segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Breve discurso em louvor à conversa fiada

Conversa fiada depende das disponibilidades de tempo e presença em locais onde se possa contar uma história, uma anedota, à toa, descansadamente, admitindo, claro, a participação de algum apressado que chega, conta ou ouve qualquer banalidade e vai embora. Pode começar pela mais prosaica das indagações meteorológicas: Será que hoje chove? Mas também de qualquer outro jeito. Se vai acabar, e onde, é outra questão, porque flui em círculos e raramente é conclusiva. Nos parlamentos, concílios, conclaves, congressos, seminários e que tais também é assim, mas qualquer comparação para por aí, por lhes faltar o ócio genuíno e desinteressado.

 A essência do conversar fiado é a gratuidade, que permite a agregação de contribuições a uma anedota ou a uma história qualquer, de papagaio, pescador, de padre, de garimpeiros, caçadores, pícaros, valentões, e histórias de amor e sedução...  Essas histórias, às vezes, transbordam das comunidades em que foram engendradas e, em alguns casos, o continuo processo de aprimoramento as eleva à dignidade de patrimônio de toda a Humanidade. Jorge Luís Borges atribui aos “mentideros” do Oriente, cujo cerne é a conversa fiada sem meias nem peias, boa parte da gestação do Livro das Mil e Uma Noites, livro de todos nós. Fora isso, numa boa conversa fiada ninguém ganha nada, mas, também, não perde.

Afã de companhia, espairecimento ou diversão, lazer, sei lá! O prazer ancestral de  conversar fiado é um modo universal de convivência, por metonímia, a própria convivência, cujas origens perdem-se no tempo em que grandes primatas começavam a articular as primeiras palavras na recôndita escuridão das cavernas. E vem, desde então, renovando-se, adaptando-se a peculiaridades geográficas, de clima, ambiente, cultura. Nômades dos desertos do mundo, pastores das estepes ou das montanhas, caçadores, pescadores  polinésios e baianos cultuaram, sempre, a conversa fiada, em volta de uma fogueira, na praia, à sombra de uma grande castanheira num pequeno passeio, ou de um pé de jatobá antigo, numa praça antiga... É conversar, contar e ouvir histórias, rirem juntos, ou até chorar, a instâncias de um relato comovente de peripécias que a condição humana imponha. Mulheres reunidas junto à fonte, enquanto esperam a vez de encher seus cântaros, conversam, conversam. Na beira do rio, as que lavam roupa, se não estão cantando, também conversam... As coisas mudam, mas nem tanto. Se a chuva não passa, e enquanto a Peste não vai embora, como nos tempos de Boccaccio, o jeito é contar história.

Mas, e o botequim?

Em esquinas e praças de cidades grandes e pequenas, em velórios, vendas de secos e molhados, portas de igreja, feiras, mercados, salões de beleza e de barbeiro, salões de sinuca, pontos de táxi, bordéis, é a conversa fiada que nutre a convivência. Admitamos, porém, que a catedral onde se celebram seus grandes e pequenos mistérios, gozosos e gloriosos, uns, outros nem tanto, é mesmo o botequim, onde tudo reverbera: Saúde!  (NM)

15 comentários:

  1. Mais conversa fiada, impossível. Devia ser o prólogo de todo encontro de boteco...

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  2. Mais conversa fiada, impossível. Deveria ser lida obrigatoriamente em todo rendez-vous que se preze.

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  3. Querido Nilseu,

    É sempre com grande prazer e dando risadas aqui e ali que leio o seu blog.

    Grande abraço para você.

    Marilia

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  4. Melhor ainda é encontrar com você ali pela Savassi e botar em prática os preciosos ensinamentos aqui descritos.

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    1. Ô, Fabbrini,

      Isso aí é fácil. A gente está sempre a bordo.

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  5. Que roupagem linda você deu à conversa fiada, Nilseu! No seu blog a gente só tem a ganhar.
    Saudades da boa prosa Savassiana!!!
    Abraços,
    Sônia

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    1. Taí, Sonel,

      Os botequins da Savassi continuam em seu lugar. Você é que está longe demais e faz falta por aqui.

      Abraço

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  6. Saúde, Nilseu!Que conversa fiada boa!

    Magda Antuña

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  7. É isso Nilseu, nada melhor do que um botequim pra prosear. E nada como sentar em um botequim em Santa Tereza, meu cantinho no mundo.

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  8. Nilseu, não é um comentário, é uma tese sobre um assunto muito sério.
    Não imagina você, para quem carece , a falta que faz a conversa fiada.
    Um grande abraço.Aguardo sua visita.

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    1. É claro que não lhe haveria de escapar o espírito da coisa. Me alegra ter você na minha conversa fiada.

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  9. Prezado Nilseu,

    quem aprovaria o seu texto seria o Otto Lara Rezende, cujo epitáfio, segundo seus amigos, deveria ser: "Aqui jaz Otto Lara Rezende, mineiro ilustre, mancebo guapo. Passou a vida, batendo papo".
    Um abraço,

    Ismael

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    1. Pois é. Às vezes, o melhor é ir mesmo levando a vida no papo.

      Grande abraço

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