mora em alto mar // E como é bonito, meu Deus, // O canto dessa sereia.” O problema é que “Manoel pescador // Ouvindo um canto tão lindo // logo se apaixonou.” E, claro, se afogou.

Só pra dar mais consistência à conversa, segundo o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, Guiomar é um prenome feminino da onomástica portuguesa, e castelhana, por supuesto, provavelmente de origem germânica, composto de wig e mar, combinação que corresponderia mais ou menos a “célebre combate”. Desde o Século XIII o nome Guiomar tem registro em nosso idioma, procedente do francês Guimard.

Admiração de Manrique

É mais do que conhecida a admiração de Antonio Machado por Don Jorge Manrique, o guerreiro e poeta que distinguiu Guiomar, sua mulher, com acrósticos e jogos de palavras complicados, de uso cortesão em seu tempo, como aquele pra lá de artificioso em que “puso el nombre de su esposa, y assimismo nombrados los linajes de los quatro costados della, que son Castañeda, Ayala, Silva, Menezes”. Também, apaixonado, dedicou-lhe esparzas, dezyres y canciones. A anotação que segue é apenas para situá-lo no tempo e no espaço: nasceu por volta de 1440 na vila de Paredes de Nava, em Palência, e morreu em batalha às portas do castelo de Garci-Muñoz, em Cuenca no ano de 1475, como valoroso capitão dos Reis Católicos.

Não por acaso, pois, o nome da mulher de Manrique virou pseudônimo de Pilar de Valderrama, segunda e última paixão na vida de Antonio Machado. Embora tivessem um envolvimento amoroso totalmente platônico, esse era um artifício necessário, já que ela era mulher casada quando se conheceram, em 1928. Assim, duplamente tangido pelos deuses, “Guiomar”, que nome mais afortunado!

Afirmação de Guiomar

Não é de estranhar que houvesse quem achasse que o romance entre Machado e Guiomar fosse ficção, pura invenção do Poeta. Hoje, porém, alegra-nos que permaneça por inteiro, vivo, para sempre, nos poemas – ela também era poeta – e na correspondência que mantiveram ao longo de sete anos. Só mesmo um evento desastroso como a Guerra Civil poderia levá-lo, como levou, à ruptura definitiva. Pensar que nunca mais eles puderam ver-se! E doloroso é lembrar que Machado morreu em 1939, entre refugiados espanhóis na fronteira da França, no coração a imensa tristeza esmagadora da queda da República e a ausência de Guiomar.

Pilar sobreviveu de muito a Machado. A morte colheu-a em 1979, aos 81 anos. Pelo menos não lhe negou a oportunidade de, em 1975, ano em que se celebrou o centenário do Poeta, escrever o livro “Si, soy Guiomar. Memorias de mi vida”,  sem quebrar a rígida discrição que sempre se impuseram. Por expressa recomendação dela, o livro só poderia ser publicado depois de sua morte e, de fato, veio a público em 1981. Pois é. Nem Pilar de Valderrama poderia guardar por toda a eternidade um segredo desses, ela, que mereceu cada verso, cada palavra, que lhe dedicou o Poeta de “Campos de Castilla”, e cada uma daquelas “Canciones de Guiomar”.

Uma canção à “Guiomar” de cada um

Manrique:

Porque estando él durmiendo le besó su amiga

Vos cometistes trayción,
pues me heristes, durmiendo,
d´una herida qu´entiendo
el desseo d´otra tal
herida como me distes,
que no la llaga ni mal
ni daño que me hezistes.

Perdono la muerte mia;
mas con tales condiciones,
que de  tales trayciones
cometáys mil cada dia
pero todas contra mi,
porque, d´aquesta manera,
no me plaze que otro muera,
pues que yo lo merescí.

          Fin

Más plazer es que pesar
herida c´otro mal sana:
quien durmiendo tanto gana
nunca deve despertar.

Machado:

Hoy escribo en mil celda de viajero,
a la hora de una cita imaginaria.
Rompe el iris al aire el aguacero,
y al monte su tristeza planetária.
Sol y campanas en la vieja torre.
¡Oh tarde viva y quieta
que opuso al “panta rhei” su “nada corre”,
tarde niña que amaba su poeta!
¡Y dia adolescente
– ojos claros y músculos morenos –,
cuando pensaste a amor, junto a la fuente,
besar tus lábios y apresar tus senos!
Todo a esta luz de abril se transparenta;
todo en el hoje de ayer, el Todavia
que en sus maduras horas
el tiempo canta y cuenta,
se funde en una sola melodia,
que es un coro de tardes y de auroras.
A ti, Guiomar, esta nostalgia mia.

Barroca presunção

Manhã e estrela; roseira e joaninha; flor do céu, ligeira andorinha; lívida ametista, flor de Minas; fada e madrinha, da noite e do dia: inscrever teu nome entre flores altas, perfumadas, nos jardins de Semíramis, ou no alabastro claro de uma coluna da rainha Nefertite? Melhor, talvez, entre as esferas altas onde cintilam a estrela da Sulamita dos Cantares e as de Laura e Beatriz, a de Maria Bonita... e reverberam, minha amiga, por artes de Manrique e Machado, as gratas sonoridades de “Guiomar”! Anseio tolo? Não. Antes, devaneio doido que o afeto instila. Estro, porém, cadê? (NM)