O Natal ainda está longe, mas, vez ou outra, já se pode ouvir “gingobel, gingobel” e decorações temáticas começam a aparecer nas lojas e “shopping centers”. Difícil saber com certeza, mas a tradição de representar o estábulo de Belém e as figuras que participaram, segundo o Evangelho, do nascimento de Cristo e as cenas que a ele se seguiram, São Francisco quem começou. Teria sido o primeiro a se dar conta do significado das cenas descrita nos Livros: a família humílima, o recém-nascido, a estrela, o anjo, a reverência de pastores, ovelhas... Também dos camelos que, através de extensos areais, chegaram com três potentados do Oriente e suas prendas de ouro, incenso e mirra para honrar a criança. Em tudo, porém, a primazia de pessoas pobres e seus rebanhos parcos.
No Brasil, presépios nas igrejas, nas casas ricas e nas mais
humildes chegaram séculos antes das árvores cheias de bolas coloridas do jeito
norte-americano de celebrar o Natal. Em nenhum, falta a vaca que se aproxima
para aquecer a criança na manjedoura com seu hálito benigno. A vaquinha da Rua
Leopoldina, Bairro de Santo Antônio, BH, parece ter saído direto de um presépio
para esparzir fluidos benfazejos, como um totem venerando da cidade. Era só um
mimo de artistas que, sabe-se lá por que, a fixaram-na ali, há uns quarenta
anos e, desde então, ela protege e enfeita a rua com nome da princesa austríaca,
imperatriz do Brasil. Dizem que, dela, da princesa, foi o “empurrãozinho”
decisivo para que seu marido Pedro, “às margens plácidas do Ipiranga”, lançasse
o brado libertador, independência-ou-morte etc. e tal.
Os vizinhos “vestem” a vaquinha com cores de ocasião, que
ela incorpora com bonomia e resignação: carnaval, copa do mundo, festas juninas
e o que mais. A cara dela é sempre de tranquilidade e gentileza. Agora ela
ostenta bandeirinhas de muitas cores, que bem podem corresponder ao momento plural
da brasilidade, mas, sem ostentação nem ambição, como se tivesse consciência de
sua condição de pobre, pobre “de marrais,
marrais, marrais”, como na cantiga de roda, sem por isso se exasperar. É
como se subsistissem nela cada palavra do sermão das bem-aventuranças (Mateus 5
– 7), sem perda de poesia nem de substância: benditos os mansos e humildes de coração, benditos os pobres em
espírito, porque herdarão a terra (....)
Ego sum pauper, nihil
habeo et nihil dabo. Hummm!!! Feito o presépio, um dístico desses seria
muito franciscano, mesmo que não tivesse chegado até nós desde a reclusão medieval
dos mosteiros. Só uma curiosidade: com a malícia sutil das almas femininas, Eiddy
Gorme, voz de anjo, talvez de patativa, replica em versos de Álvaro Carrillo a
mesma candura: De mi vida, doy lo bueno.
Soy tan pobre, que outra cosa puedo dar?
Versos? De José Marti, o “Maestro” e “Apostol” da independência
de Cuba, uns “Versos Sencillos”:
Con los pobres de la
tierra
Quiero yo mi suerte
echar
El Arroyo de la sierra
Me complace más que el
mar.
Agora, porém, é regular a marcha da caravana pelo passo do
mais débil, como manda a “sura” do Profeta.
(NM)
Sempre uma boa leitura. Obrigado por nos agraciar ❤️
ResponderExcluirGiovanni, Giovanni:
ExcluirSeja bem vindo, sempre, a este O&B.
Grande Nilseu, seu texto fluído acalenta a alma e esse pobre coração, como o poema de Clarice Lispector.
Excluir👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
ResponderExcluirA vaquinha, a cada ano, é "vestida" por um artista, num dia de Carnaval. Neste ano de 2022, o arquiteto e artista João Diniz quem fez a arte de pintá-la.
ResponderExcluirO comentário é totalmente anônimo, mas no dá o nome do artista que criou a vaquinha da Rua Leopoldina: o arquiteto João Diniz.
ExcluirO comentário é totalmente anônimo, mas dá o nome do artista, no caso o arquiteto Joao Diniz, que a vestiu muito bem vestida com bandeirinhas coloridas.
ExcluirNilseu: texto oportuno. Os pobres salvam o Brasil. Estou fora de casa e lerei mais pelo computador.
ResponderExcluirPois é, os pobres...
ExcluirAcordar e ler esse belo texto é privilégio de poucos. Parabéns!
ResponderExcluirÔ, Mercinha,
ExcluirBom, mesmo, é ter você aqui compartilhando dessa conversa fiada que, ao fim e ao cabo, é o sal da terra.
Que bom te ler novamente. Um abraço
ResponderExcluirEsse é o tipo de comentário que afaga o ego do blogueiro. Apenas, não dá pra saber de quem é.
ExcluirOi, Nilseu, profeta rememorativo de sentidos e pensares! Trabalhei na Leopoldina; passo muito pela vaquinha, que pasta perto da morada de minha irmã... Seu texto nunca fica impune e junto da vaquinha vem com o natal e suas decifrações, com amigo oculto e tudo... Um abraço companheiro! Volte sempre, distribuindo suas preciosas bagatelas
ResponderExcluirCaríssimo Lélio:
ExcluirPara mim, a gratificante demais compartilhar bagatelas com alguém feito você, com quem compartilho uma amizade fraterna que o tempo vai passando, passando, mas gente vai levando incólume.
É isso, Nilseu, amizade boa é de porteira aberta desde muito tempo, passa boi, passa boiada, passam vacas, vaquinhas e vaquejadas...
ExcluirGracias Nilseu. Bonito texto, y muy oportuno ahora que el pueblo brasileño, con sus millones de pobres, ha salvado al Brasil. No conozco la palabra "marrais" ni la he encontrado en el diccionario, pero siendo una canción infantil, seguramente será deformación de otra palabra, quizás francesa. De todas formas, queda claro que hablas de los pobres "muy pobres", pobres "de verdad".
ResponderExcluirSiempre me encanta leer y recordar a Martí, y no me puedo resistir a corregir una pequeña errata en tu cita: el segundo verso debe decir "Quiero yo mi suerte echar".
Un gran abrazo, y enhorabuena otra vez por haber derrotado al innombrable.
Querida Maria Luisa:
ExcluirSua presença sempre enriquece O&B, por sua gentileza, generosidade e sabedoria. Sua percepção quanto à expressão "marrais", (marré) é mesmo de matriz totalmente francesa. No Século XIX o Brasil importava francesismos de toda ordem, inclusive canções infantis. Na mesma cantiga de roda a que aludi, à menina que canta "Eu sou pobre de marrais, marrais, marrais", outra menina, que baila com ela, faz o seguinte contraponto: "Eu sou rica, rica, rica, de "marrais dessus". Obrigado por me alertar para a citação descuidada do Apóstol. Vou corrigir, claro.
Obrigada, caro amigo.
ResponderExcluirDelicioso texto.
Abraço
Mercedes Recoder
Ei, Mercedes:
ResponderExcluirQue bom ter você aqui em O&B. Grande abraço
Como sempre, supimpa...
ResponderExcluirPantera
Obrigado pelo comentário, Panther. Na segunda a gente se vê no Bar do João. Vai ser ótimo rever a rapaziada.
ExcluirA vaquinha da Leopoldina, querida pelos belo-horizontinos, levou o pensamento do escritor ao presépio e à cantiga de roda tão cantada no meu tempo de menina e quase esquecida atualmente. Foi um entrelaçamento terno e me fez viajar no tempo. Abraço da sempre amiga!
ResponderExcluirEi, Marília, querida:
ResponderExcluirObrigado por compartilhar da minha pequena aventura mnemônica e de percorrer comigo uma seqüência de associação de ideias sobre a qual não tive consciência nem controle. Aproveito para pedir um esclarecimento à sua douta experiência nesses temas sobre a origem da cantiga em questão: é "marrais, marrais", como registrei, ou "marré, marré", como a gente pode encontrar, por exemplo, na letra do grupo Mastruz com Banana? ss
Grande abraço
Que bom, Nilseu, ter o privilégio de voltar a ler os seus textos em
ResponderExcluirOciosidades & Bagatelas. Aplaudi com entusiasmo o desabafo "De aleivosias, vilipêndios e escárnios" e me emocionei com a sóbria ternura da narrativa sobre "O catador de papel e seus cachorros".
Continue, amigo, a nos dar o prazer dos seus escritos.
Abraços, Sergio
Ô, Sérgio,
ResponderExcluirObrigado por sua mensagem e por interagir de modo tão generoso com o espírito deste O&B.
Beleza grande amigo Nilseus. Tamos juntos.
ResponderExcluirMarcus Vinícius.
Valeu, amigo. Seja bem vindo.
ResponderExcluirNilseu:
ResponderExcluirDei uma sobrevoada no seu Blog. Muito chique.
Parabéns! Sucesso. Com meu abraço especial
Ayres
Ô, Ayres:
ResponderExcluirObrigado pelo sobrevoo. Volte sempre. Grande abraço.
Grande Nilseu, seu texto fluído acalenta a alma e esse pobre coração, como o poema de Clarice Lispector.
ResponderExcluirÉ claro que gostei do comentário. Só não deu pra saber quem mandou.
ResponderExcluirNilseu, adorei o texto!
ResponderExcluirBem vinda, Magda. Grande abraço.
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