domingo, 2 de dezembro de 2018

Tempo de colégio

Dois colégios, os dois na cidade vizinha, que ali não tinha nenhum. A “jardineira” amarela e marrom feito bem-te-vi levava os estudantes todas as manhãs, cerca de uma hora nos vinte quilômetros de estradinha poeirenta, ou lamacenta, conforme a estação, e os trazia de volta. Os rapazes estudavam no “São Gabriel”, dirigido por religiosos italianos. Haviam chegado em meados dos anos 50 com suas cicatrizes da guerra, que mal acabara; alguns traziam feridas abertas. Discretos em política, celebraram a visita do presidente Giovanni Groncchi ao Brasil com genuína empolgação democrata-cristã.


Sem maior impacto na vida do colégio, surgiu, não se sabe de onde, uma entidade que se propunha a “conscientizar e mobilizar os jovens católicos contra o comunismo ateu”. A EAC dava carteirinhas aos acólitos, prestigiava novenas, ladainhas e ave-marias em geral,  ”momentos de oração” e “cursilhos de cristandade”. Os “irmãos” estimularam a participação dos alunos, mas só Eduardo “Gafanhoto” – pernas compridas e arqueadas, cabeça pequena – doido pra ser líder de alguma coisa, encampou a causa com entusiasmo. As adesões, contudo,  foram mínimas, e ele teve de conformar-se em ser líder dele mesmo. Comunista pra merecer beligerância não havia nenhum, mas o desinteresse pela EAC também tinha outros fundamentos, como o sugerido de modo enviesado em comentário do Márcio Gerep, do quarto ano:

– Esse “Gafanhoto” já chegou aqui como o chato mais phthírico do colégio.

Em manhã ensolarada de radioso abril, o “teaser” misterioso, Oh! não só no pátio e nos muros do colégio, mas em tudo quanto é poste, barranco, calçada, pavimentos de paralelepípedos, por toda a cidade, três enormes e intrigantes letras a cal: UBG, uma comoção. Nos dias subsequentes, a pichação continuou, só para aprofundar o enigma: “O que será UBG?”, “A UBG está chegando!”, “Cuidado com a UBG!”

Enfim, o inimigo à vista. “Gafanhoto” exultava ao convocar sua militância para a pugna inevitável: “Isso só pode ser coisa comunista. Eia, sus, avante, à luta!”

Passados uns dias, novas pichações deram extensão à sigla: União dos Bocorongos Guarititas, outros mais e Zé Cássio e Nêta, os dois do terceiro ano, assumiram a invenção da história, “um trabalho do cão”, mas se divertiram. Era tudo ficção: não havia “união” alguma, “bocorongos” não existem, “guarititas” muito menos. E Zé Cássio, impiedoso: – A UBG é tão fantasmagórica quanto a EAC.

Decepção grande, “Gafanhoto” quase soluçando: –  Ele não podia, não podia dizer uma coisa dessas.

Os “irmãos”

Menos de trinta anos, Irmão Giovanni lecionava francês. Irritadiço, tenso, o tempo todo parecia prestes a um ataque nervoso. A guerra ainda sangrava nele: na penúltima semana antes de acabar na Itália, brincava com outras crianças em escombros de sua vizinhança. Veio o ronco dos aviões americanos, o estrondo, bombas. Correu para casa e não havia mais casa, nem pai, nem mãe, irmãos, cachorro, nada ...   

Baixo, atarracado, quase calvo, tez morena, que traía sua origem meridional, Irmão Wenceslau, quarenta e poucos anos, era o diretor de fato, porque o titular, Irmão Angélico, andava com problemas de saúde e passava recolhido a maior parte do tempo. Impressionava por sua cultura que, aos olhos de seus jovens alunos, abarcava todos os campos do conhecimento. Em situações de emergência, substituía qualquer professor, de qualquer disciplina, inclusive Português. Entrava na sala e perguntava: – Onde paramos?

Numa dessas atuações eventuais ele ofereceu, pela primeira vez, a um bando de adolescentes desatentos, uma dimensão palpável de Camões e de “Os Lusíadas”: –  Sua epopeia está no mesmo nível da “Eneida”, de Virgílio, ou da “Jerusaleme”, do Tasso. É uma glória do Ocidente, coluna do templo da Língua Portuguesa.

 Dante?

 Bem. A “Comédia” é outra coisa. Incomparável. Alighieri, modesto, compôs assim, sob o título genérico, o poema monumental. “Divina”? Não, nunca cometeria tal petulância. Contemporâneos e pósteros é que a distinguiram com o adjetivo supremo, e ficou “Divina Comédia” para sempre.

Para quem nunca tinha ouvido falar nessas coisas, foi uma revelação. Por essas é que, quando Irmão Wenceslau falava, até as aranhas do teto ficavam quietas, escutando. De jovem, ele foi com as tropas italianas à África do Norte, justo por sua proficiência no idioma do inimigo. Não contou que experiência viveu ou presenciou, mas terá comido do pão que o diabo amassou naquelas escaldantes vastidões africanas. No colégio, dava aulas de matemática e ciências naturais. E nunca mais disse uma palavra em inglês.

Magro, alto, cabelos claros, olhos muito azuis, Irmão Angélico estava perto dos setenta anos.   Contavam que fora preceptor do filho do Conde Ciano, aquele genro inútil de Benito Mussolini, e também que estudara física quântica e outras complicações subatômicas com ninguém menos que o laureado Enrico Fermi. Homem carrancudo, inacessível, não dava pra gente perguntar-lhe a respeito, não dava pra perguntar nada. Poucas vezes alguém lhe ouviu a voz, praticamente não falava, mas sua autoridade de diretor era incontrastável.

Aconteceu que Irmão Gerardo, o mais jovem daqueles italianos, que sempre flertava com o mulherio, se tinha oportunidade, e sempre tinha, bem-apessoado o sujeito, dava aula de Latim e canto orfeônico. Alguém pediu que cantasse alguma coisa da época da guerra e veio uma canção de barqueiros do Rio Brenta, depois iucaidi, iucaidá.  Aí, entusiasmou-se, justo no “jingle” dos “jingles” do fascismo, mas não passou de Se tu dall'altipiano guardi il mare // Moretta che sei schiava fra gli schiavi ...

Irmão Angélico ouviu e irrompeu furioso sala adentro. Ninguém, fora o “irmão” cantor, entendeu tudo que disse em italiano áspero, só a esculhambação. Em seguida, retirou-se, e Irmão Gerardo, recomposto, continuou a aula sem Faccetta nera: escapou-se pela “Picolissima serenata”, que ainda tocava no rádio:

Mi farò pensare un soldino di sole
Perche regalare lo voglio a te
Lo potrai posare sui biondi capelli
Quella nube d'oro accarezzerò...

Questa piccolissima serenata
Con un fìl di voce si può cantar
Ogni innamorato all'innamorata
La sussurrerà, la sussurrerà

Algum tempo depois, Irmão Angélico foi-se embora pra outra cidade, outro colégio, mais antigo, base da sua congregação. A gente não sabia que levava, fundo, no estômago, um câncer devastador, o que não é coisa fácil de levar. Ah, e a tristeza de não voltar nunca mais à Itália, e essas nostalgias irremissíveis, próprias, de cada um! É de se supor que Irmão Angélico se tenha empenhado sinceramente em nunca mais ouvir aquele rataplã marcial que – colonialista, racista, machista – embalava  Il Duce em seus delírios imperiais. Mesmo assim, não dá pra conjeturar se, feito um persistente acufênio, a canção não lhe terá reboado na memória à chegada do Anjo?

Se tu dall'altipiano guardi il mare
Moretta che sei schiava fra gli schiavi ...
Vedrai come in un sogno tante navi
E un tricolore sventolar per te
Faccetta nera, bell'abissina
Aspetta e spera che già l'ora si avvicina! (....)

A “irmã”

As moças estudavam no “Helena Guerra”, da congregação das Irmãs Oblatas do Espírito Santo. Irmã Lourença, a reitora, no discurso e na práxis destoava no âmbito conservador e se esforçava para que as estudantes aprendessem a enxergar o Brasil desigual: os pobres existem e são muitos. Grandes olhos claros, sobrancelhas se encontrando com suavidade sobre a linha do nariz quase aquilino, discretamente etrusco, que traiam o louro dos cabelos recolhidos em seu hábito de freira. Na voz branda explicitava seu encantador acento toscano, conservado sem esforço. O que cultivava com diligência? Compaixão, misericórdia, sobretudo para com os “mansos e humildes de coração”.

Tons de róseo de entardeceres de outono sobre as serranias do Sudoeste cintilavam nas maçãs do rosto dela. Se era a favor de reformas, do governo ou outras, não dá pra saber, mas o mais provável é que achasse que, como estava, não estava bom. E Irmã Lourença era muito bonita. (nm)