Foi
muito celebrada a passagem, em outubro, dos 90 anos de nascimento do escritor
Fernando Sabino, autor do sempre celebrado “Encontro Marcado”. A badalação apenas
tornou inevitável a foto dos “Quatro Cavaleiros do Apocalipse”, Sabino, Otto Lara,
Pellegrino e Paulo Mendes Campos, figurados em bronze em frente à Biblioteca
Pública, em BH. É coisa recente, pois o grupo de estátuas esteve, antes, no
pequeno jardim implantado no pátio da antiga Secretaria de Educação, dando
acesso, sob o anexo da Biblioteca, da Rua da Bahia para a Praça da Liberdade.
Sabino e Otto estão sentados num banco dos mais prosaicos, Pellegrino e Paulo
Mendes Campos estão de pé.
Os
quatro merecem o reconhecimento e a simpática homenagem, mas aquelas estátuas se salvam mais pela interação cordial entre
elas, que acaba envolvendo os curiosos que se aproximem. Figuras assim,
acadêmicas, podem parecer anacrônicas na cidade de Alfredo Ceschiatti. É o
mesmo caso dos bronzes de Pedro Nava e Carlos Drummond na pracinha à sombra art-déco do velho Teatro Municipal,
atualmente uma agência enorme do Bradesco. Como as Roberto Drummond e da poeta
Henriqueta Lisboa, na Savassi, as estátuas sugerem reproduções de photoshop. É
tudo muito bom, detalhadinho, à vontade,
natural, mas é no detalhe que resvalam no kitsch.
Como no fox de Mário Lago / Orlando Silva, o livrinho que cada uma carrega “é demais
para o meu coração”.
Parece
que estamos diante de uma fórmula inspirada na estátua de Fernando Pessoa em
frente à “Brasileira”, em Lisboa, monumento de passado um pouco mais pretérito.
Como arte de estatuária, o busto do escritor Bernardo Guimarães (Escrava Isaura, O
Garimpeiro, O Elixir do Pajé,êpa! ) que também tem sua herma na Praça da Liberdade
há mais tempo, é muito mais expressivo. As novas composições, porém, com
livrinho e tudo, têm sua eficácia, sobretudo junto às crianças, talvez pela encenação
algo naïf, que lhes permite, e também a adultos de
espírito mais lúdico, inventar brincadeiras e formas de interagir com as
estátuas.
Em
manhã clara de domingo, blogueiro ocioso se intruja na placidez nada apocalíptica
dos insólitos cavaleiros, em sua
presumível conversa fiada, mas não dá palpite, fica só assuntando. Uma
garotinha que passava no momento da foto apontou com o dedo e perguntou à jovem
mulher que lhe segurava a outra mão, “Mamãe, o quê que é isso?”.
Com
essa indagação veio à lembrança o refrão do Caxangá, cantador e repentista que manteve,
nos anos 70 e 80, programa de cantoria de muita audiência na Rádio Itatiaia, aqui
mesmo e BH: “Eu vi um nêgo sentado // no bueiro da osina, // de chapéu de
panamá, de casaca e de botina. “ Não há “osina” nem bueiro, casaca e botina
também não há, só um neguim sentado. E o chapéu de panamá.
Não é
o caso ser rebarbativo. É bom lembrar e celebrar nossos artistas e heróis. Heróis? Vamos tentar
esquecer o Tiradentes de bronze do cruzamento das avenidas Brasil e Afonso
Pena, que mais parece um Rasputin de filme “c”, a túnica horrorosa de
condenado, crucifixo preso à cintura para consolar sua fé na hora patibular, as
barbas enormes, aquela corda no pescoço de quem se dirige à forca devidamente
equipado... Ao “artista” que realizou o monumento, ou a quem o encomendou, não
ocorreu representar o herói da Inconfidência na gala de sua juventude de
alferes, de preferência montado em cavalo bom. Optou-se pelo patético. Quê
fazer?
Paulo Mendes Campos, a vida, a
Parca, Alice
Uma
vez o Roberto Drummond, que tinha na mais alta conta a literatura de Fernando
Sabino, tentou convencer-me de que o “Encontro Marcado” era uma obra essencial,
para ser lida por todo brasileiro alfabetizado. Foi numa noite, na redação de
jornal em que ambos trabalhávamos. Ele me apresentou Geraldo Boi, o tipo
bizarro que teria inspirado o protagonista de “O Grande Mentecapto”. A figura
não me causou a menor impressão, e jamais li livro algum de Fernando Sabino.
Daqueles
“Quatro Cavaleiros do Apocalipse”, a memória afetiva de leitor só guardou registro
de Paulo Mendes Campos, iluminado nas tertúlias dominicais do Tip Top por
Carlos Alberto de Barros Santos, que teve trato e convívio com o grande
cronista, e autoridade para, em mais de uma ocasião, falar com entusiasmo da sua
arte de escrever, que tangenciava as
estrelas, de tão alta! Uma ou outra vez mencionou aspectos mais atribulados da
vida do escritor, a alma atormentada por
demônios que jamais conseguiu exorcismar. Tão afetuoso e reverente era o tom dessas
referências que todos os que pudemos desfrutá-las, de um modo ou de outro, nos
deixávamos impregnar do mesmo afeto. Do Otto Lara, alguma pala dessas que, de
vez em quando, alguém repete: “Mineiro só é solidário no câncer”; de
Pellegrino, nada. Para a geração que veio “Caminhando contra o vento, // sem
lenço e sem documento”, isso tudo estava distante demais.
Depois
de um domingo dos domingos do Tip Top, Carlos Alberto mandou-me uma carta em
que relatava o ultimo encontro que teve, aqui mesmo em BH, com Paulo Mendes
Campos. Foi em agosto de 2008 e, então, O&B nem existia. Em 2010, já com o
blogue na rede, perguntei-lhe se podia postá-la e ele aquiesceu, mas, com
modéstia, disse tratar-se não de uma
crônica sobre o cronista, mas de um
bilhete para encaminhar-me a belíssima paráfrase que PMC fez de Lewis
Carroll em “Para Maria da Graça”. E fez outra ressalva: “O Paulo foi descrito
no texto na fase outonal da vida. Sempre foi amigo do copo, mas a amargura de
que falo surgiu por volta da última década. Antes era alegre, botafoguense
fanático, jogava futebol de praia e era um grande papo e companheiro de
mesa...”
(NM)
A carta do Carlos
Alberto
“Querido amigo,
O Paulo Mendes
Campos, estranho, controvertido, muitas vezes ingênuo, puro, gentil e sempre
esquivo, mesmo celebrado pelos notáveis do seu ramo, era uma figura, dessas
para se guardar para sempre e morrer sem saber interpretar. Profundamente
culto, fazia a maior força para dissimular essa condição. Não, ele não sabia
nada, era um observador da vida. É o que dizia entre duas doses de uísque, que
adorava, ou duas batidas de limão com pinga, que bebia para se embriagar.
Conheci-o muito e
tornamo-nos amigos. No Rio, nossos apartamentos eram próximos e freqüentes
nossos encontros em botequins das redondezas. Só que, nos últimos anos, nenhum
botequim da Zona Sul o aceitava. Ele bebia e brigava com os garçons, o gerente
e quem mais se metesse na confusão. Quase sempre por questões frívolas. Que
coisa estranha, que coisa triste num homem daquela altitude, num grande poeta!
Cheguei a vê-lo praticamente atirado à rua por seguranças truculentos e sem a
menor paciência, e recompor-se para afetar a dignidade possível, nas circunstâncias,
mas era uma dignidade cambaleante,
fingida, chapliniana. Assisti a isso duas vezes e me doeu muito.
Em Belo Horizonte
ele me telefonou. Aonde poderíamos tomar um chope? Sugeri o Primo e ele foi.
Como o marinheiro do poema bandeiriano, estava triste e lúcido. Não quis beber.
Falou-me de coisas circunstanciais, de algumas memórias, tudo muito sem graça,
em voz baixa, bebendo água tônica. Ao final perguntou:
- Pode me deixar
em casa?
- Claro.
Deixei-o na casa
do pai, na Avenida Getúlio Vargas quase esquina com Contorno. Uma casa velha,
velhíssima, onde morou sua família, seu pai, meu professor, há pouco falecido.
Deixei-o em frente e, pelo retrovisor do carro, vi que ficou parado na calçada.
Esperando o quê? – perguntei-me. Não sei, não posso dizer, mas acho que ele já
estava esperando a morte. Acho que estava morrendo aos pouquinhos. Acho...
Dois meses depois
fui colocar minhas mãos sobre as dele, geladas, dentro de um esquife trasladado
para a cidade de onde saiu para um mundo que foi, a um tempo a glória e a
tragédia da sua vida. Hoje, acho que não seria leviandade afirmar que o Paulo,
viajor incansável, nunca deveria ter empreendido qualquer viagem para além de
sua própria interioridade. O seu mundo.
Era um grande
cronista, talvez, não sei, melhor do que poeta. O mais provável é que, nele, os
dois gêneros se confundem, ou se completem. O exemplo que lhe envio é baseado
na obra-prima de Lewis Carroll. Mas é também um texto para nós, bem mais velhos,
para os homens de todos os tempos.
Carlos Alberto”
PARA MARIA DA GRAÇA
Paulo Mendes Campos
Agora que chegaste
à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no
País das Maravilhas.
Este livro é doido,
Maria: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não
descobrires um sentido na loucura, acabarás louca.
Aprende, pois, logo de
saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido
evidente de todas as coisas, inclusive as loucas.
Aprende isso a teu modo,
pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da
realidade.
A realidade, Maria, é
louca.
Nem o Papa, ninguém no
mundo pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz a sua gatinha:
“Fala a verdade Dinah, já comeste um morcego?”
Não te espanes quando o
mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isto acontece muitas vezes
por ano. “Quem sou eu no mundo?”
Esta indagação perplexa
é o lugar comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares esta
charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não
importa qual seja a resposta: o importante é dar ou inventar uma resposta.
Ainda que seja mentira.
A sozinhez (esquece essa
palavra que inventei agora sem querer) é inevitável.
Foi o que Alice falou no
fundo do poço: “Estou tão cansada de estar aqui sozinha!”. O importante é que
ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço!
Só as criaturas humanas
(nem mesmo os grandes macacos e cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem
fechada, e vice-versa, fechar uma porta bem aberta.
Somos tão bobos, Maria.
Praticamos uma ação trivial e temos a presunção petulante de esperar dela grandes
conseqüências. Quando Alice comeu o bolo e não cresceu de tamanho, ficou no
maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas
que comem bolo.
Maria, há uma sabedoria
social ou de bolso; nem toda a sabedoria tem que ser grave.
A gente vive errando em
relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: “Oh, I beg
your pardon!”. Pois viver é falar em corda em casa de enforcado. Por isso te
digo, para sua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de
vista do rato.
Foi o que o rato
perguntou à Alice: “Gostarias de gatos se fosses eu?”
Os homens vivem
apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política nacional e
internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na Literatura.
Até amigos, até irmãos,
até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida. São
competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão
fingindo que não é, que quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam
perguntar: “A corrida terminou! Mas quem ganhou?”
É bobice, Maria da
Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiverdes
de ir a algum lugar, não te preocupes a vaidade fatigante de ser a primeira a
chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhastes.
Disse o ratinho: “Minha
história é longa e triste!”. Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a
terrível variante: “Minha vida daria um romance!”. Sobretudo dos homens. Uns
chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres sempre
acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se
pensa, os melhores e mais fundos milagres
não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o
seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como
talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro. E não se
desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo”. Em
algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.
Escuta essa parábola
perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um
hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o
contrário também acontece.
E é um outro escritor
inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem
passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo.
A alma da gente é uma
máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de
camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos.
O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar
o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como
tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca
devemos perder o bom humor.
Toda pessoa deve ter
três caixas para guardar humor: uma caixa grande, para o humor mais ou menos
barato, que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor
que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para
rires de ti mesma; e por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as
grandes ocasiões.
Chamo de “grandes
ocasiões” os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade; em
que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos; em que nos
sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado Maria, com as grandes ocasiões.
Por fim, uma palavra de
bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal
complacência, que tem medo de não poder sair de lá.
A dor também tem seu
feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter
chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas
próprias lágrimas”.
Conclusão: a própria dor
deve ter a sua medida. É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassarmos a
fronteira de nossa própria dor, Maria da Graça.