quarta-feira, 3 de abril de 2013

Pequeno tributo a Carlos Alberto


Carlos Alberto foi embora. Com a mesma dignidade e compostura que manteve ao longo da vida, aos 78 anos, depois de haver lutado com valor admirável contra um inimigo cruel e implacável. Recebeu a Parca sem amargura nem ressentimento, limpas, as mãos, a alma limpa, a vida exemplar até o último momento. Lutou muito pela vida, mas resignou-se estoicamente à Fatalidade, que poderia reconhecer em quaisquer circunstâncias, posto que, embora natural de Belo Horizonte, era filho de pai e mãe portugueses. Ao se aproximarem os mensageiros dela, ele os teria reconhecido, mesmo se não tivesse sido catedrático de Clínica e Cardiologia da Faculdade de Medicina da UFMG e médico dos mais qualificados. Ele tinha  a paixão da Medicina, que exerceu e dignificou como professor ou no prestigioso consultório que manteve por mais de 40 anos.

Numa manhã de domingo, dos domingos lá do Tip Top, ele contou, sem qualquer afetação ou jactância, antes com o humor refinado e sutil com que podia enriquecer qualquer conversa banal, que havia auscultado vida afora corações aos milhares, corações de jovens, de velhos, de homens, mulheres e crianças. Meticuloso, chegara a um número estimado cuja ordem de grandeza perdeu-se em desvãos da memória, mas a referência que ficou é de um número estratosférico.

Assim era o doutor Carlos Alberto, a vida a auscultar corações, o que continuou fazendo mesmo depois de fechar seu consultório de médico e mesmo sem estetoscópio. Ele auscultava, auscultava, sempre com o maior interesse humano em cada pessoa que se acercasse dele, cujas vicissitudes se esforçava em compreender e aceitar. Na manhã do Domingo de Páscoa, cercado de muito afeto, ele acolheu com serenidade a Parca que, respeitosa de sua inteligência brilhante, da lucidez cabal de homem culto e sábio, até o último instante permitiu-lhe conservar em toda inteireza.

Carlos Alberto de Barros Santos tinha, também, a paixão da literatura, que cultivou desde a juventude e, como poucos, conhecia o caminho dos poetas, vivamente conservados em sua memória de prodígio versos e mais versos, os mais candentes. Vê-lo e ouvi-lo dizer de cor textos inteiros de Shakespeare, poemas de Poe ou John Donne, de Keats, de quem gostava tanto, era parte do privilégio de sua convivência. Também podia declamar Bandeira, Drummond, Abgar Renault ou cantar, embora não fosse propriamente cantor, qualquer composição relevante de nosso cancioneiro popular. Com as letras e o idioma francês tinha a maior intimidade.

Há pouco mais de dois anos, este O&B começou a ser veiculado na rede eletrônica e, com generosidade e despojamento, Carlos Alberto iniciou a colaboração só interrompida pelas insuperáveis adversidades que, de uns meses para cá, passou a enfrentar. Foram mais de cem textos, incluindo crônicas, ensaios, um ou outro poema, cartas, artigos, comentários, tudo impregnado do mais denso e intenso humanismo, qualificado por sua grande cultura e erudição.

No dia 1.o de janeiro deste ano O&B publicou o último texto enviado por Carlos Alberto, primoroso, brilhante, que em sua brevidade oferece toda a dimensão do homem sábio, consciente do precário da existência:

Caminho de flores

– O quê vamos beber neste fim de ano? – dizia-me um amigo que já não está neste mundo.  

– O que aparecer, respondia-lhe. Não era uma resposta convencional, era pura verdade: cerveja, uísque, vinho, pinga, o que surgisse.

Pois bem, fim de ano é isso mesmo, o que for oferecido a gente manda pra dentro, e tudo, como no poema drummoniano  é “farra honesta acabando em confidência”. Afinal, se não tivesse outra importância – e acho que não tem – a passagem de um ano para outro, empanturrada de bebidas alcoólicas, serve ao menos para renovar esperanças, aquelas mesmas que começamos a cultivar no início da vida consciente, envoltos na clepsidra em que nos escoamos e – Quem sabe? –  para nos lembrar de que somos feitos de matéria perecível.

Dirão os racionalistas, entre eles eu mesmo: é somente uma data, o tempo não para nem divide nada. É verdade. Só que a marcação serve para dimensionar o lugar que nos foi imposto sem sabermos pra quê nem por quê.

Durante essa caminhada, por vezes tortuosa e agreste, convoco a todos para que procurem divisar, acima de tudo, as árvores floridas que a circundam. (Carlos Alberto)     

A contribuição de Carlos Alberto de Barros Santos deu a Ociosidades & Bagatelas, que começou como uma brincadeira, o vigor que só uma inteligência poderosa como a dele poderia ter injetado. O blogue passou a ser algo que merecia ser lido, e nossos amigos responderam com um número de acessos que já se aproxima dos 16 mil. Pois é. Na manhã do Domingo de Páscoa, Carlos Alberto foi embora. Serenamente. (NM)