Antes de sua vida desandar, e andou desandando demais, ele era “Pedro Gonçalves da Costa”, nome de fidalgo português, de desembargador da República Velha, quem sabe, o primeiro que perdeu, junto com sua mulinha nova e bem arreada, “pantaneiro”, rédeas bem trançadas, coxinilho, chapéu novo.... E foi logo na primeira vez que apareceu na corrutela. Umas boas talagadas de cachaça e achou de visitar o acampamento de ciganos num pequeno pasto, na saída do arraial, já perto do córrego. Voltou montado num cavalo velho, a arreata desfalcada de alguns itens de prestígio, como os estribos de alpaca.
– O que que é isso, Pedro! Os ciganos lhe passaram a perna.
Naquele mesmo sábado esteve várias vezes naquele acampamento, sempre depois de umas talagadas, o que favorecia os ciganos, afeitos a qualquer tipo de escambo: “Se anima, gadjó, tenho boa proposta pela montaria”; “Gostei da guaiaca, paisano”; “Chapéu bonito, mas a fita parece de mulher”. Começavam os negócios mais ou menos assim, aqueles mestres das trocas improváveis. Fácil para eles conseguir dar uma mula velha por um cavalo novo. O que ninguém viu? A cor do dinheiro de qualquer um deles.
Prejuízo e prestígio a recuperar e, a cada “trama”, pior. Antes de acabar o sábado, cabisbaixo, na maior ressaca, puxava, por uma corda a égua manca e cega de um olho, em pelo, o que sobrara de sua mulinha nova muito bem arreada. Aí, velho, a crueldade implacável dos botequins: Pedro Gonçalves da Costa virou “Pedro Égua”.
De mais novo, tinha andado em muita folia Reis, o que rendia camaradagem e assunto entre ele e o Crisoste, antigo capitão de prestigiosa companhia. Pedro veio se aproximando em passo de velho, devagar. Tinha, então, uns quarenta e poucos anos, mas aparentava sessenta ou mais: cabelos brancos, a cara enrugada, o andar trôpego.
Com a mão direita espalmada, bateu três vezes no lado esquerdo do peito. Pedro repetiu o gesto e estendeu a mão para receber do outro o troco para uma cachaça ou duas, implícito em seu cumprimento devoto e, em seguida, rumou, andando devagar, para o boteco mais próximo.
Tantas perdas, a mula bem arreada, sua riqueza, o nome de certa pompa, sem perder a jovialidade e a alegria que, às vezes, se assomava rutilante em seus olhos azuis! Crisoste gostava do Pedro, seu espírito alegre, ânimo bom. E o tinha em grande conta como cantador. Voz grave, afinada, cantava ou ajudava a cantar nas folias de Reis os temas específicos, nos botecos, modas de viola, com uma prosódia muito pessoal, mas, quem ligava? Só o Ivomar, parceiro eventual de cantoria do Pedro, que aparecia de vez em quando, de férias ou qualquer tipo de folga na faculdade de medicina onde estudava, em Ribeirão Preto. Encampava as “licenças poéticas” do cantador e assumia com gosto as distorções das letras naquela sempre deliciosa prosódia do Sudoeste de Minas, o Pedro na segunda, ele na primeira voz:
Eu nasci numa data feliz // bem dispois do dia dizessêss // por eu ser um menino sem pai // fui criado com o titio Inêss // O titio era cuiabano // no rejume eu tamém me criei // o titio, criador de gado // nessa lida eu tamém costumei // (....) // tinha laço, couro de mateiro, // c`on escapava uma rezz do mangueiro // eu deixava correr trinta dia por mêss // (...)
A indigência irremissível haveria de chegar com um cancro duro devastador. Nem tinha trinta anos quando, no cerne da sua virilidade, conheceu, sem as lembranças ternas da muito sábia Héloise, a miséria de Abelardo, outro Pedro (Pierre de Abélard), em Saint-Denis. Pleno de conformidade, disse ao médico que o atendeu depois que nada mais havia a ser feito:
Esse tipo de escolha não era de todo estranho naquele pequeno universo de garimpeiros, gente ligada à lavoura cafeeira, pequenos comerciantes, retireiros. Sufocado pelo remorso, remorso grande, de haver tomado parte na tocaia fatal contra um amigo que o tinha na maior confiança, Franquilim da Valdomira foi à cachaça com o mesmo afã que levou o Iscariotes à figueira, tendo sido acolhido com a mesma indiferença. Sempre fora gago, mas era conversador, sem se importar com as repetições exasperantes de sílabas e fonemas. Em seus últimos tempos, porém, só o que conseguia era balbuciar:
Com o Pedro foi outra a história. Talvez porque não tivesse remorso pra carregar ele e a Pinga não se houveram assim tão mal e, por um bom tempo, foram levando a vida juntos. A Pinga não foi apressada com o Pedro, mas a alma da cana, espírito puro, eterno, não tem como perpetuar relação com um mortal, mesmo em se tratando de um homem bom. Chega a hora em que os prazos se esgotam. Se a Pinga, ao menos, pudesse oferecer a Pedro Gonçalves da Costa a imortalidade, feito, a Odisseu, a ninfa Calipso! Não, não. Ele também recusaria. (nm)