Fisgado pelo enigma do peixe. De metal, sim,
mas azul, como deve ser um marlim
ronco pra lá e pra cá, a branca espuma que, feito no bolero de
Ari Barroso, “se desmancha na areia”. É tudo clichê, claro, mas, em se tratando
de mineiro, não precisa ser abstrato nem
de anedota, para, em algum momento nesta vida ou em passadas encarnações, para tê-la
sentido com maior ou menor intensidade. Também não é preciso verão. Basta que
esquentem uns dias de nossas primaveras tropicais
para que venha aquela incoercível
ânsia por brisas marinhas que, nos dias de hoje, remete diretoa praias do Nordeste, ensolaradas,águas mornas, bom demais.
Até os anos 80 do século passado,
o destino preferencial dos nostálgicos do mar era o Espírito Santo de incontáveis
e encantadoras praias, umas de areia grossa, de um tom quase rosado à luz do
entardecer, outras de areia fina e clarinha que o vento levanta sem esforço.
Tem até praia de areias escuras, monaziticamente pretas. O clima é bom, o calor
não a sufoca ninguém, e os capixabas, sempre gentis, põem à mesa moquecas
inigualáveis, de camarão, de badejo, de badejo ao molho de camarão e a
variedade inesgotável de combinações que lhes permitem a prodigalidade
atlântica da costa e a riqueza de sua cozinha ancestral. Olor e cor, sabor e
textura, e temos a moqueca para todos os gostos e sentidos. Todos? Não vá dizer
que dá pra ouvir moqueca! Não. Realmente não dá, mas, atento ao som do mar
batendo nas pedras, você completa a festa dos sentidos.
Mística ou não, a ânsia de liberdade,
como manifestação, é sempre generosa
O versículo (Filipenses 4:13) faz o freguesa baixar o tom antes de entrar na loja, mas um blogueiro ocioso pode preferir, por menos belicosa, a tradução “Tudo posso Naquele que conforta” e, ainda, com alguma petulância, achar que não acrescente muita coisa ao salmo 23: “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”.
Badejo, moqueca, mistérios do marlim
Depois de mais de trinta anos de
ausência, a gente mal pôde reconhecer Guarapari. A cidade cresceu bem cuidada,
limpa, a orla foi urbanizada com o melhor critério, o comércio é movimentado,
vivo, muitos hotéis, mas não há agitação demais. E cuidam eles lá, em
Guarapari, de evitar ruídos desnecessários, feito aqueles com os quais temos de
nos conformar, por exemplo, nas praias do Sul da Bahia. Caixas de som a todo
volume nos carros, nem pensar. É desfrutar a água, areia, o drinque à sombra da
amendoeira e, depois, ir às moquecas. A do Osmar, antiga, merece o prestígio
que tem.
Quem se lembra da “Moqueca do Osmar” em seus primórdios, lembra-se de cabanas rústicas em que só contava, mesmo, o pescado posto à mesa. Hoje o restaurante está muito bem instalado, serviço muito bom, sem chegar a sofisticado, a comida deliciosa, no mesmo lugar, mas no segundo piso de uma espécie de sobrado. No primeiro, funciona, entre as tantas que pululam em Guarapari, uma igreja neopentecostal, claro indício de mudança de aprisco no antigo rebanho cristianizado pela pregação suave do padre José de Anchieta. A recorrência de versículos bíblicos inscritos em fachadas e placas de muitas lojas apenas confirma.
Se o céu de Castro Alves “é dos
condores”, o mar do Espírito Santo é do badejo, do badejo e do marlim, peixe
mitológico, epifania do próprio Posseidom, que atrai aventureiros do mundo àqueles
páramos de luz. Por que insistem em pescá-lo? Talvez por contraponto a Moby
Dick, a baleia branca de Herman Melville, que o capitão Ahab via como encarnação do Diabo, ou quem sabe ao peixe demiúrgico em cujo
ventre de abismo, por três dias e três noites esteve retido o profeta Jonas. E
não é preciso ser Santo Agostinho para render-se à tentação de desvelar
mistérios, mesmo os que, enfim, são só do marlim.
Voltar a praias do Espírito Santo, a
Guarapari, depois de mais de trinta anos de ausência, é entregar-se à nostalgia
da nostalgia do mar, deixar-se levar, nostalgia ao quadrado. (NM)