Sem maior impacto na vida
do colégio, surgiu, não se sabe de onde, uma entidade que se propunha a “conscientizar
e mobilizar os jovens católicos contra o comunismo ateu”. A EAC dava carteirinhas aos acólitos, prestigiava
novenas, ladainhas e ave-marias em geral, ”momentos de oração” e “cursilhos de
cristandade”. Os “irmãos” estimularam a participação dos alunos, mas só Eduardo
“Gafanhoto” – pernas compridas e arqueadas, cabeça pequena – doido pra ser
líder de alguma coisa, encampou a causa com entusiasmo. As adesões, contudo, foram mínimas, e ele teve de conformar-se em
ser líder dele mesmo. Comunista pra merecer beligerância não havia nenhum, mas
o desinteresse pela EAC também tinha
outros fundamentos, como o sugerido de modo enviesado em comentário do Márcio
Gerep, do quarto ano:
– Esse “Gafanhoto” já chegou
aqui como o chato mais phthírico do colégio.
Em manhã ensolarada de
radioso abril, o “teaser” misterioso, Oh! não só no pátio e nos muros do
colégio, mas em tudo quanto é poste, barranco, calçada, pavimentos de
paralelepípedos, por toda a cidade, três enormes e intrigantes letras a cal: UBG, uma comoção. Nos dias subsequentes,
a pichação continuou, só para aprofundar o enigma: “O que será UBG?”, “A UBG
está chegando!”, “Cuidado com a UBG!”
Enfim, o inimigo à vista. “Gafanhoto”
exultava ao convocar sua militância para a pugna inevitável: “Isso só pode ser
coisa comunista. Eia, sus, avante, à luta!”
Passados uns dias, novas
pichações deram extensão à sigla: União
dos Bocorongos Guarititas, outros mais e Zé Cássio e Nêta, os dois do
terceiro ano, assumiram a invenção da história, “um trabalho do cão”, mas se divertiram. Era tudo ficção: não havia “união” alguma, “bocorongos” não existem, “guarititas”
muito menos. E Zé Cássio, impiedoso: – A UBG
é tão fantasmagórica quanto a EAC.
Decepção grande, “Gafanhoto” quase
soluçando: – Ele não podia, não podia
dizer uma coisa dessas.
Os “irmãos”
Menos de trinta anos, Irmão
Giovanni lecionava francês. Irritadiço, tenso, o tempo todo parecia prestes a
um ataque nervoso. A guerra ainda sangrava nele: na penúltima semana antes de
acabar na Itália, brincava com outras crianças em escombros de sua vizinhança.
Veio o ronco dos aviões americanos, o estrondo, bombas. Correu para casa e não
havia mais casa, nem pai, nem mãe, irmãos, cachorro, nada ...
Baixo, atarracado, quase
calvo, tez morena, que traía sua origem meridional, Irmão Wenceslau, quarenta e
poucos anos, era o diretor de fato, porque o titular, Irmão Angélico, andava
com problemas de saúde e passava recolhido a maior parte do tempo.
Impressionava por sua cultura que, aos olhos de seus jovens alunos, abarcava
todos os campos do conhecimento. Em situações de emergência, substituía
qualquer professor, de qualquer disciplina, inclusive Português. Entrava na
sala e perguntava: – Onde paramos?
Numa dessas atuações
eventuais ele ofereceu, pela primeira vez, a um bando de adolescentes desatentos,
uma dimensão palpável de Camões e de “Os Lusíadas”: – Sua epopeia está no mesmo nível da “Eneida”, de Virgílio, ou da “Jerusaleme”, do Tasso. É uma glória do
Ocidente, coluna do templo da Língua Portuguesa.
– Dante?
– Bem. A “Comédia” é
outra coisa. Incomparável. Alighieri, modesto, compôs assim, sob o título
genérico, o poema monumental. “Divina”? Não, nunca cometeria tal petulância. Contemporâneos
e pósteros é que a distinguiram com o adjetivo supremo, e ficou “Divina Comédia”
para sempre.
Para quem nunca tinha ouvido
falar nessas coisas, foi uma revelação. Por essas é que, quando Irmão Wenceslau
falava, até as aranhas do teto ficavam quietas, escutando. De jovem, ele foi com
as tropas italianas à África do Norte, justo por sua proficiência no idioma do
inimigo. Não contou que experiência viveu ou presenciou, mas terá comido do pão
que o diabo amassou naquelas escaldantes vastidões africanas. No colégio, dava
aulas de matemática e ciências naturais. E nunca mais disse uma palavra em
inglês.
Magro, alto, cabelos claros,
olhos muito azuis, Irmão Angélico estava perto dos setenta anos. Contavam que fora preceptor do filho do Conde
Ciano, aquele genro inútil de Benito Mussolini, e também que estudara física
quântica e outras complicações subatômicas com ninguém menos que o laureado
Enrico Fermi. Homem carrancudo, inacessível, não dava pra gente perguntar-lhe a
respeito, não dava pra perguntar nada. Poucas vezes alguém lhe ouviu a voz,
praticamente não falava, mas sua autoridade de diretor era incontrastável.
Aconteceu que Irmão Gerardo,
o mais jovem daqueles italianos, que sempre flertava com o mulherio, se tinha
oportunidade, e sempre tinha, bem-apessoado o sujeito, dava aula de Latim e canto
orfeônico. Alguém pediu que cantasse alguma coisa da época da guerra e veio uma
canção de barqueiros do Rio Brenta, depois iucaidi,
iucaidá. Aí, entusiasmou-se, justo no
“jingle” dos “jingles” do fascismo, mas não passou de Se tu dall'altipiano guardi il mare // Moretta che sei schiava fra gli
schiavi ...
Irmão Angélico ouviu e
irrompeu furioso sala adentro. Ninguém, fora o “irmão” cantor, entendeu tudo
que disse em italiano áspero, só a esculhambação. Em seguida, retirou-se, e
Irmão Gerardo, recomposto, continuou a aula sem Faccetta nera: escapou-se pela “Picolissima
serenata”, que ainda tocava no rádio:
Mi farò pensare un soldino di sole
Perche regalare lo voglio a te
Lo potrai posare sui biondi capelli
Quella nube d'oro accarezzerò...
Perche regalare lo voglio a te
Lo potrai posare sui biondi capelli
Quella nube d'oro accarezzerò...
Questa piccolissima serenata
Con un fìl di voce si può cantar
Ogni innamorato all'innamorata
La sussurrerà, la sussurrerà
Ogni innamorato all'innamorata
La sussurrerà, la sussurrerà
Algum tempo depois, Irmão
Angélico foi-se embora pra outra cidade, outro colégio, mais antigo, base da sua
congregação. A gente não sabia que levava, fundo, no estômago, um câncer devastador,
o que não é coisa fácil de levar. Ah, e a tristeza de não voltar nunca mais à
Itália, e essas nostalgias irremissíveis, próprias, de cada um! É de se supor
que Irmão Angélico se tenha empenhado sinceramente em nunca mais ouvir aquele
rataplã marcial que – colonialista, racista, machista – embalava Il Duce
em seus delírios imperiais. Mesmo assim, não dá pra conjeturar se, feito um persistente
acufênio, a canção não lhe terá reboado na memória à chegada do Anjo?
Se tu dall'altipiano guardi il mare
Moretta che sei schiava fra gli schiavi ...
Vedrai come in un sogno tante navi
E un tricolore sventolar per te
Faccetta nera, bell'abissina
Aspetta e spera che già l'ora si avvicina! (....)
A “irmã”
As moças estudavam no “Helena
Guerra”, da congregação das Irmãs Oblatas do Espírito Santo. Irmã Lourença, a
reitora, no discurso e na práxis destoava no âmbito conservador e se esforçava
para que as estudantes aprendessem a enxergar o Brasil desigual: os pobres
existem e são muitos. Grandes olhos claros, sobrancelhas se encontrando com
suavidade sobre a linha do nariz quase aquilino, discretamente etrusco, que
traiam o louro dos cabelos recolhidos em seu hábito de freira. Na voz branda
explicitava seu encantador acento toscano, conservado sem esforço. O que
cultivava com diligência? Compaixão, misericórdia, sobretudo para com os
“mansos e humildes de coração”.
Tons de róseo de entardeceres
de outono sobre as serranias do Sudoeste cintilavam nas maçãs do rosto dela. Se
era a favor de reformas, do governo ou outras, não dá pra saber, mas o mais
provável é que achasse que, como estava, não estava bom. E Irmã Lourença era
muito bonita. (nm)
Puxa, Nilseu, que viagem no tempo! Aqui no Arnaldo também existiam padres alemães sofrendo com a temível "neurose de guerra", como as beatas comentavam. E a Piccolissima Serenata fez fundo musical para meu romantismo que nascia. Abração, belo texto. bravissimo, caro scrittore!
ResponderExcluirÉ isso aí, Fabbrini. Boas escolas, boas lembranças.
ExcluirCaro Nilseu:
ResponderExcluirAbri e li suas lembranças do tempo de colégio. Parabéns pelo texto, pela capacidade descritiva, pela memória. Acho qiue você deveria planejar um vôo literário maior, do tipo "O que vi e vivi".
Mauro Werkema
Ô, Mauro,
ResponderExcluirObrigado por suas palavras e por sua companhia aqui neste O&B.
Olá Nilseu,
ResponderExcluirApreciei muito as suas memórias escolares!
Grande abraço para você e para a Rosa também!
Cecilia
Querida Cecília,
ExcluirObrigado por sua presença aqui em O&B e por suas palavras amáveis.
Grande abraço
Nilseu,
ResponderExcluirvocê é um felizardo, pelo que conta de sua experiência em colégio de padres italianos. Texto gratificante de se ler. Eu não tive tanta sorte. Vivi durante quatro anos, noite e dia, em escola dirigida por um padre alemão, em Bom Despacho e Dores do Indaiá, de 1954 a 58 (de dez a 14 anos). Ele odiava os Estados Unidos, porque entraram na guerra e derrotaram Hitler. Seu líder, pelo que eu entendia, embora ele tivesse o cuidado de não confessar essa admiração. Mas agia como nazista, isso era fácil perceber.
Foi o melhor exemplo que tive para, até morrer, ser um inimigo dos nazistas.
É sempre um prazer ler o seu blog
Abraço, José de Castro
Ô, Zé,
ResponderExcluirPra mim, é um privilégio ser seu amigo e, com merecimento ou não, receber suas mensagens sempre generosas. É verdade que tive sorte com os professores do ginásio. Mesmo os mais aborrecidos, de um ou outro modo me favoreceram com lições que até hoje me enriquecem o espírito. Homens bons, lembranças boas. Grande abraço
Uma delícia ler essas histórias de colégio, cheias de graça em seu texto. Com certeza, um privilégio o contato com a literatura assim, e a sensibilidade aflorada pelas cicatrizes da guerra em cada mestre...
ResponderExcluirUm beijo, professor,
Ah, querida!
ResponderExcluirBom receber sua mensagem. Escola boa, boas lembranças. É isso
Nilseu, como é bom ler suas lembranças, estórias,casos!
ResponderExcluirMagda
Valeu, Magda.
ResponderExcluirNilseu, já lhe falei, certa vez, seus textos ao mesmo tempo que estendem nossa cultura fazem crescer minha admiração pelo jeito manso de narrar. Um abraço fraterno, Lélio
ResponderExcluirObrigado, Lélio.
ResponderExcluirSuas palavras inflam o ego do blogueiro e alegram o coração.
Nilseu,
ResponderExcluirLi mais de uma vez as suas lembranças do Colégio.Elas trouxeram as minhas, que quietas se escondiam em algum canto da minha memória . Na mesma época eu morava, como interno, no Colégio Champagnat em Franca.E, igualmente com vários Irmãos europeus, carregados de traumas e experiências ruins da guerra, tão próxima. Apenas 14 anos nos separavam do seu término.
Minhas lembranças não se apresentam tão venturosas. Você teve mais sorte. A exceção fica com um polonês irascível e culto, professor de História, chamado Basílio. O sobrenome tinha pelo menos 15 consoantes e raras vogais.Carecia de humor e sobrava a vontade de ensinar de forma correta.Porém, o mais perto que chegou foi na Revolução Francesa. Hoje, entendo a razão.Tinha o irmão André, anão e com um grave desvio na coluna vertebra. Sua deformidade corporal acompanhava seu caráter, ou vice- versa. O irmão Alexandre, italiano, mais jovem, professor de matemática, colérico e histérico. O reitor, também jovem, cujo nome me escapa, sabia pouco sobre pouco. Um professor leigo de latim com o apropriado nome de Sudário, cujos ensinamentos usufruo até hoje. Para este, devo. E outros, também de lembranças desabonadoras ou neutras. Sobraram muitos colegas conhecidos, algumas quase amizades.
Paulo
Ô, Paulo,
ExcluirBom que ainda tenhamos memória para lembrar.