domingo, 30 de maio de 2021

O entendimento da Natureza.

 (José Daniel Machado)*

Todos os entendimentos que os homens têm da Natureza podem ser agrupados em dois campos distintos e inconciliáveis: 

    No campo A encontram-se aqueles que acreditam na existência de um (ou vários) sujeitos da criação transcendental que, do lado de fora, num dado momento, criou livremente a Natureza e todos os seres que estão nela, visando uma finalidade. Esse criador possui poderes absolutos e, quase sempre, tem forma e sentimentos humanos - é antropomórfico. Senhor dos destinos, ele pode modificar, se quiser, aquilo que ele mesmo criou - milagres. Nesta criação o homem é o centro da Natureza, dotado de livre-arbítrio para uns e/ou é predeterminado pelo criador para outros. Criador e criatura têm relacionamento transcendente. 

    No campo B encontram-se aqueles que entendem que a Natureza é causa de si e causa imanente de todos os seres que estão nela. Neste caso, não existe sujeito da criação. A Natureza se  autoproduz numa ordem necessária segundo as suas próprias leis eternas, gerando, concomitantemente, os seres finitos e singulares que dela participam expressivamente. Estes seres - os homens, por exemplo - têm com a Natureza um relacionamento imanente. 

    Os adeptos do campo A são amplamente majoritários, dele fazem parte filósofos, profetas, teólogos, religiosos e quase a totalidade do vulgo. O campo B é minoritário, sendo constituído de filósofos e cientistas naturalistas, além de poucos elementos do vulgo. Dentro de cada lado, principalmente no campo A, existem inúmeros subgrupos proselitistas que, frenquentemente, entram em conflito sangrento por intolerância, em defesa dos seus dogmas e/ou pelo poder. 

    No campo A a verdade é revelada pelas Sagradas Escrituras e no campo B é buscada pela luz natural - razão. Para os adeptos do campo A a Natureza tem início, fim e, por óbvio, possui um antes, depois e lado de fora da existência. Para os situados no campo B, infinitude e eternidade são propriedades da Natureza; portanto, não há antes, depois e lado de fora. Para o campo A, o homem está no tempo e entra na eternidade ao morrer. Para o campo B, o homem está na eternidade e sai quando morre. Bem e mal são absolutos, substanciais e não se misturam, para os adeptos do campo A. Por outro lado, os do campo B entendem que são relativos; o que é bem para uns pode ser mal para outros. O campo A depende de fé ativa; o campo B depende de entendimento progressivo. 

    Muitos se reconhecem incapazes de distinguir os dois campos e se declaram céticos; por isto suspendem o juízo (decisão). Acham impossível entender plenamente a essência última das coisas. Para grande parte, os dois campos lhes parecem imbricados e, inseguros, colocam um pé em cada canoa. Poucos conseguem fincar os dois pés no mesmo campo. 

    Os adeptos do campo A se sustentam na esperança de encontrar felicidade após a morte junto ao criador, depois de uma vida ascética, piedosa, virtuosa e repleta de orações. Os adeptos do campo B buscam a felicidade no entendimento progressivo da Natureza, da natureza das coisas, principalmente, da humanidade, e da natureza de si mesmo.

Qual o seu campo? 

* José Daniel Machado é economista de ofício, mas é desses cuja compreensão dos fenômenos da Economia e da vida vai muito além do que podem informar as ordenadas e abcissas do diagrama cartesiano e se ele esbarra, verbi gratia,  com a classificação períódica dos  elementos, não se deixar encabular ante tantas valências e possibilidades em meio às desconcertantes disposições de Mendelejev. Agora ele resolveu passear por veredas dialéticas (de Aristóteles), talvez um pouco por aquelas celestiais campinas de Santo Agostinho. Ora, bolsas! Quem conhece o Daniel sabe que ele pode ir a qualquer lugar e voltar com segurança. (nm)

sexta-feira, 28 de maio de 2021

O salto

O Lélio Fabiano dos Santos resolveu contar histórias. Uma que caiu na rede de O&B o blogueiro ocioso resolveu postar.

 - Posso?

 - Claro que pode, anuiu de pronto o velho amigo.

 Então, o blog, alegremente, compartilha “O salto”, pequeno lavor de ourivesaria do Lélio, que anda meio sumido na bruma ingrata desses mares pandêicos, mas vocês podem ver pela foto que ele  mantem-se firme no curso, sobrepujando as vagas com a galhardia e altivez de sempre, quarentenado e vacinado, longe, longe, a Peste e outras procelas. (nm) 


O sol de fim de outono e do começo do inverno no hemisfério sul deveria ser festejado como nas antigas civilizações, com datas para celebrar e reverenciar os astros da galáxia que se enleavam à multiplicidade de seus deuses. Nosso planeta era mais cósmico e parecia relacionar-se melhor com aquela penca de estrelas que nos são apresentadas desde os milhares de séculos até onde os estudos e a imaginação alcançam e que nos iluminam há tantas e quânticas eras.

                      A linda manhã outonal animou Carlos ao passeio naquela tarde, como vinha se prometendo fazia tempo. Ziguezagueou por algumas ruas do bairro em direção da comprida avenida que integra a zona sul da cidade ao centro, que hospedava os primeiros prédios de escritórios e de variado comércio em andares térreos, estendendo-se por galerias, esquinas e casas resistentes ao desordenado crescimento urbano.

                      Tendo percorrido uns dez quarteirões da artéria e já no coração da cidade, deteve-se ante a vitrine da principal loja de departamentos que abrigava marcas nacionais e estrangeiras de moda masculina e feminina no prédio de nove andares. O centro comercial fazia esquina com a igreja ao meio do quarteirão ajardinado amenizando a paisagem e atraindo transeuntes em busca de paz e perdões.

                     Mal começara a passar as vistas pelas tabuletas dos preços dos artigos masculinos afixadas nas peças, escutou a exclamação feminina de seu nome ali bem próxima. Virando-se defrontou a dona da voz. Os olhos nos olhos de um e de outro foram só um pouco mais rápidos do que suas falas:

                      - Caco?

                      - Isa?

                       As reapresentações cederam logo às relembranças de tempos e amores idos, estes possivelmente nem tanto idos quanto aqueles. Lugares morados e ocupações, casamentos e separações, descendências e emoções, alegrias e decepções. Tudo o que na calçada não dava mais para seguir com as reciprocidades levou-os para dentro, até ao elevador e para o terraço da loja de magazines, onde o restaurante panorâmico serviu de cenário para o reencontro dos amantes de antanho.

           Isabel e Carlos juraram nunca mais se separarem nem deixar a cidade que um dia desunira as alianças prometidas, ali na igreja ajardinada ao lado. Pactuaram juntar-se e juntar tudo. Fechadas as contas da mesa e do passado, dirigiram-se para a sacada do prédio. O sol se preparava para o cair da tarde e na cidade acendiam-se as primeiras luzes.

           Carlos e Isabel aguardaram o anoitecer e começaram a contar estrelas, admirando-as. Deram-se um beijo, as mãos e saltaram na direção delas.

           Como eram lindas. Vênus, Marte, Saturno e Júpiter, Zeus de todos os céus.