Na quarta-feira de 2011 a Parca intempestiva e caprichosa reivindicou
para si a generosidade e o bom humor de
Jader de Oliveira, privando de seu convívio a animada tertúlia de incontáveis
manhãs de domingo na calçada do Tip Top, na Rua Rio de Janeiro, em BH. No
Sábado de Aleluia daquele ano, passado o primeiro impacto da grande perda, este
O&B publicou texto ocioso e anacrônico sobre o tango Cuartito Azul, só para evocar momentos bons da presença amiga dele.
Agora, também, a de Carlos Alberto de
Barros Santos, com quem compartilhava irremissível preferência pela canção de
Mores e Battistella. A reinserção da postagem pode ser só nostalgia de
blogueiro, mas também pode ser que não:
Para quem nunca tenha
lido um verso de Chénier
(Sábado, 23 de abril de 2011)
Em delicada prosopopéia, a personagem que toma por confidente o
“Cuartito azul de mi primera pasión”, no tango de Mores e Battistella, abre-se
feito se abriria um branco jasmim que exalasse os mais recônditos aromas de seu
afeto, depois de sofrer as penas de uma ruptura apenas sugerida, para
transformar-se em confortadora nostalgia na memória e na consciência. Mas é uma
canção de 1939, e seria de todo impossível justificar o extemporâneo de
qualquer discussão, fora de um contexto estrito de história do tango que, aqui,
não se aplica. Mas nesta aziaga Semana Santa, na quarta-feira, veio a notícia
da partida de nosso amigo Jader de Oliveira. Ele era doido por tangos em geral
e, em particular, por esse de Marianito Mores e Mário Battistella, que cantou
mais de uma vez em tertúlias no Tip Top. A voz não ajudava muito, mas era afinado
e hábil com as inflexões. A preferência por esse tango, compartilhada por
Carlos Alberto, de algum modo também explicitava a grande amizade de toda a
vida, deles dois.
Agora o seguinte, nesse tango, Battistella e Mores alcançam as mais elevadas
esferas da inspiração e da criação. “Cuartito Azul”, a par de canção belíssima
é de desconcertante eficácia, fundada sobretudo na metagoge encantadora. É
através dela que as nuances do sentimento de um amor arrebatado vão sendo
desveladas, contadas/cantadas pela primeira vez pela voz de Ignácio Corsini:
Cuartito azul
Tango - 1939
Música: Mariano Mores
Letra: Mario Battistella
Cuartito azul, dulce
morada de mi vida,
fiel testigo de mi
tierna juventud,
llegó la hora de la
triste despedida,
ya lo ves, todo en el
mundo es inquietud.
Ya no soy más aquel
muchacho oscuro;
todo un señor desde
esta tarde soy.
Sin embargo,
cuartito, te lo juro,
nunca estuve tan
triste como hoy.
Cuartito azul
de mi primera pasión,
vos guardarás
todo mi corazón.
Si alguna vez
volviera la que amé
vos le dirás
que nunca la olvidé.
Cuartito azul,
hoy te canto mi
adiós.
Ya no abriré
tu puerta y tu
balcón.
Aquí viví toda mi
ardiente fantasia
y al amor con alegria
le canté;
aquí fue donde
sollozó la amada mía
recitándome los
versos de Chénier.
Quizá tendré para
enorgullecerme
gloria y honor como
nadie alcanzó,
pero nada podrá ya
parecerme
tan lindo y tan
sincero
como vos.
A partir da sutil invocação do testemunho e cumplicidade de umas paredes
pintadas de anil, que, de repente, ganham vida, consciência e plenitude de
sentimentos na letra de Battistella, é tudo um espevitar de lembranças e
reiteração do amor apaixonado. E há aquela referência a André Chénier,
insólita, quase esotérica, que impregna o “cuartito azul” de um lirismo mágico,
prenunciador do Romantismo.
O poeta foi guilhotinado em 1794, durante o Terror, aos 32 anos,
dois dias antes que Robespierre, seu algoz, conhecesse a mesma sorte.
Argentinos que viveram as primeiras décadas do Século XX sempre estiveram
expostos aos influxos da cultura francesa, mas não é abusivo especular, ainda
que num âmbito de botequim, que Battistella tenha usado Chénier como cortina de
fumaça. Era muito recente, então, o assassinato de Federico Garcia Lorca pelos
franquistas, vítima da mesmíssima combinação maligna de radicalismo,
intolerância, prepotência e brutalidade. A Argentina de 1939 estava em plena
“Década Infame”, governo de Roberto Marcelino Ortiz, muita corrupção, muita
repressão. Se tivesse tido oportunidade, teria perguntado a Battistella se, de
fato, ele não pretendeu lançar luzes sobre Chénier para projetar a sombra de
Lorca... Governantes argentinos, militares ou civis, quanto mais corruptos,
mais idolatravam o generalíssimo espanhol e, talvez, não fosse prudente
naqueles tempos mencionar diretamente o poeta andaluz.
Mas voltemos ao plano do botequim e ao tipo de conversa que suscita e admite:
havia muitas pessoas em torno do chope bem cortado e da cachaça de Salinas do
Tip Top, entre as quais muitos leitores vorazes e contumazes que, unanimemente,
responderam que não à pergunta “alguém aí já leu Chénier?”
Chega a ser estranho, considerando-se que Chénier está há mais de dois séculos
no panteão dos poetas da França, não por seu destino trágico, mas por sua
altíssima poesia, que nunca deixou de interessar aos críticos, em seu país e
alhures. Mas registro apenas um comentário de Rubén Darío que, com autoridade,
dá boa medida das qualificações do poeta: “Entiéndase que nadie ama con más
entusiasmo que yo nuestra lengua [...] y que soy enemigo de los que corrompen
el idioma; pero desearía para nuestra literatura un renacimiento que tuviera
por base el clasicismo puro y marmóreo en la forma, y con pensamientos nuevos;
los de Chénier, llevado a mayor altura: arte, arte y arte.”
E para quem nunca tenha lido um verso de Chénier, busquei na Anthologie de la Poésie Française
(*), vol. II (De Malherbe à Chénier) uns realmente muito bonitos:
Élégie
André Chénier
Jeune fille, ton
coeur avec nous veut se taire.
Tus fuis, tu ne ris
plus; rien ne saurait te plaire.
La soie à tes travaux
offre en vain des couleurs;
L´aiguille sous tes
doigts n`anime plus des fleurs.
Tu n`aime qu´à rever,
muette, seule, errante,
Et la rose pâlit sur
ta bouche expirante.
Ah! mon oeil est
savant et depuis plus d`un jour;
Et ce n`est pas à moi
qu`on peut cacher l´amour.
Les belles font
aimer; elles aiment. Les belles
Nous charment tous.
Heureux qui peut être aimé d`elles!
Sois tendre, même
faible; on doit l`être um moment;
Fidèle, si peux. Mais
conte-moi comment,
Quel jeune homme aux
yeux bleus, empressés, sans audace,
Aux cheveux noirs, au
front pleine de charm et de grace...
Tu rougis? On dirait
que je t`ai dis ton nome.
Je lê connait
pourtant. Autour de ta maison
Cèst lui qui va, qui
vient; et laissant ton ouvrage,
Tu vas, sans te montrer,
épier son passage.
Il fuit vite; et ton
oeil, sur as trace accouru,
Le suit encor
logtemps quand il a disparu.
Certe, en ce bois
voisin ou trois fêtes brillantes,
Nul na as noble
aisance et son habile main
À soumettre un
coursier aux volontés du frein.
(*) Éditions Bernard
Valiquette – Montreal
(NM)