sábado, 27 de dezembro de 2014

O&B reitera sua fé na conversa fiada

                                     
Maio de 2010, antes de sua primeira postagem, o “hacker” que ajudou nos trâmites técnicos iniciais, veio com uma indagação prosaica: “Qual é mesmo o nome do blogue?” Não tinha pensado nisso, mas uma sucessão de alusões e referências oscilando do fútil ao completamente inútil no texto sem o menor compromisso com Aristóteles ou Descartes, pura conversa fiada, implicitamente, apontava para algo como “Ociosidades & Bagatelas”, locução que, no momento, pareceu muito original e exclusiva.

Porém, na semana que procedeu o Natal, uma breve ciscada no gúgol desfez a ilusão, registrando duas referências consideráveis. No livro “Las Delícias de la Religión Cristiana o El Poder del Evangélio para Hacernos Felices”, do abade Antoine-Adrien Lamourette, 1832, vem consignada com todas as letras num contexto de exaltação mística que, até certo ponto, lembra a jornada do passaredo no poema (A Linguagem dos Pássaros) de Farid Ud-in Attar em busca do Simorg, ou Todos-os-Pássaros. O abade, tal como o poeta persa, vislumbra a Unidade no Absoluto e nela se deleita, em texto, tanto quanto o do persa, de altíssima poesia. Sufis e cristão podem, eventualmente, ter seus pontos de convergência.

Em livro um pouco mais antigo, “Tratado en que se dan algunos médios preservativos para librarse del mal” etc. (1780) o padre catalão Vicenç  Ferrer classifica como “ociosidades e bagatelas”, e como tal a reprocha e condena, toda literatura, incluindo os clássicos da antiguidade, que não esteja estritamente comprometida com a doutrinação eclesiástica. Nada mais impiedoso do que um pregador piedoso, quando se trata de preservar as fronteiras de suas crenças perfeitas e incontrastáveis. Ele e põe no mesmo balaio as obras dos autores gregos e latinos, meros pagãos, livros de cavalaria, obras blasfemas, heréticas, ficções e livros de sacanagem em geral. Lá pela página 338, o padre Ferrer recomenda a quem tenha tais livros que os queime ou “os entregue ao Santo Tribunal”, o que, de antemão, pode ser considerado uma rematada temeridade. Vai que um inquisidor daqueles resolva perguntar algo irrespondível ou meramente difícil de responder. Evasivas do inquirido podem reacender num átimo propensões letárgicas à incineração de obras, autores, leitores e o que quer que se preste a alguma combustão glorificadora de sua fé. Epa, cruz credo!

Falei a respeito ao meu amigo Fernando Fabbrini, na calçada do Café Três Corações, na Savassi, que fez o seguinte comentário: “Ora, a linearidade do tempo é algo tão arbitrário quanto o próprio Santo Ofício. Não tem nada demais que a fama tenha precedido `Ociosidades & Bagatelas´ de uns duzentos e poucos anos”. Tá bem, Fabbrini, tá muito bem.

A percepção sui generis do padre Ferrer pode ser até lisonjeira para “Ociosidades & Bagatelas”, que alça na direção “ciceroniana” dos clássicos, a considerar apenas seu descompromisso com o que não esteja no plano da conversa fiada, além e acima de qualquer credo ou doutrina. Em pretensão, mas benigna, inofensiva presunção, expande-se a vaidade do blogueiro, predispondo-o mais e mais a jogar o jogo essencial da palavra bem ao largo das grandes verdades insondáveis, enquanto as  grandes e pequenas certezas que, ao longo das eras, têm inspirado os senhores de todas as virtudes, a gente vai deixando pra lá. Apenas reconheçamos que o padre Ferrer tem sua graça, não só a graça dos que se creem escolhidos, mas também a que vem com isso de “médios preservativos” que, para um leitor “luso-hablante”, remete a contraceptivos de borracha, camisinhas. (NM)


Pra reafirmar origens e propósitos, O&B posta de novo o texto de APRESENTAÇÃO  postado em 23/5/2010

“Ociosidades & Bagatelas” é uma experiência totalmente lúdica, para ser compartilhada com amigos e amigas sem outro ânimo senão o da convivência, da diversão, como um jogo que permita à gente, sem maiores considerações, lobrigar, por entre as sombras de uma noite esplêndida, quadrantes da abóbada constelada que se apropínquam pelas lentes do coração, mesmo se apenas para constatar que Aldebarã é que esplende mais: gala do céu de maio. Pra quem pensava que lobrigar e apropinquar fossem a própria impossibilidade verbal, o inconjugável, já é um começo de jogo, despretensioso, “a leite de pato”, como se diz em jargão de sinuca se o jogo não é apostado. Mas aí é como lançar búzios ou jogar caxangá usando conchas de museu, das que alimentaram algum ancestral da garça lá pelos meados do período terciário: Guerreiros com guerreiros fazem zigue, zigue, zá!!!  Mesmo no jogo mais ocioso, porém, se palavras virtualmente extintas ganham curso, ainda que num texto na rede eletrônica, por breve que seja, respiram, viram fósseis vivos, persistentes, celacantos léxicos, e não é despropositado alegrar-se com esse tipo de pequeno milagre.

Jogar é representar, fingir, interpretar, mas também tocar viola, piano, berimbau, qualquer instrumento e, sobretudo, é brincar, o que as crianças nem discutem, porque apenas brincam. E também é jogar mesmo, com cartas, varetas, cavalos, torres, dados, bolas, dardos, facas, pedras, plumas, flechas. Com palavras valem trava-línguas: “Num ninho de mafagafos, dezesseis mafagafinhos há. Quem os desmafagafizar...” e jogos de adivinhação, folguedo na infância e, depois, fonte do poder de sibilas e feiticeiras, do prestígio dos profetas e da glória de algum poeta. Para a cigana, uns trocados parcos, mas pouco importa, ela é tão bonita!


Uns, cheios de certezas, jogam o jogo da verdade, o da mentira, mentira dos outros, deles, só verdades, mas antinomias não são perfeitas e, feito rios no oceano, dissolvem-se em tautologias: entre o crepúsculo e a aurora, a noite e, inversamente, o dia;  o Minguante entre a Cheia e a Nova e, invertidos os termos, o Crescente. Parece que, no tocante à ordem dos fatores, não é como na multiplicação aritmética, mas também não deixa de ser: Não é sempre a mesma Lua? Entretanto, há uma Maja Desnuda, uma Vestida, uma gérbera amarela, uma branca margarida, que assim é a vida. No talho a navalha se materializa, o desamor numa  dor no peito e muita tristeza; nas  modulações suaves de seu canto, o curió; a grande borboleta primordial, no vôo leviano e no azul das asas. E, só para concluir, ao fim e ao cabo, o jogo é jogado, o lambari, pescado. (NM)