segunda-feira, 3 de agosto de 2020

A quarentena de Fiammetta, Pampineia, Filomena, Nefile...


(...) tínhamos atingido, já o ano bem farto da Encarnação do Filho de Deus, de mil trezentos e quarenta e oito, quando, na mui excelsa cidade de Florença, cuja beleza supera a de qualquer outra da Itália, sobreveio a mortífera pestilência. Por capricho do Céu ou em razão de nossas iniquidades, a peste que recaiu sobre os homens como justa manifestação da cólera divina, começara havia alguns anos nas regiões orientais, ceifando muitas vidas antes de, incansável, estender-se para o Ocidente.

De nada valeram em Florença quaisquer medidas de precaução. (...) A cidade tratou de limpar a muita sujeira das ruas e proibiu a entrada de pessoas enfermas. Não adiantaram os conselhos sobre medidas de higiene nem as súplicas dos humildes, em grandes grupos, às vezes em grandes procissões, às vezes apenas devotos isolados. (...) a Peste, de extrema violência, atingia os sãos a partir dos doentes sempre que estivessem juntos.

Do grimório de São Cipriano

Aqui, uma digressão breve:  os florentinos acendiam velas, queimavam incenso e rezavam com fervor para tudo quanto era santo e, certamente, teriam recorrido a feitiços e bruxarias de suas antigas tradições pagãs que, na hora de sobreviver, heresia também vale. É provável que, naqueles meados do Século XIV, conhecessem o grimório de São Cipriano, com as orações infalíveis do seu receituário para prevenir ou curar nossos males de corpo, alma e coração, mas não há registro, não no Decamerão, de que a elas tenham recorrido para enfrentar a Peste. 

Tem aquela poderosa invocação a São Pedro para fechar, com as chaves do céu, o corpo e qualquer espírito desvalido a Todo o Mal, áscaris lumbricoide, mordida de cobra e de cachorro doido, coice de mula, lepra e sífilis, phthirius púbis, bicho-de-pé e chulé, bactérias e vírus em geral, o escambau. Em tese, o Demônio – tudo que é ruim, prejudicial, ofensivo, aborrecido, chato, desleal, asqueroso – não poderia penetrar na criatura que a reza do bispo de Antioquia estivesse a fim de defender. “O Demônio não pode mais entrar neste corpo, templo do Espírito Santo. Amém.” Estas palavras concluem a invocação, que deve ser feita à luz de uma vela e, após, o invocador tem de escrever numa folha de papel sete nomes do Maligno: Belzebu, Baal, Belgefor, Astarot, Set do Egito e o Cão da Moléstia. Queimar o papel com o fogo da vela e já está.

Esconjuro, cáspite, vade retro! Para trás, Satanás!

Se funciona contra grandes, médias e pequenas gripes, afecções respiratórias e Covides em geral é mais uma questão de fé, mas, ao fim e ao cabo, mesmo se não funcionar ainda é melhor que cloroquina, porque não tem efeitos colaterais nem quaisquer contraindicações. Viva São Cipriano, viva!

Histórias para distrair a Parca

Giovanni Boccaccio compara a propagação da Peste à do fogo, que “passa às coisas secas, ou untadas, estando elas muito próximas. (...) não apenas o conversar e o cuidar de enfermos contagiavam os sãos: o simples ato de mexer nas roupas ou em qualquer outra coisa que tivesse sido tocada ou utilizada pelos enfermos parecia transferir a Peste.“ O afã de resguardarem-se do contágio impôs todo tipo de quarentena, jejuando e rezando, uns, outros bebendo  e comendo desbragadamente. Mas a mortandade ia assumindo, cada vez mais, proporções apocalípticas. Então, não poucos florentinos preferiam entregar-se a boas práticas de luxúria.

Boccaccio conta, vocês se lembram, como, em clara manhã de terça-feira, na Igreja de Santa Maria Novela quase deserta, o acaso reuniu sete florentinas, Pampineia, Fiammetta, Filomena, Emília, Laurinha, Nefile e Elisa, todas jovens, todas belas. Incontinenti, elas começaram a conversar, a Peste, claro, determinando os rumos da conversa. De repente, surgiram Pânfilo, Filóstrato e Dioneio, rapazes de bom parecer, índole e espíritos os mais excelentes, que aquiesceram em refugiar-se com elas em confortável casa de campo nos arredores de Florença, para não terem de ficar o tempo todo encarando a Implacável.

Como é sabido e consabido, haveriam de entreter-se contando histórias, histórias que o gênio de Boccaccio reuniu no Decamerão, as quais, decorridos mais de setecentos anos, ainda nos confortam e consolam na miséria covidiana de nossa quarentena. Ah, Fiammetta, Pampineia, Nefile!...
Uma demasia de dias santos

A gente abre ao acaso o Decamerão e vêm aquelas histórias saborosas, em que, por exemplo, um folgado se finge de surdo-mudo para ter acesso privilegiado a um convento de mulheres; noutra, uma mulher de muita presença esconde o jovem amante num tonel e livra seu marido do constrangimento de um flagrante de adultério... Bálsamo para o espírito reler a décima novela da segunda jornada do grande livro de Giovanni Boccaccio, em que a doce Filomena conta como Ricardo da Quinzica, pisano podre de rico, porém velho, teve sua jovem esposa, Bartolomeia, sequestrada por um pirata.

O sujeito submetera a mulher a um complexo calendário de festividades religiosas, às quais acrescentou muitas sextas-feiras, sábados, domingos do Senhor, a quaresma inteira, em que homem e mulher deveriam abster-se de qualquer tipo de contato um com outro. Ele descobriu para onde o pirata a levara e foi ao resgate disposto a pagar qualquer quantia. Paganino da Mare, o pirata, recebeu-o com cordialidade e aceitou devolver Bartolomeia sem cobrar nada, desde que ela quisesse ir com ele. Ela não quis de jeito nenhum e ironizou o grande conhecimento de dias santos, jejuns e vigílias de seu antigo marido: – Se os trabalhadores das suas terras observarem tantos feriados como os que impunha ao cultivo do meu pequeno jardim, o senhor não haveria de ter um único grão de colheita.

Aí ela tripudiou de vez: – Daquela porta para dentro, neste quarto, não tem isso de sexta-feira, nem vigília, têmporas ou quaresma. Dia e noite, aqui se trabalha e a lã se fia (...)