quinta-feira, 9 de março de 2023

Panta Rei, o rio de Heráclito e os nossos rios

Noite de muita chuva. No Sudoeste do mundo, manhã cinzenta, céu indeciso: mostrar uma nesga de sol, desandar em chuvarada... Contemplar o alto despojado! Monotonia sem fim. Onde, as cores do dia?  Algum mistério há, talvez muitos, desde a sombra ausente de um pé de embiruçu despido da folhagem exuberante e das flores esplêndidas. A tempestade veio cruel no começo da estação. Sobrou uma garatuja de galhos secos projetada contra o firmamento plúmbeo, traços pretos em caótico desalinho, como runas de misterioso significado contra a abóbada embaçada.

Alarido alegre, de risco em risco, silhuetas aladas maritaqueiam. Hieróglifos em movimento, vivos, à espera de algum champolion que os decifre, quem sabe uma cigana experimentada para extrair deles o que nos reserva o futuro. Não sabeis? Os textos fluidos revelam ritmos que a roda do Tempo caprichosamente esconde, escancaram correspondências que o Universo às vezes só mostra aos profetas e a um ou outro poeta: Panta Rei, o rio de Heráclito, o Rio de São Francisco (corre de noite e de dia), o córrego da nossa infância que, de vez em quando, ainda rumoreja no coração. Tudo flui.

Fluem a lua, as estrelas, a Noite não cessa nunca. O Cosmo flui, desabrido, em todas as direções, e será deste modo até esvair-se na grande escuridão dos tempos: inscrições nas tumbas dos faraós, Ramsés; oráculos devastadores, Omar Khayyam, Baudelaire... Fluem as sombras escuras dos galhos de uma árvore morta. Irrequietos psitacídeos agarram seu fragmento ínfimo de eternidade e, por um momento, incorporam o Estro universal e convertem-se num pequeno poema elegíaco por um mundo que, para sempre, está sendo deixado para trás ou, apenas, indo embora depressa.

(NM)