quarta-feira, 13 de março de 2013

Voltando ao peixe à comodoro da Cantina do Lucas



Voltar à Cantina do Lucas, no Maletta, Avenida Augusto de Lima com Rua da Bahia – BH, depois de muitos anos e achar tudo igual! Mas as caras, poucas, na hora de pouco movimento, eram novas, irreconhecíveis. Melhor, pelo menos a quem queira povoar as mesas vazias com fantasmagorias da própria juventude, mero truque, porém eficaz, que a gente vai aprendendo à medida em que a vida se estende – Ou se encurta, sei lá! – para transformar ausências em presença e, assim inverter a roda do tempo, impor-lhe, quando  absolutamente necessário ao nosso coração, um conveniente sentido anti-horário. Isso de saudosismo é uma grande bobagem, mas é aceitável qualquer artifício para reencontrar afetos, desde que não se perca a capacidade de contemplar as estrelas altas.

Foi chegar lá, bem na entrada da Augusto de Lima do Edifício Archangelo Maletta, à esquerda, e deparar com fantasmas, muitos e muito queridos. Não dá pra enumerar a todos, por isso de chegarem em turbilhão. Mas sempre é possível nomear os que chegam de mansinho, como o espírito generoso e sábio do prof. Moacir Latterza, cuja  voz pausada e clara fazia eco a Jacques Maritain e a Alceu de Amoroso Lima, mas ensinava que a invenção do tambor e a descoberta de suas possibilidades essenciais por algum primata ancestral, precede o milagre da palavra articulada. E veio a aura tranqüila e gentil de seu Olímpio, o mítico garçom, com seu sorriso calmo e a genuína alegria de receber e atender os amigos da casa. E “ouvir” Geraldo Magalhães compartilhando entusiasmo e emoção sobre a arte de Fellini, que tanto amava, “Dolce Vita”, “Oito e Meio”, e “Amarcord”, então em exibição em cinemas da cidade.

Você reacende um circuito de lembranças que, de repente, devolve a entrada do Lincoln Gonçalves e do Délio Rocha, compenetrados e decididos em direção ao fundo da galeria para, certamente, pararem no Lua Nova, onde haveriam de refrescar o começo da noite numa cerveja, desfrutarem seu convívio de velhos amigos e a conversa sempre inconclusa de jornalista. Também sem alarde, vem a lembrança de Achilles Reis, cronista de turfe e de outras coisas mais, ativo, quase irrequieto, disposição excelente, o humor sempre refinado e vivo, aproximando-se na companhia do Rogério Carnevalli, com quem ainda se pode tomar um chope ou outro lá no Tip Top. – E então. Você tem uma “barbada” pra mim?

Ele retruca com solicitude: – Sábado tem bons páreos. Mas não sei se dá pra encarar. Uma pule? Difícil. Talvez um placê.  

Pois é. Mas não eram os cavalos o que nos aproximava, e sim os tangos, o tango, outra paixão do Achilles,mas ele misturava as duas coisas. Conheceu nos hipódromos da vida o lendário Irineo Leguisamo, jocquey preferido de Carlos Galdel, de quem mereceu “Leguisamo solo”, tango com letra de Alfredo Le Pera, e que mais de uma vez disputou e venceu o Grande Prêmio Brasil. O papo com Achilles não acabava antes da gente cantarolar “La Cumparsita”, “Mano a mano”, “Esta noche me emboracho” e, claro, “Por uma cabeza”: ...que al jurar sonriendo // el amor que está mentiendo // quema en uma hoguera // todo mi querer...   Isso, na Cantina do Lucas ou onde quer que a gente se encontrasse.

Assim, de um jeito quase mediúnico, reencontrei na mesa do Lucas onde a gente celebrou a apresentação de Jesus Cristo Superstar em BH, no início dos anos 70, Tadeu, que atuava na peça, Tânio, Gilberto Naldi, Belmiro Arruda, que também atuou no espetáculo, Estêvão, sujeito miudinho, que nem chegava ao metro e sessenta, porém um barítono desses de coro de igreja ortodoxa.

Da pequena “varanda” que se debruça sobre a rampa de acesso a gente tem uma visão ampla da galeria. Às vezes, lá no fundo, duas mesas deslocadas do Lua Nova até o outro lado do grande corredor de acesso, próximo à escada rolante, acolhiam, uma, o Geraldo Magalhães, o Zé Nava, irmão do grande memorialista, e Amélia. Bebiam devagar a cerveja e conversavam, conversavam. Literatura e cinema, naturalmente. Na outra, a gente podia ver, de vez em quando, o Luiz Fernando Perez e o Chico Brant, da sucursal mineira do Estadão/Jornal da Tarde. Em uma ou outra ocasião, Carlos Pereira, também jornalista, juntava-se a eles. Lua Nova não tem mais, mas se essa trinca querida se dispuser a voltar ao Maletta, poderia ser no Lucas ou num dos novos botequins das recém recuperadas (agora dizem “revitalizadas”) varandas da sobreloja, de frente para a Rua da Bahia, eu bem que topava. Ninguém precisa ir de paletó nem gravata, seria só pra espairecer um final de edição imaginário, sabe como é.

Agora o seguinte: a gente encontra no cardápio do Lucas algumas das mesmas preciosidades do tempo em que jovens estudantes das sólidas repúblicas do Maletta, uma ou outra “sereníssima”, feito a de Gênova, se aboletavam ruidosamente para desfrutar o melhor talharim parisiense da cidade ou o peixe à Comodoro, que continua ótimo, mas já não vem com os dois talos de aspargos espetados na crosta gratinada sobre o molho, que sugeriam mastros de caravela. Ainda estão no prato, mas cortadinhos, embutidos, lá dentro.

Mas essa é uma remissão a um tempo diferente da Cantina do Lucas, anterior, em que nem tudo era bulício. Podem perguntar ao Paulo (Faleiros), ao Wagner Issa, ao Júlio, ao Mané Coco, a qualquer um dos Tonhões, ao doido ou ao outro, ao Jonas Moses e a tantos mais, à Sônia, a Maria Izabel, a Marlene, à Silvinha... A conversa cáustica, áspera, contra a ditadura sufocante era murmurada entre dentes, porque os delatores estavam por toda parte e também na cantina, mas sempre havia o sussurro brando de palavras amorosas, só para os ouvidos da namorada. (NM)

12 comentários:

  1. Nilseu

    Parabéns. Sempre uma gostosa leitura.

    Cícero.

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  2. Nilseu,

    minha memória afetiva adorou revisitar a Cantina do Lucas.
    beijão,

    Marília Alves

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  3. A jornalista Dinorah Carmo, depois de receber o enlace de O&B, mandou-me uma mensagem que não poderia ser mais generosa nem mais gentil, que começa com uma referência a Sônia Moreira de Castro, nossa amiga, colhida jovem demais pela Intempestiva, pra dizer: “Amei sua crônica sobre o Maletta, envolvendo Cantina do Lucas e Lua Nova. Li com emoção, segurando para não chorar...” Um blogueiro vaidoso adora receber palavras assim.

    E ela ainda me faz o favor de uma correção justa e oportuna, que acolhi imediatamente: - Que é Adélia? Não seria a Amélia Dulce (Amelinha, embora grandona) professora da Medicina/UFMG, grande amiga de Nava, do Geraldo, minha amiga?

    É. Eu me referi a ela como “Adélia”, mas foi mesmo por um deslize mnemônico. Eles andam cada vez mais freqüentes. Os anos...

    Finalmente, ela enriqueceu as brevíssimas reminiscências do Maletta que registrei com uma lembrança cara, a do Tatá (Luís Otávio) Madureira Horta, que escreveu uma “História da Cantina do Lucas” em que a distinguiu como personagem, “mesmo tendo ele fantasiado um fato que nunca ocorreu ali na cantina. Mas, entre o fato e a versão, prevaleceu a lenda e deixei ficar (fazer o quê?), tal qual naquele famoso “O homem que matou o facínora”.

    É isso mesmo, Dinorah. Então não sabemos que assim era o grande Tatá?

    (NM)

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  4. Ô Nilseu,

    Isto é seu exercício feito com dedicação e que nos é oferecido.

    Abraço,

    Alcéa

    OS.: Vá ver/ouvir Bibi Ferreira no Palácio das Artes dias 23/24.

    Que força incrível! Imperdível.

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  5. Nilseu, o saudosismo pode até ser uma bobagem mas que coisa boa é poder, de vez em quando, "reacender um circuito de lembranças"! Sua história fez despertar em mim a saudade mesmo sabendo que a minha época de Lucas e Maletta foi diferente da sua. Talvez por estar longe, em terras africanas, a saudade ficou maior...
    Adorei! Grande abraço, Sônia

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  6. Caro Nilseu,

    Tentei te ligar para falar ‘ao vivo’, mas não consegui te achar. Outro dia fui a um cartório no centro e resolvi ir à Cantina do Lucas. Também achei fantasmagórico, e o ambiente do Malleta muito estranho.

    A minha comida, então, foi uma decepção.Eu me lembrava de um ótimo espaguete com molho pomodoro. Fiquei só na lembrança, pois, comi espaguete ao molho de caixinha... igual a fast-food de shopping.

    Vou deixar o Malleta na lembrança, não gostei nem dos sebos em que já garimpei muita coisa boa.

    Bons tempos aqueles.

    Um abraço,

    Crepaldi

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  7. Amigo Nilseu,

    o Crepaldi tem razão (afinal, foram anos e anos na mesa 6h1, no Pelicano): a memória é muito exigente, ou a gente era mais tolerante, talvez pela presença de tantos amigos ao redor, o que tornava o Maletta até melhor do que realmente foi. De qualquer maneira, vale combinar uma volta, pois o convite para um 'final de edição imaginário' é irresistível. LFPerez

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  8. Caro Nilseu,

    Bom ler suas memórias sobre a velha Cantina do Lucas e do seu Olímpio lá no Malleta e principalmente falar de algumas personagens. O melhor, para meu gosto, foi o velho Achilles Reis, irmão do Dib Reis, irmão mas com gosto pelo samba, Carnaval e Rio de Janeiro, e não pelas carreiras de cavalos e os tangos de Gardel e companhia. Trabalhei com ele lá no velho EM, na Editoria de Esportes e em outras. Era uma grande figura e sempre tinha um sonho e uma história. Morreu cedo e a gente vai ficando. Gracias pelas lembranças e, quando achar que vale ir ao Lucas, basta avisar dia e hora. O Edmar Roque, atual dono (há muito tempo), pode fazer uma deferência e separas umas duas mesas e fazer um cardápio dos anos 60, 70 e 80. Parabéns pela crônica e suas lembranças de Carlos Pereira, de Luiz Fernando, de Carnevalli e dos escritores e poetas. Tudo de bom,

    Rogério Perez

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  9. Ei Nil!!! Estou adorando seu blog...... é incrível!

    Um beijão!

    Biinha

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  10. Grande Nilseu,

    Voce foi muito feliz nestas lembranças sobre o Malleta.
    A "Cantina do Lucas " é o tipo do bar-restaurante que está faltando na SAVASSI.

    Abraços

    Marcio

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  11. Mandei mensagem à Cristina Crocco para dizer que tinha postagem nova em O&B. Antes mesmo de ler, ela respondeu em conformidade com sua natureza generosa e gentil:

    "Nil:

    Já estou indo lá conferir suas frívolas, ociosas, fúteis e deliciosas crônicas.

    Beijo.

    Cris Crocco"

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  12. Nilseu, muito bom! A gente vê as pessoas, o local, sente o burburinho do Maletta. Deu vontade de ter vivido mais este tempo. Cheguei com um pouquinho de atraso!Adorei o texto.

    Magda Antuña

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