“Cada tauba que
caía //
doía no coração
(...)”
(Saudosa Maloca - Adoniram Barbosa)
Bastaram
dois dias para que um enorme gafanhoto mecânico dotado de muitas manhas
hidráu-licas, colossais dentes de metal, pusesse abaixo todo o conjunto de
edificações que, heterogêneo, se sustentou, desde antes de adquirir os
privilegiados, e especulados, foros do Bairro da Savassi, por décadas e
décadas, com muita dignidade, na esquina de Fernandes Tourinho com Rua da Bahia.
Quem pôde observar aquele estranho inseto desincumbindo-se da tarefa de demolir
tudo que se erguia na área de 1.200 metros quadrados, sei lá, também
pôde achar que, de fato, os dois dias foram o tempo que o monstro gastou para
devorar telhados, alicerces, tubulações, telhas, assoalhos, ferragens, rede elétrica, de águas e toda a alvenaria do
grande sobrado mais ou menos arruinado, mas firme em suas fundações e paredes,
e das casas e lojas ao redor, incluindo uma de construção mais ou menos
recente, com um lindo pé de pitanga no terreiro, muitas rolinhas e bem-te-vis, bicos-de-lacre,
algum sabiá.
Era
um conjunto de edificações vivo, pulsante. Muitas pessoas nasceram,
trabalharam, viveram nele, abrigados, protegidos como pássaros, abelhas,
borboletas, num grande pé de jatobá, coisas pequenas, insignificantes, que o
madeireiro jamais considera ao derrubar uma árvore. É assim de simples, embora
no espaço urbano a construtora que elevará no local mais uma torre de concreto tenha
precisado de uns quantos meses, algum dinheiro e, claro, de advogados, até que
todos se conformassem em deixar o que, para qualquer empresa, era um espaço
para construir, para eles o lar, doce lar, o local de trabalho, de ganhar o pão
da vida.
Não
tem jeito. A especulação imobiliária é poderosa e voraz. Paulatinamente foram
desalojados o barbeiro, o relojoeiro, a lavanderia, o salão de cabeleireiro e
manicure, a pequena oficina do eletricista, a do bombeiro; o pequeno
restaurante, à hora do almoço, exalava olores e odores da cozinha mineira,
frango com quiabo, vaca atolada, rabada com agrião e angu; costelinhas de por
porco bem fritinhas, sempre; no galpão com teto de estrutura metálica, um
“sacolão” oferecia frutas e hortaliças frescas à vizinhança; a colchoaria
funcionou no local desde quando a Rua da Bahia nem chegava à altura do Minas
Tênis Clube que, aliás, nem existia, além da loja e oficina do estofador... O artesão das palhinhas preferia trabalhar na
calçada, à porta de entrada do sobrado, tecendo assentos e espaldares de
cadeiras e canapés.
O
“mercado” é assim mesmo. Pessoas não contam, não entram em sua contabilidade
nem fazem parte de sua lógica. Pode-se argumentar que o novo espigão será
ocupado por outras pessoas, centenas de pessoas. É aí que está o busilis. Com
tanta gente, tudo fica impessoal, não haverá mais qualquer termo de
convivência, aquilo de você por o pé na Rua da Bahia e já ir dizendo “bom dia
Fred”, “olá, Margarida”, “ô, Moreira, meu relógio já está andando?” Nada, nada.
Sem nome nem alma, a multidão que vem traz tédio, muito, e muita solidão.
Depois
de tudo derrubado, o material da demolição foi posto em caminhões e levado não
se sabe pra onde, tudo em não mais do que dois dias. Nesse ínterim, foi
construído o tapume, estacas e placas de aglomerado de madeira, uma base de
tijolos, para proteger a obra prestes a começar. Do lado da Rua Fernandes
Tourinho um grafiteiro anônimo registrou com letras grandes no tapume novinho a
sua bronca: “BH, cidade sem memória”.
Não
dá pra saber se foi por isso que, rapidinho, os donos do tapume fizeram-no
pintar de azul, um azul-petróleo até bonito, contraponto pálido, porém, ao
esplendor sem nuvens dessas tardes de julho de luminosidade incomparável. No ar
fresco e transparente, o azul se expande desconcertante, profundo, em todas as
direções. O grafite agora é um palimpsesto, enquanto, pretensioso, o tapume alça-se
com suas tintas para o céu alto. É muita demasia, contudo, achar que possa realizar-se
“nel blu dipinto di blu”, como na canção de Modugno. Calma, meus amigos. Isso é
só metagoge ociosa e fora de propósito, a primeira. Outra, também ociosa, increpa
com afeto a cidade do coração:
– BH,
BH, que ingrata, pensares que a gente nem te liga! Liga sim. Liga demais.
(NM)
Uma cidade feita para automóveis e condomínios. Esqueceram do fator "gente", no seu sentido mais amplo.
ResponderExcluirOlá, Nilseu.
ResponderExcluirLi e me emocionei com sua diatribe sobre o casario de Lourdes, demolido pela ganância dos modernos capitalistas. E, para reforçar sua promessa a BH de que a gente liga demais, transcrevo o fim da crônica de ontem de Arnaldo Bloch, lamentando, em O Globo, que o Rio esteja ameaçado de perder sua identidade, mas sem perder a esperança:
"É isto o que o Rio está se tornando: uma cidade-padrão. Um colosso chato e besta. Ordem confunde-se com uniformização, e uniformização, como todo mundo sabe, é o primeiro passo para a exclusão. A cidade partida continua partida. A partida mal começou.Se o Rio e suas autoridades não baixarem a bola, vai chover a chuva furiosa dos céus na etapa final, vai vazar a lama do Posto 5 que continua fedendo, e o consolo vai ser uma leitura pública do `Ai de Ti Copacabana´ nas exéquias. Mas sobreviveremos."
É isso, com um abraço e a expectativa de que possamos, como você lembra na crônica do Zé Ramos, nos reencontrarmos para um papo de amigos,
LFPerez
Grande Nilseu Martins, reconheci no seu texto alguns personagens da Rua da Bahia e senti falta do Vidinho, homem que fazia e consertava bolas de futebol, e que até bem pouco tempo mantinha sua loja de bolas e apetrechos esportivos no Bairro São Pedro, na Rua Evangelista, com a mesma eficiência e qualidade de serviço, e de uma conversa menos demorada. E da turma do Tip-Top anotei nomes de jornalistas como Jáder Oliveira, Plínio Barreto e Cyro Siqueira, e lembrança daquela turma enorme sempre presente nas manhãs de domingo, e de outras das quais não participei mas sempre tinha notícias. Parabéns por retratar bem duas lembranças da cidade que vai acabando para todos nós. Gracias,
ResponderExcluirRogério Perez
Nilseu,
ResponderExcluirConferi. Muito boa leitura e justa indignação.
Virgílio (Almeida)
Nilseu,
ResponderExcluirMesmo estando longe senti uma pontada no coração. E ainda ontem uma amiga e eu falávamos de "objetos e lugares de memória"...
Sônia
Aos meus amigos e familiares, peço que leiam. Ao meu amigo escritor, agradeço a homenagem e consideração. Grande abraço a todos.
ResponderExcluirFred
Uma vez eu li sobre a importância de se preservar a memória física de uma cidade para a saúde mental de seus moradores. Acho que foi quando da destruição do Cine Metrópole. É triste ver como as "otoridades" não ligam o mínimo para a nossa querida Belô!
ResponderExcluirMagda
Caro Nilseu,
ResponderExcluirHá cerca de 50 anos que perambulo por aqui, tenho visto uma sucessão de destruição em nosso bairro. Sua belíssima crônica me deixou muito emocionada, pelas lembranças que tenho da nossa esquina!
Abraço
Nícia,