Quinta-feira, dia 13, veio a
notícia do falecimento, em Campo Grande, MS, do poeta Manoel de Barros. Não
chegou a surpreender, porque, aos 97 anos, vinha enfrentando ultimamente graves
problemas de saúde, mas, mesmo assim, deixou o travo de tristeza das grandes
perdas. Poeta essencial do Brasil, referência espiritual e afetiva de todos nós,
ele jamais, com tanta poesia que nos deixa, será de fato uma ausência a
lamentar. Antes, lembrá-lo em versos sutis, plenos de alegria e surpresa,
versos reveladores de nosso povo, de nossa terra, sempre em conexão com o
Universo misterioso e imenso, atento ao galope dos alazões da Aurora. Manoel de
Barros, enquanto viveu, foi um grande decifrador de enigmas.
Hoje, O&B repete, para homenageá-lo,
postagem do dia 1 de junho de 2011, recuperando momentos da visita que lhe fez
lá Pantanal sul mato-grossense outro poeta de sua mesma linhagem, João
Guimarães, quando conversaram sobre muitas coisas, também sobre cavalos e
passarinhos.
“Quando não sei onde estou, as
palavras me acham”
Manoel de Barros
Em 1953, então já consagrado como autor de “Sagarana”,Guimarães Rosa foi ao
Pantanal do Mato Grosso, onde o recebeu ninguém menos que Manoel de Barros. Até
os grilos e os sapos pararam um tempo só para ficar ouvindo as conversas deles
dois naquele âmbito misterioso e mágico que tem por hierofante e druida
precisamente o poeta da “Gramática Expositiva do
Chão”.
Manoel de Barros conta como foi o memorável encontro, como se desfrutaram um ao
outro os dois grandes poetas brasileiros, obcecados ambos pelas palavras, o
pantaneiro assumindo-as mais pelo lado da intuição; mais eruditas, talvez mais
“científicas”, as abordagens do sertanejo. Mas aí que está: não discutiram como
filólogo de preceito, mas como qualificados amantes da palavra, fazendo daquele
encontro algo impossível de ser repetido. Manoel contou ao Rosa que o Pantanal
quase teve seu dialeto, mas o isolamento de muitos anos da região estava se
acabando muito depressa, estradas, automóveis, rádio, essas coisas. Os modos
pantaneiros de falar apenas sobreviviam aqui e ali, numa ou noutra expressão.
Eles andaram falando sobre passarinho, conforme está registrado nas “Conversas
por escrito (Entrevistas: 1970 – 1989)”, de Manoel de Barros:
– E passarinho, Manoel?
Manoel comenta: “Rosa me especulava por
trás do couro, como quem sonda urubu. Queria saber de tudo. De avoador, eu
disse, só urubu, garça, cracará – esses pássaros grandes. O resto quase é
inominado. Passarinho pequeno é passarinho à-toa. Rosa sabia essas coisas, só
estava me sondando. Falei para ele. Isso é como a gente não saber o nome de
todas as pessoas que vão atravessando o Viaduto do Chá.”
Aí Manoel lembra que “Rosa estrelou sua risada”, antes de dizer: - É isso
mesmo, Manoel! É tanta gente que não se sabe o nome. E passarinho é a gente
daqui.
Em seguida Rosa
perguntou: – E o tordo, qual é a letra do canto que ele canta? A música eu sei
de cor, mas a letra eu não sei.
Manoel respondeu: – A letra é assim: “Primo com prima não faz mal, finca,
finca...”
E o Rosa: – Oi tordo erótico, Manoel. Os lá de Minas têm mais compostura...
Depois a conversa derivou para exotismo e folclore no Pantanal, e Manoel
ponderou ao Rosa:
– Aqui não há nada exótico. (...) O que tem aqui tem em toda parte. Mas de
folclore, que é outro departamento, tenho um amigo, Neto Botelho, que sabe das
coisas, que informa sobre nosso monumento nessa área que é o cavalo. Cavalo é
nosso enfeite, nosso instrumento de trabalho, nosso meio de transporte, nosso
amigo, nossa arte. Com ele se ganha o pão, com ele se vai namorar.
E ofereceu ao Rosa um poema do Neto Botelho sobre um cavalo que teve:
“Tive um cavalo ruano
De nome Balança-os-Cachos
De cheirar e mandar guardar
Cavalo de confiana
Pegava em quarenta metros
Galardão de cola e ancas
Um ente desanormal
Coisa de prateleira
Ventena como o fedor
Não foi de ensebar serviços
Nem teve queda pra cangas
Pastor de primeira instância
Cavalo de putear delegado
Livre como as vertentes
Podia até lavar louças
Leve de patas que era
Só faltava ir no cinema.”
Manoel disse que Rosa gostou demais, do cavalo e do poema. Tanto que “tomou nota. Gravou na caderneta”. Parece
que, naquele encontro inesquecível lá no Pantanal, as palavras, como sempre,
realmente acharam o Poeta, mas então tinham nome e sobrenome: João Guimarães Rosa. (NM)
(P.S) Uma neta de Manoel de
Barros consolou-se da grande perda: “Ele virou passarinho”.