...quando as flechas são
disparadas para o nada, nada há a ser feito a não ser recomeçar, recomeçar
sempre, recomeçar do nada, o que parece pouco, mas não é bem assim, postos o
caráter absoluto da negação não contaminada por injunções adverbiais e a carga necessariamente positiva
da dialética dos recomeços, uma vez tenhamos mais ou menos aceite que nem tudo
são flores neste vale de lágrimas e de águas claras, porém de pouca
profundidade, fina lâmina de cristal líqüido, tímidas gambevas passeando em
silêncio na rasura, à flor das pedras, discreto contraponto ao arrulhar
profundo das palmeiras surpreendido numa canção do Caribe, referendando
manifestações mais apropriadas à excitação do vento passando morno entre as
palmas trêmulas do que a rolinhas fogo-apagou aninhadas lá naqueles altos balouçantes, mas ao mesmo tempo impugnando
pretensões descabidas da Lua Nova, cujo lúbrico influxo repuxa a maré como se
fosse um imenso prepúcio das ilhas,
exibindo a ereção múltipla do arquipélago, para escândalo das estrelinhas mais
pudicas que, se algo dissessem, diriam oh! sobretudo ante as orgásticas
pirotecnias de algum vulcão mais ativo, em total desconsideração para com
incinerados instintos de acasalamento do passaredo afeito a florestas tropicais
dessas terras insulares que sonhos imprecisos de marinheiros habitam, mortos
todos há tanto tempo, no afã de achar tesouros que, ao fim e ao cabo, talvez
nunca tivessem existido senão na imaginação de meninos ávidos por histórias
contadas à sombra de uns enormes tonéis, presumivelmente repletos de vapores
densos, mas voláteis, fina flor da moderna alquimia que, entre uma baforada e
outra, um velho ia desfiando incansável, embora ele já pudesse ser dado como
morto, não fosse, precisamente, aquela mania que tinha de ir contando casos sem fim, um depois do outro,
desde que alguém se dispusesse a ouvi-los, mesmo que se tratasse de crianças, o
que ele até preferia, pela reconhecida capacidade que elas têm de elaborar
sobre premissas fantásticas, como as que soem sustentar as pequenas e
mesmo as maiores aventuras no mar, sem
menoscabo da verdade, uma quimera sempre pronta a nascer no meio da espuma,
esplendente, linda, como a própria Vênus Citereia, isso até o dia aziago em que
o ancião falador deixou de respirar, liberando o espírito, que já andava mesmo
de saco cheio, sem, contudo, parar de falar, nem quando um fedelho abelhudo
inteirou-se de sua condição totalmente cadavérica e, com um empurrão leve,
dissimulado, lançou nas águas do canal salobro e poluído aquele de cujus que já não tinha por que
permanecer sentado sobre as grandes pranchas do ancoradouro, pouco importando
que continuasse contando suas histórias intermináveis com a voz roufenha de
fumante que, apenas, de repente embargara inaudível, afogada pelas
circunstâncias, enquanto seus pecados, que nem seriam assim tantos, iam-no
devorando por dentro, no mesmo ritmo frenético com que siris vorazes e outros
pequenos predadores das águas fétidas consumiam-lhe por fora a carcaça, a essas
alturas parca, mas enfim uma pitança, o que tem muito de especulação despicienda,
dessas que só fazem assanhar os céticos apetites dos incréus, sem embargo do
fato de que uma boa história terá, sempre, o laivo de sinceridade que torna um
homem bom, isso quando não descarrila
feito um trem entediado, despencando colina abaixo, vagão após vagão, que
tristeza, as galinhas, quanta galinha, assustadas, tomadas do mais completo
pavor, em meio à ferragem retorcida e fumegante, ao clarão pálido de uma aurora
prestes a entregar-se a apoteótica explosão de luz, indiferente a vicissitudes
que, temos de reconhecer, pertencem exclusivamente ao inconsciente das
locomotivas, mesmo que possam levar a um desastre, afinal de contas libertador
de almas que bem poderiam ser anjos, levando-se em conta apenas a plumagem
brilhante, inferência essa porém totalmente desautorizada pelo modo algo
convulsivo com que ainda cacarejavam seu espanto, compartilhado por equipes de
salvamento que se esfalfavam entre aqueles restos de desastre e pela moça que operava o telégrafo e recebeu
a notícia em primeira mão, na terceira estação mais adiante, sobre quem pesava
mais, naquele momento de comoção para a gente ferroviária, uma angústia mais
própria de seu peito de donzela esperando, esperando com umas incoercíveis ânsias cada trem que chegava, confiante, certa de que numa tarde dessas,
depois do silvar estrídulo, saltaria da plataforma direto para seus braços, que
eram acolhida só, mais nada, o cavalheiro da sua redenção, aquele que lhe
estaria prometido desde antes dos tempos,
conforme consignavam as cartas e os astros, que jamais mentem, espadaúdo, forte, mas de voz e modos
suaves, em tudo distinto da rapaziada do lugar, tão rude, interessada só em
meter-lhe por sob as saias as mãos ásperas do trato com dormentes e trilhos ou
das lides do campo, e ainda por cima propensos a impropérios que constringiam
a concha da sua feminilidade, tão
sensível, fechando-a completamente de puro desgosto, mas não tinha importância,
porque haveria de se abrir resplandecente, luminosa e fresca como um pé de
alface, no dia, aquele, que o destino bem sabia qual, em que seu homem desceria
do trem para os seus braços, mas a velha Maria das Dores, meio enxerida porém
boa mulher, que tomava conta da cantina da estação e, às vezes, dos devaneios
de Matilde, a telegrafista, pronto compreendeu a situação e foi dizendo incontinenti acorda,
Matilde, acorda, temendo que o espírito da moça se perdesse não se sabe em que
desvãos de uns sonhos de amar, amar, amar que não se realizavam nunca, mas que
ao menos voltavam sempre ao ponto de partida a cada apito da máquina a vapor
que vinha resfolegando, resfolegando, até parar bem diante do guichê do
telégrafo, de onde Matilde conferia aflita se não seria daquela vez que estaria
chegando o seu prometido, mas se alguma vez passou por ali um homem como aquele, gentil e generoso, forte, e de uma
boniteza de mocinho de cinema, de olhos
azuis e tudo, não a reconheceu nem desceu na estação, mas é preciso perseverar,
jamais perder a paciência nem a esperança, conquanto Das Dores tivesse boas
razões para estar preocupada, temendo sobretudo que Matilde se deixasse
arrebatar pela miragem de sedução, pelo fantasma que assombrava as veredas mais recônditas dos
seus próprios sentimentos, ciente a velha de que homens maus, mesmo quando não existem de verdade, podem fazer muito mal a uma mulher
ingênua, tola, ou simplesmente apaixonada, mas
temia mais que a moça ficasse lá dentro, enleada em seu sonho e fosse se
afastando, se afastando para dentro da floresta de si mesma, até que não
pudesse mais ouvir silvar de trem que a trouxesse de volta à realidade,
preocupava-se e se desesperava até,
gritando entre os dentes, acorda Matilde,
acorda, volta Matilde, mas gritava em vão, porque o espírito da moça já
estava longe e seus olhos sempre claros, de um verdoso tão bonito, vivos,
brilhantes, estavam baços, desinteressados das cores e da luz, e Das Dores
sabia que naquela tarde de destroços na ribanceira não haveria resfolegar na
parada nem qualquer apito salvador que chamasse a perambulante alma de Matilde
das profundezas de seus labirintos, em que vagava, vagava, e então viu-se na
aguda contingência de tentar uma
derradeira cartada, saindo para a plataforma da estação, sem ligar para as caras de perplexidade das pessoas que se
ajuntavam por ali para conversar sobre os acontecimentos da ferrovia, começou a
sapatear, batendo com os pés no cimento
da calçada alta para imitar o ruído do
trem chegando, ampliando o som ritmado com golpes com as mãos nos próprios
quadris, enquanto gritava histérica cheque-cheque, cheque-cheque, até
descambar, em seguida, numa onomatopéia patética, do repique a vapor da máquina quando estava parando,
ipiiiiuuuu-iiii-ipiiiii iiiipiiiiu-piiiiiii uh uh, cheque-cheque, quando todos
correram para ela achando que tinha surtado, que endoidara e, presa entre
muitas mãos, ouvia vozes familiares pedindo-lhe que ficasse calma, sossega
mulher, fica calma Das Dores, e ela se agitava mais e se debatia, esperneava
gritando me larga, me larga, mas ninguém largava, enquanto alguém ia dizendo que as últimas notícias do acidente
eram até boas, só prejuízo material, tirando um foguista que perdeu o mindinho
da mão esquerda, um vagão de galinhas destroçado, no mais foi um baita susto,
então aquela mulher realista secou a fonte de suas lágrimas no peito e o rosto
e os olhos na manga curta do vestido claro, de bolinhas vermelhas feito
brotoejas, aceitando os fatos, pois não havia como explicar que só estava
tentando lançar a meada para sua amiga no fundo do poço, indicar-lhe o caminho da volta, a direção da
luz, no que falhou redondamente, porque a única coisa que realmente se parece
com um trem é um trem, e mesmo se ela pudesse contar com o apoio de uma troupe
completa para realizar a pantomima, não teria conseguido mais que uma pálida
sugestão do momento triunfal da chegada de um trem à estação, então tinha mesmo
que se conformar, de desistir, e quando as mãos que a sujeitavam apenas
começavam a afrouxar, ela já se dera conta de que Matilde desta vez não regressaria,
nunca mais, mas talvez, naquele contexto, nem valesse mesmo a pena, e o melhor
seria que a moça se deixasse levar por
algum torvelinho de sombras para uma estância mais quieta do onírico, onde não
pudesse ser alcançada pelo medo nem por qualquer outra monstruosidade da
escuridão, e esperar, esperar, considerando que retomar o fio da metáfora,
mesmo que todos estejamos irremediavelmente embarcados nela, não determina o sentido de seu
desdobramento nem dissipa-lhe o enigma, antes multiplica-o em infinitas imagens
de pura ilusão, de espelho no espelho, abismo e
vertigem, retorno da solidão à solidão, do deserto ao deserto, como um
disparo no vazio, do nada ao nada, e nada haveria a ser feito, a não ser – Quem
sabe? – um dia, recomeçar...
(NM)
(*) Versos do Varal e outros textos – Edições C.L.A. – 2008