Maio
de 2010, antes de sua primeira postagem, o “hacker” que ajudou nos trâmites
técnicos iniciais, veio com uma indagação prosaica: “Qual é mesmo o nome do
blogue?” Não tinha pensado nisso, mas uma sucessão de alusões e referências
oscilando do fútil ao completamente inútil no texto sem o menor compromisso com
Aristóteles ou Descartes, pura conversa fiada, implicitamente, apontava para
algo como “Ociosidades & Bagatelas”, locução que, no momento, pareceu muito
original e exclusiva.
Porém,
na semana que procedeu o Natal, uma breve ciscada no gúgol desfez a ilusão,
registrando duas referências consideráveis. No livro “Las Delícias de la Religión
Cristiana o El Poder del Evangélio para Hacernos Felices”, do abade Antoine-Adrien
Lamourette, 1832, vem consignada com todas as letras num contexto de exaltação
mística que, até certo ponto, lembra a jornada do passaredo no poema (A
Linguagem dos Pássaros) de Farid Ud-in Attar em busca do Simorg, ou Todos-os-Pássaros.
O abade, tal como o poeta persa, vislumbra a Unidade no Absoluto e nela se
deleita, em texto, tanto quanto o do persa, de altíssima poesia. Sufis e
cristão podem, eventualmente, ter seus pontos de convergência.
Em
livro um pouco mais antigo, “Tratado en que se dan algunos médios preservativos
para librarse del mal” etc. (1780) o padre catalão Vicenç Ferrer classifica como “ociosidades e bagatelas”,
e como tal a reprocha e condena, toda literatura, incluindo os clássicos da
antiguidade, que não esteja estritamente comprometida com a doutrinação
eclesiástica. Nada mais impiedoso do que um pregador piedoso, quando se trata
de preservar as fronteiras de suas crenças perfeitas e incontrastáveis. Ele e
põe no mesmo balaio as obras dos autores gregos e latinos, meros pagãos, livros
de cavalaria, obras blasfemas, heréticas, ficções e livros de sacanagem em
geral. Lá pela página 338, o padre Ferrer recomenda a quem tenha tais livros
que os queime ou “os entregue ao Santo Tribunal”, o que, de antemão, pode ser
considerado uma rematada temeridade. Vai que um inquisidor daqueles resolva
perguntar algo irrespondível ou meramente difícil de responder. Evasivas do
inquirido podem reacender num átimo propensões letárgicas à incineração de
obras, autores, leitores e o que quer que se preste a alguma combustão
glorificadora de sua fé. Epa, cruz credo!
Falei
a respeito ao meu amigo Fernando Fabbrini, na calçada do Café Três Corações, na
Savassi, que fez o seguinte comentário: “Ora, a linearidade do tempo é algo tão
arbitrário quanto o próprio Santo Ofício. Não tem nada demais que a fama tenha
precedido `Ociosidades & Bagatelas´ de uns duzentos e poucos anos”. Tá bem,
Fabbrini, tá muito bem.
A
percepção sui generis do padre Ferrer
pode ser até lisonjeira para “Ociosidades & Bagatelas”, que alça na direção
“ciceroniana” dos clássicos, a considerar apenas seu descompromisso com o que
não esteja no plano da conversa fiada, além e acima de qualquer credo ou
doutrina. Em pretensão, mas benigna, inofensiva presunção, expande-se a vaidade
do blogueiro, predispondo-o mais e mais a jogar o jogo essencial da palavra bem
ao largo das grandes verdades insondáveis, enquanto as grandes e pequenas certezas que, ao longo das
eras, têm inspirado os senhores de todas as virtudes, a gente vai deixando pra
lá. Apenas reconheçamos que o padre Ferrer tem sua graça, não só a graça dos que
se creem escolhidos, mas também a que vem com isso de “médios preservativos”
que, para um leitor “luso-hablante”, remete a contraceptivos de borracha,
camisinhas. (NM)
Pra
reafirmar origens e propósitos, O&B posta de novo o texto de APRESENTAÇÃO postado em
23/5/2010
“Ociosidades & Bagatelas” é uma experiência totalmente
lúdica, para ser compartilhada com amigos e amigas sem outro ânimo senão o da
convivência, da diversão, como um jogo que permita à gente, sem maiores
considerações, lobrigar, por entre as sombras de uma noite esplêndida,
quadrantes da abóbada constelada que se apropínquam pelas lentes do coração,
mesmo se apenas para constatar que Aldebarã é que esplende mais: gala do céu de
maio. Pra quem pensava que lobrigar e
apropinquar fossem a própria
impossibilidade verbal, o inconjugável, já é um começo de jogo, despretensioso,
“a leite de pato”, como se diz em jargão de sinuca se o jogo não é apostado.
Mas aí é como lançar búzios ou jogar
caxangá usando conchas de museu, das que alimentaram algum ancestral da
garça lá pelos meados do período terciário: Guerreiros
com guerreiros fazem zigue, zigue, zá!!!
Mesmo no jogo mais ocioso, porém, se palavras virtualmente extintas
ganham curso, ainda que num texto na rede eletrônica, por breve que seja,
respiram, viram fósseis vivos, persistentes, celacantos léxicos, e não é
despropositado alegrar-se com esse tipo de pequeno milagre.
Jogar é representar, fingir, interpretar, mas também tocar
viola, piano, berimbau, qualquer instrumento e, sobretudo, é brincar, o que as
crianças nem discutem, porque apenas brincam. E também é jogar mesmo, com
cartas, varetas, cavalos, torres, dados, bolas, dardos, facas, pedras, plumas,
flechas. Com palavras valem trava-línguas: “Num ninho de mafagafos, dezesseis
mafagafinhos há. Quem os desmafagafizar...” e jogos de adivinhação, folguedo na
infância e, depois, fonte do poder de sibilas e feiticeiras, do prestígio dos
profetas e da glória de algum poeta. Para a cigana, uns trocados parcos, mas
pouco importa, ela é tão bonita!
Uns, cheios de certezas, jogam o jogo da verdade, o da mentira,
mentira dos outros, deles, só verdades, mas antinomias não são perfeitas e,
feito rios no oceano, dissolvem-se em tautologias: entre o crepúsculo e a aurora,
a noite e, inversamente, o dia; o
Minguante entre a Cheia e a Nova e, invertidos os termos, o Crescente. Parece
que, no tocante à ordem dos fatores, não é como na multiplicação aritmética,
mas também não deixa de ser: Não é sempre a mesma Lua? Entretanto, há uma Maja Desnuda, uma Vestida, uma gérbera amarela, uma branca margarida, que assim é a vida. No talho a navalha se
materializa, o desamor numa dor no peito
e muita tristeza; nas modulações suaves
de seu canto, o curió; a grande borboleta primordial, no vôo leviano e no azul
das asas. E, só para concluir, ao fim e ao cabo, o jogo é jogado, o lambari, pescado. (NM)
Prezado Nilseu,
ResponderExcluirRetomo o fio da mensagem anterior, que se rompeu de repente, não sei por que, embora desconfie que por barbeiragem pura e simples deste que escreve ao amigo de longa data. Enfim, há muito eu queria declarar que sempre leio com renovado prazer as bem traçadas linhas dessas Ociosidades & Bagatelas, que se associam à mais fina e elegante erudição para dar suporte a reflexões necessárias hoje e sempre.
Portanto, muito obrigado por nos brindar com os resultados de suas incursões ao mais recôndito do saber. Continue distribuindo-os à mancheia.
Um feliz 2015 para o amigo e compadre em companhia de suas Rosas.
Abs.
Estou com o Fabbrini nessas ruminações sobre a linearidade do tempo.
Ivani Cunha
Jornalista - Reg.Prof. MTB - 3371
(31) 8706-0703
Legal, meu amigo Nilseu!
ResponderExcluirAbraço
JD Vital
Parabéns, caro Nilseu!!! Ótima pesquisa!!!
ResponderExcluirE concordo com o Fernando Fabbrini, que ser precedido por duas referências tão especiais só aumenta a delícia que é ler sempre o seu blogue "Ociosidades & Bagatelas"...
um grande abraço,
Carlinhos Barros Santos
Querido Nilseu,
ResponderExcluirRi muito e me deliciei com o seu texto sobre o nome do seu blog. Como é que pode dois sujeitos terem a ideia dessa combinação de palavras, com séculos de distância?
Nilseu, quem dera que toda conversa fiada fosse bem escrita assim. E que nos proporcionasse momentos de prazer ao integrá-la por meio da leitura do blog!
Adorei a sua homenagem ao Manoel de Barros e o artigo sobre a Toscana do Fabbrini. Tudo tão bom de ler...
Marilia
Sou mais o O&B do Nilseu.
ResponderExcluirAbraço.
Airton
Muito legal, velho amigo Nilseu. Boas festas para você e família.
ResponderExcluirAbraços,
Anibal
Muito interessante.
ResponderExcluirOs frades estão de olho!
Abraço
Dani
Muito legal! Bjs a vc é toda a família. Um feliz ano novo cheio,das bênçãos de Deus. Isabela Teixeira da Costa
ResponderExcluirNilseu,
ResponderExcluirParece coisa de inconsciente coletivo!
Só que Você de um lado, e o padre Ferrer de outro.
Sérgio
Muito acima da profecia (invejosa) do padre Ferrer, O&B ainda se alinha a uma corrente atualíssima que tem como bandeira a máxima: "Stop the glorification of busy". Concordo em inglês e em bom português.
ResponderExcluirNão é por ter sido citado há 234 anos pelo aprendiz de inquisidor padre Ferrer que O&B deixou de ser original, embora se possa admitir que perdeu a exclusividade. O importante é que vem resgatando, como blog, a convivência e a diversão pregados em seu edital de lançamento, que proclamou a conversa fiada como fundamental à leveza da vida. Esse tipo de celebração nos livra do mal e preserva o bem, ao contrário dos 'medios preservativos' de sustentação do Santo Ofício. Um 2015 da melhor qualidade para o blogueiro e todos que compartilham O&B.
ResponderExcluirQuerido Nilseu, mais uma vez tem fundamento a velha máxima de "nada há de novo sob o céu" - por razões que fogem à nossa vã filosofia, "ociosidades&bagatelas" foi uma premonição do padre que, para felicidade de seus amigos/seguidores, concretizou-se nesse bate-papo bissexto mas gostoso e constante! Que em 2015 tenhamos ainda mais tempo para a conversa fiada - aqui ou acolá, no Tip Top... Obrigada pelos votos, meu caro, que retribuo com igual carinho!
ResponderExcluirAngela
Oh, Nilseu,
ResponderExcluiralém de desejar um Ano Novo belo, repleto de ociosidades e bagatelas para você e suas "rosas", digo e reafirmo, que tenho o maior prazer em clicar no azulzinho, sem pressa e tempo determinados.
Um grande abraço,
Marília Alves
Adoro seu blog "OCIOSIDADES E BAGATELAS".Muito inteligente. bem humorado, lírico e informativo.Muito obrigada por esse mimo, o de enviar-mo.
ResponderExcluirDe coração, vai o abraço da colega-amiga,
Dinorah Carmo
Amigo Nilseu:
ResponderExcluirCom a satisfação de sempre ( estou na ociosidade aqui em Florianópolis )acessei seu blog e deparei com o delicioso comentário a respeito da apropriação feita ao nome "Ociosidades e Bagatelas"séculos antes de vc existir, kkkkk! Insisto em afirmar que, mesmo com muitos anos de atraso, a originalidade do título pertence a vc, pois as reflexões que seus textos possibilitam recuperam o sentido original de'ócio', que entre gregos e romanos se referia ao tempo destinado a filosofar, a refletir, a debater. E a negação ( nec) do ócio, por meio da sonorização da surda intervocálica, é "negócio", a busca do lucro e da importância do dinheiro, exatamente o oposto de tudo que seu blog representa. Quanto a "bagatelas", a aparente despretensão que o fez escolhê-la para compor o título tb tem sua sofisticação. O que se relega à condição de algo sem importância pode constituir disfarce de ocultas joias. Beethoven mesmo compôs várias bagatelas, sendo uma delas "Für Elise", utilizada à exaustão para nos atormentar, em anos passados, quando obrigados à espera nas chamadas telefônicas. Assim, amigo Nilseu, por mais que fundamentalistas cristãos tenham tentado se antecipar a vc, a originalidade da criação lhe pertence, pois só vc a usou de maneira apropriada. Um grande abraço do amigo e seu aluno de sinuca:
Zé Maria
Feliz 2015.
ResponderExcluirGostei da conversa fiada mas com dose de erudição.
abraço
marçal
Excelente aportación, Nilseu. He disfrutado leyendo el texto y los comentarios de tus amigos, que comparto plenamente. Y desde luego, me declaro seguidora de Bertrand Russell y su "Elogio de la ociosidad", que al fin y al cabo dicen que el trabajo es un castigo divino.
ResponderExcluirLarga vida a O&B y a la conversa fiada.
Un gran abrazo,
María Luisa