Carlos
Alberto foi embora. Com a mesma dignidade e compostura que manteve ao longo da vida, aos 78 anos, depois de haver lutado com valor admirável contra um inimigo cruel e implacável. Recebeu a Parca sem amargura nem ressentimento, limpas, as
mãos, a alma limpa, a vida exemplar até o último momento. Lutou muito pela
vida, mas resignou-se estoicamente à Fatalidade, que poderia reconhecer em
quaisquer circunstâncias, posto que, embora natural de Belo Horizonte, era
filho de pai e mãe portugueses. Ao se aproximarem os mensageiros dela, ele os
teria reconhecido, mesmo se não tivesse sido catedrático de Clínica e
Cardiologia da Faculdade de Medicina da UFMG e médico dos mais qualificados. Ele tinha a paixão da Medicina,
que exerceu e dignificou como professor ou no prestigioso consultório que
manteve por mais de 40 anos.
Numa
manhã de domingo, dos domingos lá do Tip Top, ele contou, sem qualquer afetação
ou jactância, antes com o humor refinado e sutil com que podia enriquecer
qualquer conversa banal, que havia auscultado vida afora corações aos milhares,
corações de jovens, de velhos, de homens, mulheres e crianças. Meticuloso,
chegara a um número estimado cuja ordem de grandeza perdeu-se em desvãos da
memória, mas a referência que ficou é de um número estratosférico.
Assim
era o doutor Carlos Alberto, a vida a auscultar corações, o que continuou
fazendo mesmo depois de fechar seu consultório de médico e mesmo sem
estetoscópio. Ele auscultava, auscultava, sempre com o maior interesse humano
em cada pessoa que se acercasse dele, cujas vicissitudes se esforçava em
compreender e aceitar. Na manhã do Domingo de Páscoa, cercado de muito afeto,
ele acolheu com serenidade a Parca que, respeitosa de sua inteligência brilhante,
da lucidez cabal de homem culto e sábio, até o último instante permitiu-lhe
conservar em toda inteireza.
Carlos
Alberto de Barros Santos tinha, também, a paixão da literatura, que cultivou
desde a juventude e, como poucos, conhecia o caminho dos poetas, vivamente
conservados em sua memória de prodígio versos e mais versos, os mais candentes.
Vê-lo e ouvi-lo dizer de cor textos inteiros de Shakespeare, poemas de Poe ou
John Donne, de Keats, de quem gostava tanto, era parte do privilégio de sua
convivência. Também podia declamar Bandeira, Drummond, Abgar Renault ou cantar,
embora não fosse propriamente cantor, qualquer composição relevante de nosso
cancioneiro popular. Com as letras e o idioma francês tinha a maior intimidade.
Há
pouco mais de dois anos, este O&B começou a ser veiculado na rede
eletrônica e, com generosidade e despojamento, Carlos Alberto iniciou a
colaboração só interrompida pelas insuperáveis adversidades que, de uns meses
para cá, passou a enfrentar. Foram mais de cem textos, incluindo crônicas,
ensaios, um ou outro poema, cartas, artigos, comentários, tudo impregnado do
mais denso e intenso humanismo, qualificado por sua grande cultura e erudição.
No
dia 1.o de janeiro deste ano O&B publicou o último texto enviado por Carlos
Alberto, primoroso, brilhante, que em sua brevidade oferece toda a dimensão do
homem sábio, consciente do precário da existência:
Caminho de
flores
– O quê
vamos beber neste fim de ano? – dizia-me um amigo que já não está neste
mundo.
– O que aparecer, respondia-lhe. Não era uma
resposta convencional, era pura verdade: cerveja, uísque, vinho, pinga, o que
surgisse.
Pois bem, fim de ano é isso mesmo, o que for
oferecido a gente manda pra dentro, e tudo, como no poema drummoniano é
“farra honesta acabando em confidência”. Afinal, se não tivesse outra
importância – e acho que não tem – a passagem de um ano para outro,
empanturrada de bebidas alcoólicas, serve ao menos para renovar esperanças,
aquelas mesmas que começamos a cultivar no início da vida consciente, envoltos
na clepsidra em que nos escoamos e – Quem sabe? – para nos lembrar de que
somos feitos de matéria perecível.
Dirão os racionalistas, entre eles eu mesmo: é
somente uma data, o tempo não para nem divide nada. É verdade. Só que a
marcação serve para dimensionar o lugar que nos foi imposto sem sabermos pra
quê nem por quê.
Durante essa caminhada, por vezes tortuosa e
agreste, convoco a todos para que procurem divisar, acima de tudo, as árvores
floridas que a circundam. (Carlos Alberto)
A
contribuição de Carlos Alberto de Barros Santos deu a Ociosidades &
Bagatelas, que começou como uma brincadeira, o vigor que só uma inteligência
poderosa como a dele poderia ter injetado. O blogue passou a ser algo que
merecia ser lido, e nossos amigos responderam com um número de acessos que já
se aproxima dos 16 mil. Pois é. Na manhã do Domingo de Páscoa, Carlos Alberto foi
embora. Serenamente. (NM)