(...) tínhamos atingido, já o ano bem farto da Encarnação
do Filho de Deus, de mil trezentos e quarenta e oito, quando, na mui excelsa
cidade de Florença, cuja beleza supera a de qualquer outra da Itália, sobreveio
a mortífera pestilência. Por
capricho do Céu ou em razão de nossas iniquidades, a peste que recaiu sobre os
homens como justa manifestação da cólera divina, começara havia alguns anos nas
regiões orientais, ceifando muitas vidas antes de, incansável, estender-se para
o Ocidente.
De nada
valeram em Florença quaisquer medidas de precaução. (...) A cidade tratou de
limpar a muita sujeira das ruas e proibiu a entrada de pessoas enfermas. Não
adiantaram os conselhos sobre medidas de higiene nem as súplicas dos humildes,
em grandes grupos, às vezes em grandes procissões, às vezes apenas devotos
isolados. (...) a Peste, de extrema violência, atingia os sãos a partir dos
doentes sempre que estivessem juntos.
Do grimório
de São Cipriano
Tem aquela poderosa
invocação a São Pedro para fechar, com as chaves do céu, o corpo e qualquer
espírito desvalido a Todo o Mal, áscaris lumbricoide, mordida de cobra e de
cachorro doido, coice de mula, lepra e sífilis, phthirius púbis,
bicho-de-pé e chulé, bactérias e vírus em geral, o escambau. Em tese, o Demônio
– tudo que é ruim, prejudicial, ofensivo, aborrecido, chato, desleal, asqueroso
– não poderia penetrar na criatura que a reza do bispo de Antioquia estivesse a
fim de defender. “O Demônio não pode mais entrar neste corpo, templo do
Espírito Santo. Amém.” Estas palavras concluem a invocação, que deve ser feita
à luz de uma vela e, após, o invocador tem de escrever numa folha de papel sete
nomes do Maligno: Belzebu, Baal, Belgefor, Astarot, Set do Egito e o Cão da
Moléstia. Queimar o papel com o fogo da vela e já está.
Esconjuro,
cáspite, vade retro! Para trás, Satanás!
Se funciona
contra grandes, médias e pequenas gripes, afecções respiratórias e Covides em
geral é mais uma questão de fé, mas, ao fim e ao cabo, mesmo se não funcionar
ainda é melhor que cloroquina, porque não tem efeitos colaterais nem quaisquer contraindicações.
Viva São Cipriano, viva!
Histórias
para distrair a Parca
Giovanni
Boccaccio compara a propagação da Peste à do fogo, que “passa às coisas secas,
ou untadas, estando elas muito próximas. (...) não apenas o conversar e o
cuidar de enfermos contagiavam os sãos: o simples ato de mexer nas roupas ou em
qualquer outra coisa que tivesse sido tocada ou utilizada pelos enfermos
parecia transferir a Peste.“ O afã de resguardarem-se do contágio impôs todo
tipo de quarentena, jejuando e rezando, uns, outros bebendo e comendo desbragadamente. Mas a mortandade
ia assumindo, cada vez mais, proporções apocalípticas. Então, não poucos
florentinos preferiam entregar-se a boas práticas de luxúria.
Boccaccio
conta, vocês se lembram, como, em clara manhã de terça-feira, na Igreja de Santa
Maria Novela quase deserta, o acaso reuniu sete florentinas, Pampineia,
Fiammetta, Filomena, Emília, Laurinha, Nefile e Elisa, todas jovens, todas
belas. Incontinenti, elas começaram a conversar, a Peste, claro, determinando os
rumos da conversa. De repente, surgiram Pânfilo, Filóstrato e Dioneio, rapazes
de bom parecer, índole e espíritos os mais excelentes, que aquiesceram em refugiar-se
com elas em confortável casa de campo nos arredores de Florença, para não terem
de ficar o tempo todo encarando a Implacável.
Como é
sabido e consabido, haveriam de entreter-se contando histórias, histórias que o
gênio de Boccaccio reuniu no Decamerão, as quais, decorridos mais de
setecentos anos, ainda nos confortam e consolam na miséria covidiana de nossa
quarentena. Ah, Fiammetta, Pampineia, Nefile!...
Uma demasia de
dias santos
A gente abre
ao acaso o Decamerão e vêm aquelas histórias saborosas, em que, por
exemplo, um folgado se finge de surdo-mudo para ter acesso privilegiado a um
convento de mulheres; noutra, uma mulher de muita presença esconde o jovem amante
num tonel e livra seu marido do constrangimento de um flagrante de adultério...
Bálsamo para o espírito reler a décima novela da segunda jornada do grande
livro de Giovanni Boccaccio, em que a doce Filomena conta como Ricardo da Quinzica, pisano podre de
rico, porém velho, teve sua jovem esposa, Bartolomeia, sequestrada por um
pirata.
O sujeito submetera
a mulher a um complexo calendário de festividades religiosas, às quais
acrescentou muitas sextas-feiras, sábados, domingos do Senhor, a quaresma
inteira, em que homem e mulher deveriam abster-se de qualquer tipo de contato um
com outro. Ele descobriu para onde o pirata a levara e foi ao resgate disposto
a pagar qualquer quantia. Paganino da Mare, o pirata, recebeu-o com
cordialidade e aceitou devolver Bartolomeia sem cobrar nada, desde que ela quisesse
ir com ele. Ela não quis de jeito nenhum e ironizou o grande conhecimento de
dias santos, jejuns e vigílias de seu antigo marido: – Se os trabalhadores
das suas terras observarem tantos feriados como os que impunha ao cultivo do
meu pequeno jardim, o senhor não haveria de ter um único grão de colheita.
Aí ela
tripudiou de vez: – Daquela porta para dentro, neste quarto, não tem isso de
sexta-feira, nem vigília, têmporas ou quaresma. Dia e noite, aqui se trabalha e
a lã se fia (...)