terça-feira, 1 de novembro de 2022

A princesa, a vaquinha, os pobres de marrais, marrais

O Natal ainda está longe, mas, vez ou outra, já se pode ouvir “gingobel, gingobel” e decorações temáticas começam a aparecer nas lojas e “shopping centers”.  Difícil saber com certeza, mas a tradição de representar o estábulo de Belém e as figuras que participaram, segundo o Evangelho, do nascimento de Cristo e as cenas que a ele se seguiram, São Francisco quem começou. Teria sido o primeiro a se dar conta do significado das cenas descrita nos Livros: a família humílima, o recém-nascido, a estrela, o anjo, a reverência de pastores, ovelhas... Também dos camelos que, através de extensos areais, chegaram com três potentados do Oriente e suas prendas de ouro, incenso e mirra para honrar a criança. Em tudo, porém, a primazia de pessoas pobres e seus rebanhos parcos.

No Brasil, presépios nas igrejas, nas casas ricas e nas mais humildes chegaram séculos antes das árvores cheias de bolas coloridas do jeito norte-americano de celebrar o Natal. Em nenhum, falta a vaca que se aproxima para aquecer a criança na manjedoura com seu hálito benigno. A vaquinha da Rua Leopoldina, Bairro de Santo Antônio, BH, parece ter saído direto de um presépio para esparzir fluidos benfazejos, como um totem venerando da cidade. Era só um mimo de artistas que, sabe-se lá por que, a fixaram-na ali, há uns quarenta anos e, desde então, ela protege e enfeita a rua com nome da princesa austríaca, imperatriz do Brasil. Dizem que, dela, da princesa, foi o “empurrãozinho” decisivo para que seu marido Pedro, “às margens plácidas do Ipiranga”, lançasse o brado libertador, independência-ou-morte etc. e tal.

Os vizinhos “vestem” a vaquinha com cores de ocasião, que ela incorpora com bonomia e resignação: carnaval, copa do mundo, festas juninas e o que mais. A cara dela é sempre de tranquilidade e gentileza. Agora ela ostenta bandeirinhas de muitas cores, que bem podem corresponder ao momento plural da brasilidade, mas, sem ostentação nem ambição, como se tivesse consciência de sua condição de pobre, pobre “de marrais, marrais, marrais”, como na cantiga de roda, sem por isso se exasperar. É como se subsistissem nela cada palavra do sermão das bem-aventuranças (Mateus 5 – 7), sem perda de poesia nem de substância: benditos os mansos e humildes de coração, benditos os pobres em espírito, porque herdarão a terra (....)

Ego sum pauper, nihil habeo et nihil dabo. Hummm!!! Feito o presépio, um dístico desses seria muito franciscano, mesmo que não tivesse chegado até nós desde a reclusão medieval dos mosteiros. Só uma curiosidade: com a malícia sutil das almas femininas, Eiddy Gorme, voz de anjo, talvez de patativa, replica em versos de Álvaro Carrillo a mesma candura: De mi vida, doy lo bueno. Soy tan pobre, que outra cosa puedo dar?

Versos? De José Marti, o “Maestro” e “Apostol” da independência de Cuba, uns “Versos Sencillos”:

Con los pobres de la tierra

Quiero yo mi suerte echar

El Arroyo de la sierra

Me complace más que el mar.

Agora, porém, é regular a marcha da caravana pelo passo do mais débil, como manda a “sura” do Profeta.

(NM)