sexta-feira, 17 de abril de 2015

Réquiem por uma mangueira que caiu em Lourdes

Rua da Bahia, entre Antônio Albuquerque e Fernandes Tourinho, na altura que corresponde mais ou menos ao número 2567, Bairro de Lourdes, BH. Os especuladores imobiliários chegaram, compraram a velha e charmosa casa que havia no lugar e, rapidamente, demoliram tudo e transformaram a área em estacionamento, enquanto iam ultimando os meios e os termos para a construção de mais um prédio.

Um enorme pau d´arco guarnecia o acesso ao terreno e, nos fundos, gloriosa remanência dos antigos pomares de Lourdes, uma mangueira de uns oitenta, cem anos, gigantesca catedral verde. A consciência dos homens anda desandada. Ambição, ganância, cupidez, sabe como é. Mas os homens há muito deixaram de ser o centro do Universo, com o qual, aliás, parece terem perdido toda e qualquer conexão, nesta estranha época de indiferença e soberba, preparatória do advento do Capeta e da escuridão irremissível que o Livro das Revelações antecipa.

O ruído exasperante de moto serras começou cedo na manhã da última quarta-feira e, na quinta, ainda persistia implacável, no afã de fragmentar a madeira do que, até a véspera, tinham sido árvores monumentais. Que tristeza! Desde as grades que guarnecem os muros do estacionamento, pombas-trocazes tímidas e amáveis; há muita perplexidade nos olhinhos das pequenas almas aladas, cuja gentileza silvestre não pode compreender a devastação gratuita.Ó espanto, ó desolação!

A consciência dos homens anda desandada, mas a consciência vegetal, de outra ordem, funda-se na paciência e na  generosidade e perde o rumo nem o fulcro. Ela  ainda será gala e ornato deste nosso mundo insensato  mesmo quando os homens tenham consumado seus mais sombrios impulsos de autodestruição.Tanto o pau d`arco quanto a mangueira intuíram, por assim dizer, o que estava por vir e vestiram suas cores mais bonitas para aguardar o desfecho. Primeiro a florada magnífica, depois, os frutos sazonados que, ao serem abatidos por moto serras, entregaram à terra pela última vez . 


(NM)

12 comentários:

  1. E assim vamos indo...a cada dia uma beleza se vai...é triste...
    Magda Antuña

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  2. Parabéns, Nilseu! Muito bem colocado!
    Abraços
    Marlyana

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  3. Pois é, Nilseu, a gente nem sabe mais o que esperar dessa humanidade de consciência desandada e desrespeitosa. Se ao menos houvesse um pouco mais de humildade no coração dos homens para aprender com a mãe natureza...
    Bela a sua homenagem à mangueira!

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  4. Caro Nilseu,
    Contrastando com a doçura de seu texto, em que relata o triste e cruel ritual de partida de uma centenária e frondosa árvore, apaece esses destruidores de sonhos e nos cospem na cara essa insensatez fria, calculista e desumana. E assim, nossa memória ambiental vai sendo corroída pelas dragas e cimentados insensíveis, que agem sub repticiamente e à socapa, transformando a antiga cidade vergel num desgracioso conjunto de pombais.
    Me incluo nos suspiros incontidos nos textos de Nilseu Martins, Dinorah Carmo e me remeto à memória de Olavo Bilac, Burle Max, prof. Hugo Werneck e reverencio os colegas que, de suas trincheiras ecológicas nos sopram a brisa da resistência e nos inspiram como Fernando Gabeira, Silvestre Gorgulho, Hiran Firmino, Apolo Heringer, Roberto Messias, Célio Valle, Sthephen Hawking, Augusto Rushie e tantos outros que se dedicam ao estudo e/ou divulgação preservacionista. Parabéns, Nilseu, e conte conosco e me add em sua listagem do blog. E repito: CAITITU FORA DA MANADA É PAPÁ DE ONÇA

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  5. Caro amigo Nilseu:

    Cada um dos textos publicados no seu blog me provoca de alguma forma. Há algum tempo, Labirintos me deixou pasmado e sem fôlego, naquela vertigem provocada pela estonteante corrida do discurso que reproduz um stream of consciousness repleto de metáforas sensuais, onomatopéias, assonâncias , aliterações e intertextualidades, que me remeteu ao melhor de Joyce. Depois, a lembrança da passagem de Jader de Oliveira e, a partir deste, ao tango Cuartito Azul, de Mariano Mores e Battistella, com a improvável, mas provocante relação entre a referência a Chénier, a morte de Federico Lorca e a repressão na Argentina. Incrível como a morte de seus amigos o comove, mas não o deprime, pois parece que o trio do arrepio Cloto, Láquesis e Átropo não o assusta muito.
    Você me faz lembrar a sabedoria de Epicuro, ao nos prevenir sobre a fragilidade da nossa condição humana e de como a morte nos rodeia, como um animal faminto que vai acabar nos devorando a qualquer momento, alertando que “...ao abraçar um amigo, lembre-se de que pode estar abraçando-o pela última vez.”

    Mas, a condição mortal não pode ser argumento para semearmos a destruição das manifestações da vida à nossa volta. Isso é o que você mostra nesta última crônica , Réquiem para uma mangueira que caiu em Lourdes. Se estamos fadados à degeneração progressiva e à morte, pelo menos deveríamos zelar pela vida.
    Se você, em crônica anterior, referiu-se à emblemática frase de Gertrude Stein, amplamente comentada por ela mesma em Autobiografia de Alice B. Toklas, “Uma rosa é uma rosa é uma rosa”, recorro a Guimarães que a parafraseia em Noites do Sertão, na novela Dão-Lalalão (O Devente):”...o erro de um erro de um erro.” Erros como a morte dessa mangueira são decorrentes de outros, anteriores. Quem pode esquecer o massacre das árvores da Afonso Pena? Infelizmente, os que cometem essas atrocidades parecem ter mais força do que aqueles que, como você, as denuncia. Concluo com uma frase do mesmo Guimarães em No Urubuquaquá, no Pinhém, no conto A estória de Lélio e Lina: “Homem é criatura de diversos lados, desparelha.” Obrigado por mais esse texto repleto de emocionante e triste poesia.

    Um grande abraço do amigo que, entre tantas qualidades demonstradas por você, admira-o também pela segurança da sua performance escrita, que não se deixa jamais trair pelas armadilhas da prosódia, da ortografia e da sintaxe, um verdadeiro exemplo em tempos tão escuros para a última flor do Lácio...

    Zé Maria

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  6. Caríssimo Prof. Zé Maria,

    Obrigado por palavras tão amáveis! Manifestações assim alentam o blogueiro e alegram o coração, dando sobrevida a Ociosidades & Bagatelas que, depois de quatro anos na rede, tem perdido fôlego.

    Grande abraço

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  7. Caro Nilseu,

    felizmente, ainda há quem lamente e, especialmente, proteste, nos meios de divulgação a que tem acesso, contra a miopia da especulação imobiliária que não suporta a presença de belas e generosas árvores. A mangueira e o pau d'arco da rua da Bahia até resistiram muito, numa região em que a devastação se tornou rotina e numa cidade, já cantada pelo poeta como vergel, mas que agora enfrenta a sanha mutiladora e devastadora de gente contratada pela PBH e Cemig para justificar os crimes contra a natureza. É bom também que ainda tenhamos esperança de que nem tudo está perdido.

    Um abraço,

    LFPerez

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  8. Bravo! Receba o meu abraço e muitos outros a pedidos dos passarinhos, árvores e seres humanos da área. Mandando o link para vários amigos também.

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  9. Caro Nilseu

    Sempre fico em dia com Ociosidades & Bagatelas. Não as negligencio, porém não posso dizer o mesmo da comunicação. Estou para telefonar-lhe há tempos e sempre adio. Talvez uma inconsciente contra partida de suas promessas de visitas á minha casa.

    Não me atrevo a participar do seu blog. (...) fogem-me palavras e linhas de pensamento, perdidas no emaranhado de tantos anos, tantas horas. Não tive ainda a sua sabedoria de aposentar-me das chatices e ficar com as benesses (esquisita palavra). Continuo na lida e fazendo o que é bom nos intervalos. O correto seria o contrário. Tenho lido estranhos livros, muitos de autores escandinavos, policiais sombrios, uma visão diversa daquela da nossa imaginação.

    Pela segunda vez emocionei-me com o cuartito azul (não conto as 214 vezes ouvi a canção). Como moro aqui (em Franca-SP), importei-me bem pouco com a árvore derriçada. Ainda acho que tem muito mato neste mundo. Quase não tenho ido a BH. Você quase não tem vindo aqui. Este é o motivo de conversarmos tão pouco. (Pensamento cartesiano ou lusitano).

    É isso,

    Paulo Sérgio

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  10. Querido Nilseu,

    De minha parte, não deixei e fiz constar no contrato de compra e venda a obrigatoriedade de conservação das cinquentenárias árvores da Marquês de Maricá, 105, famosas por já terem sido cantadas numa coluna de jornal de Belo Horizonte. Lá estão elas, garbosas e altas, enfeitando o edifício construído com respeito à natureza. O mesmo aconteceu na rua Campanha, no Carmo, com velho jequitibá plantado por um ecologista nato, que nem sabia do título que hoje teria. A pena que muitas outras são derrubadas sem respeito, por pessoas que não trazem amor à natureza no coração. Construir é fácil, difícil é construir deixando a bela e frondosa árvore intacta, num projeto arquitetônico criativo.

    Gostei muito do encontro dos jornalistas em Santa Tereza. Deve ter sido pra lá de bom!

    Abraço da amiga de sempre,

    Marilia

    P.S. Também gostei do artigo sobre a graça, escrito pelo Clóvis. Para dizer a verdade, foi o que mais gostei até agora. Obrigada por suas palavras, como sempre.

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  11. Encontro-me descrente do futuro dessa espécie bárbara a que pertenço.
    Não vejo mais viabilidade para o "Homo "sapiens"". Que denominação infeliz!
    Em tempos de aridez vamos cortar árvores, que sapiência.
    Lembrando meu Tio Pedro, um sábio das roças do Paraná, os idiotas são 15, morre um, ficam 17.

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  12. Nilseu, seu plangente libelo contra a especulação imobiliária em Belô me fez lembrar que, nos começos da década de 80, quando viemos, minha família e eu, morar definitivamente aqui, escrevi uma longa matéria sobre esse tema para o hoje extinto Jornal DeCasa. Nela, eu apontava a desfiguração da minha cidade natal, que já dava os primeiros sinais do Mal de Alzheimer... Sim, é isso, com a derrubada de tantas casas e tantas árvores representantes de nossa história, apaga-se também aos poucos a memória das coisas e do tempo vivido. Não é saudosismo, não. Tanto que, alguns governos mais lúcidos vêm tentando preservar, por meio de tombamentos, o que resta desse passado que é, ao fim e ao cabo, o registro de uma cultura. Parabéns pelo belo texto!
    Angela

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