Voltar à Cantina do Lucas, no
Maletta, Avenida Augusto
de Lima com Rua da Bahia – BH, depois de muitos anos e achar
tudo igual! Mas as caras, poucas, na hora de pouco movimento, eram novas,
irreconhecíveis. Melhor, pelo menos a quem queira povoar as mesas vazias com
fantasmagorias da própria juventude, mero truque, porém eficaz, que a gente vai
aprendendo à medida em que a vida se estende – Ou se encurta, sei lá! – para transformar
ausências em presença e, assim inverter a roda do tempo, impor-lhe, quando absolutamente necessário ao nosso coração, um
conveniente sentido anti-horário. Isso de saudosismo é uma grande bobagem, mas é
aceitável qualquer artifício para reencontrar afetos, desde que não se perca a capacidade
de contemplar as estrelas altas.
Foi chegar lá, bem na entrada
da Augusto de Lima
do Edifício Archangelo Maletta, à esquerda, e deparar com fantasmas, muitos e muito
queridos. Não dá pra enumerar a todos, por isso de chegarem em turbilhão. Mas sempre
é possível nomear os que chegam de mansinho, como o espírito generoso e sábio
do prof. Moacir Latterza, cuja voz
pausada e clara fazia eco a Jacques Maritain e a Alceu de Amoroso Lima, mas ensinava
que a invenção do tambor e a descoberta de suas possibilidades essenciais por
algum primata ancestral, precede o milagre da palavra articulada. E veio a aura
tranqüila e gentil de seu Olímpio, o mítico garçom, com seu sorriso calmo e a
genuína alegria de receber e atender os amigos da casa. E “ouvir” Geraldo Magalhães
compartilhando entusiasmo e emoção sobre a arte de Fellini, que tanto amava, “Dolce
Vita”, “Oito e Meio”, e “Amarcord”, então em exibição em cinemas da cidade.
Você reacende um circuito de
lembranças que, de repente, devolve a entrada do Lincoln Gonçalves e do
Délio Rocha, compenetrados e decididos em direção ao fundo da galeria para,
certamente, pararem no Lua Nova, onde haveriam de refrescar o começo da noite
numa cerveja, desfrutarem seu convívio de velhos amigos e a conversa sempre
inconclusa de jornalista. Também sem alarde, vem a lembrança de Achilles Reis, cronista
de turfe e de outras coisas mais, ativo, quase irrequieto, disposição
excelente, o humor sempre refinado e vivo, aproximando-se na companhia do
Rogério Carnevalli, com quem ainda se pode tomar um chope ou outro lá no Tip
Top. – E então. Você tem uma “barbada” pra mim?
Ele retruca com solicitude: –
Sábado tem bons páreos. Mas não sei se dá pra encarar. Uma pule? Difícil.
Talvez um placê.
Pois é. Mas não eram os
cavalos o que nos aproximava, e sim os tangos, o tango, outra paixão do Achilles,mas
ele misturava as duas coisas. Conheceu nos hipódromos da vida o lendário Irineo
Leguisamo, jocquey preferido de Carlos Galdel, de quem mereceu “Leguisamo
solo”, tango com letra de Alfredo Le Pera, e que mais de uma vez disputou e
venceu o Grande Prêmio Brasil. O papo com Achilles não acabava antes da gente cantarolar “La
Cumparsita”, “Mano a mano”, “Esta noche me emboracho” e, claro, “Por uma
cabeza”: ...que al jurar sonriendo // el
amor que está mentiendo // quema en uma hoguera // todo mi querer... Isso, na Cantina do Lucas ou onde quer que a
gente se encontrasse.
Assim, de um jeito quase
mediúnico, reencontrei na mesa do Lucas onde a gente celebrou a apresentação de
Jesus Cristo Superstar em BH, no início dos anos 70, Tadeu, que atuava na peça,
Tânio, Gilberto Naldi ,
Belmiro Arruda, que também atuou no espetáculo, Estêvão, sujeito miudinho, que
nem chegava ao metro e sessenta, porém um barítono desses de coro de igreja
ortodoxa.
Da pequena “varanda” que se
debruça sobre a rampa de acesso a gente tem uma visão ampla da galeria. Às
vezes, lá no fundo, duas mesas deslocadas do Lua Nova até o outro lado do
grande corredor de acesso, próximo à escada rolante, acolhiam, uma, o Geraldo Magalhães , o
Zé Nava, irmão do grande memorialista, e Amélia. Bebiam devagar a cerveja e
conversavam, conversavam. Literatura e cinema, naturalmente. Na outra, a gente
podia ver, de vez em quando, o Luiz Fernando Perez e o Chico Brant, da sucursal
mineira do Estadão/Jornal da Tarde. Em uma ou outra ocasião, Carlos Pereira, também
jornalista, juntava-se a eles. Lua Nova não tem mais, mas se essa trinca
querida se dispuser a voltar ao Maletta, poderia ser no Lucas ou num dos novos botequins
das recém recuperadas (agora dizem “revitalizadas”) varandas da sobreloja, de
frente para a Rua da Bahia, eu bem que topava. Ninguém precisa ir de paletó nem
gravata, seria só pra espairecer um final de edição imaginário, sabe como é.
Agora o seguinte: a gente
encontra no cardápio do Lucas algumas das mesmas preciosidades do tempo em que
jovens estudantes das sólidas repúblicas do Maletta, uma ou outra
“sereníssima”, feito a de Gênova, se aboletavam ruidosamente para desfrutar o
melhor talharim parisiense da cidade ou o peixe à Comodoro, que continua ótimo,
mas já não vem com os dois talos de aspargos espetados na crosta gratinada
sobre o molho, que sugeriam mastros de caravela. Ainda estão no prato, mas
cortadinhos, embutidos, lá dentro.
Mas essa é uma remissão a um
tempo diferente da Cantina do Lucas, anterior, em que nem tudo era bulício. Podem
perguntar ao Paulo (Faleiros), ao Wagner Issa, ao Júlio, ao Mané Coco, a
qualquer um dos Tonhões, ao doido ou ao outro, ao Jonas Moses e a tantos mais,
à Sônia, a Maria Izabel, a Marlene, à Silvinha... A conversa cáustica, áspera,
contra a ditadura sufocante era murmurada entre dentes, porque os delatores estavam
por toda parte e também na cantina, mas sempre havia o sussurro brando de palavras
amorosas, só para os ouvidos da namorada. (NM)