“Saímos
de Doko, na República Democrática do Congo, num monomotor de doze lugares com
destino a Bunia. A parada nesta cidade é para um segundo controle de passaporte
e do vôo (com algo relacionado a espaço aéreo). A pista de pouso em Doko é uma
pequena faixa de terra que agora foi aumentada em seu comprimento para que haja
mais tempo para a freada dos aviões.
Ao
subir na balança (devido ao tamanho da aeronave é preciso pesar mala e
passageiro!) fui logo comentando que eu havia engordado muito ali no Congo,
para gargalhada geral. É que no meu francês enferrujado troquei a palavra
"grossir" por "grossesse" (ou algo assim) ou seja, eu havia
dito que tinha me engravidado ao invés de ter engordado! Foi um senhor (belga
ou francês) que veio em meu socorro com toda a sua franqueza. E foi este mesmo
homem que me ajudou uma segunda vez com a tradução quando, já em Bunia, eu quis
saber sobre uma aglomeração de pessoas, entre elas muitas mulheres, padres e
alguns guardas (e quase todos usando uma camiseta cuja estampa era um rosto de
mulher) no aeroporto asfaltado da cidade, onde também havia vários helicópteros
das Nações Unidas.
O
segurança já havia me dito que eles aguardavam um cadáver que estava para
chegar. Mas foi o senhor franco-belga (?) que se ofereceu para ir colher mais
informações para a minha mente inquieta. "Foi a mulher do arcebispo que
faleceu. Por isso há vários padres aqui", disse ele. Pouco depois chegou
uma caminhonete repleta de mulheres batendo palmas e cantando em suas roupas
muito coloridas. Mas era o amarelo que predominava.
Não
pude ficar para ver o que se sucederia porque já estava na hora de embarcar. E,
de volta no monomotor, sobrevoamos o lago Albert até o lago Victoria, em
Entebbe (Uganda) num vôo de uma hora. Cruzando-se o lago Albert (também chamado
de Mobutu Sese Seko, o ditador congolês) que pertence aos dois países, se cruza
também uma fronteira.
De
Entebbe iríamos direto para Kampala, a capital, mas uma de minhas malas só
viria no vôo seguinte e, assim tivemos que fazer uso da pousada da companhia em
Entebbe até que a mala chegasse. Cometi o erro de colocar a bagagem de mão
dentro da mala para ter de carregar apenas um volume, e isso causou excesso de
peso. Só fomos saber disso quando já tínhamos aterrissado! Aproveitamos então
para descansar e comer um "ugali" (angu branco) com molho de tomate e
pimentão.
O
fuso horário na Uganda é de uma hora na frente do Congo (RDC) e seis horas na
frente do Brasil. Já era tarde quando chegamos a Kampala depois de uma viagem
praticamente em linha reta numa estrada boa, mas de tráfego bastante intenso.
Quando
chegamos ao hotel tivemos a grata surpresa de que nos seria dada uma suíte ao invés
do "standard" reservado, pelo fato de o hotel estar lotado devido a
uma visita dos presidentes da Tanzânia e de Rwanda, com suas comitivas, àquele
país. Mas porque haveria uma suíte disponível para nós? Não compreendemos, mas
aceitamos de bom grado aquilo que faria a celebração de nossos vinte e cinco
anos de relacionamento bem mais prazerosa!
Já
no bar do hotel, Benson ao piano nos homenageava. Depois veio dividir um drink
e uma prosa conosco assentados ao scotch-bar. Na tevê ligada sem o som, as
imagens me diziam que Nelson Mandela não iria esperar o nosso retorno à África
do Sul. Senti um aperto no coração. Em Kampala visitamos o Museu Nacional, que
tem uma boa gama de instrumentos musicais, depois o local onde os reis da etnia
buganda são enterrados (Kasubi Tombs) e, finalmente, o palácio - residência
real de Kabaka, rei buganda. Buganda é um grupo minoritário, semi-independente,
com população de uns 2 milhões de pessoas. O rei buganda é uma figura símbolo
na Uganda porém com poderes limitados.
Dentro
da região do palácio (que não está em funcionamento), mas afastadas do prédio,
estão as câmaras de tortura usadas por Idi Amim durante seu reino de terror.
Causaram-me arrepios e indignação. Mensagens de desespero escritas com fezes ou
sangue nas paredes são testemunhos das atrocidades da época. Mais de 300 mil pessoas
morreram durante a ditadura. O governo atual está no poder há quase trinta
anos. Conversei com muitas pessoas e todas querem mudanças, mas as coisas não
são tão fáceis assim. A história do país é carregada, pesada, muito
embora o dia a dia das pessoas não o denote.
No
dia 27 de junho, Sam (cujo nome africano é Kazibwe) - nosso guia e motorista -
veio nos apanhar no hotel para uma longa viagem que atravessaria inclusive a
linha do equador. Na estrada, Sam nos distraía com conversas e palavras em Luganda:
matooke = banana (na estrada havia bananeiras e bananas a perderem de vista e
que, segundo Sam, foram importadas do Brasil primeiro, pela Ásia e, depois pela
África); mwengue/muganga = cerveja local feita de banana; bulamo = vida e
asssim por diante. As cobras são animais satânicos e o "Crested
Crane" é o pássaro nacional.
Grandes
mamíferos, os primatas de Bwindi
A
infinidade de motocicletas, fabricadas e importadas da Índia, são chamadas de
"Boda Boda" e carregam vários passageiros, quando não uma família
inteira. Em uma delas cheguei a ver um neném dentro da jaqueta (na parte das
costas) do motorista. A necessidade leva as pessoas às mais diversas formas de
criatividade. Gastamos umas sete horas e meia de viagem de Kampala até o Parque
Nacional Rainha Elizabeth (Sam e eu fizemos um pouco de "poko poko"
ou seja, fofoca: porque é que esses "benditos" governantes não trocam
o nome deste parque e de outros lugares que cheiram a colonialismo? Certos
governantes não gostam de escutar essas coisas.)
Ainda
na estrada pudemos avistar de um ponto mais alto o grande vale Rift de uma
beleza sem igual, e por onde passearíamos em ocasião seguinte. Também
passearíamos de barco pelo canal de Kazinga, onde avistaríamos búfalos,
elefantes e hipopótamos em seu habitat natural. Embrafustaríamos mata adentro
na reserva de Kyambura numa caminhada de três horas, na tentativa de vermos
alguns chimpanzés. No meio da savana, que só se vê em filmes, avistaríamos os
famosos leões que sobem em árvores.
Tudo
isso era uma prévia para a finalidade principal da viagem: ver os gorilas das
montanhas! Mas estes não vivem no "parque da rainha" e sim na
impenetrável floresta de Bwindi, o que fez com que levássemos mais meio dia de
estrada. Bwindi, na verdade significa "impenetrável", "escuridão".
E o parque onde vivem - patrimônio da Unesco - chama-se "Bwindi
Impenetrable Forest National Park", situado na parte oeste da Uganda. O
parque possui metade da população mundial de gorilas, ou seja, por volta de
350, além de outros animais, entre eles chimpanzés. A Uganda tem a maior
concentração de primatas no continente.
Nossa
pousada, de frente para a impenetrável floresta, tem doze quartos e foi quase
toda construída utilizando-se matéria prima local como cipó, sisal e pedra
ardósia cor de rosa. Nos anos 90 os pigmeus Batwa foram retirados da floresta e
transferidos para áreas nas cercanias da comunidade de Bwindi. Tivemos
oportunidade de visitar uma das famílias de pigmeus, que atualmente precisam do
turismo para a sobrevivência. E em 1994, a floresta foi declarada patrimônio da
humanidade.
Da
pousada eu ouvia um tocar de tambores constante, mas só no dia seguinte, quando
fui dar um passeio pela comunidade com Sam, é que descobri que os tambores eram
tocados por uns meninos que fazem parte do grupo de órfãos (257) da região. As
crianças dançaram para mim, espectadora única, enquanto uma rápida tempestade
desceu dos céus. Foi a conta de Sam arranjar uma sombrinha e a chuva passar
como se nos ignorasse.
O
dia 30, um domingo, foi realmente o grande dia. Da pousada Sam nos levou para a
entrada do parque Bwindi onde os funcionários (guias e ajudantes) nos ensinam
sobre os gorilas e a floresta e depois nos dividem em grupos. São três
grupos de oito pessoas por dia, com apenas uma hora para ver os gorilas a
partir do momento em que os encontramos. Alguns guias com GPS os localizam
anteriormente à saída dos grupos. Podemos caminhar quarenta minutos como foi o
caso do nosso grupo, ou levar um dia inteiro, como no caso de um casal de
alemães, para chegar aos primatas. Cada grupo é selecionado para visitar uma
das três famílias de gorilas da região. Confesso que foi uma experiência muito
emocionante ficar quase que cara a cara com aqueles animais que dividem conosco
(humanos) 95 ou 98% dos seus gens. E como eles são dóceis! Há tanto o que
aprender com a natureza!
Bonito, sim,
mas tudo longe demais
Já
a viagem de volta a Entebbe, sem passar por Kampala, durou doze horas e meia de
automóvel, sendo que Sam parou para descansarmos e almoçarmos numa cidade chamada
Mbarara. Pouco antes dessa cidade há uma central de um campo de refugiados.
Aqui eles são recebidos, vindos de outros países fronteiriços, e depois
distribuídos para outros campos, de acordo com suas nacionalidades. Passamos
também por uma fábrica de remédios que usa as ervas locais. [Quando visitei os
pigmeus adquiri um livreto sobre as plantas medicinais que eles usavam (creio
que não usam mais porque foram retirados da floresta) e que foram catalogadas
por alguns estudiosos.]
Minha
imaginação se perdeu nessas tantas horas de viagem, em meio a observações
atentas, com olhos bem abertos, de tudo aquilo que passava caminho afora. Desde
gigantescos e pontudos chifres de bois ou as intermináveis plantações de
bananas até os cenários de esculpidas belezas naturais coloridas, às vezes,
pela densa poeira levantada nas estradas.
Um
sol vermelho e fulgurante sobre as águas do canal de Kazinga ainda estava preso
na memória, qual um amanhecer que não
findasse. Nas montanhas e na alma restava o frescor vivo da floresta
impenetrável. E a imagem daqueles robustos e dóceis primatas se assentava de
maneira delicada no pensamento que apenas recordava. Cinesia e estagnação
perfuravam vivamente minhas retinas ávidas e maravilhadas, enquanto eu
pensava em como a Mãe África é realmente abençoada. Seja através das pequenas
gentilezas do gerente Mordecai ou do canto sincero dos órfãos de Bwindi. Terra
e gente confundem-se, se mesclam, e me inundam de uma sensibilidade tão
profunda de quase atropelar o coração. No ar há algo de misericordioso. E
criancinhas acenam, sorriem e correm paralelas às rodas do carro que pulsa
lentamente no curso árduo e sinuoso da estrada.
Era
já início de noite quando atingimos a margem do lago Victoria para o
atravessarmos em um ferryboat do governo. Na outra margem estava Entebbe.
Porém, a poucos metros do ferryboat, nosso carro pede arreglo. Um ajuste de
contas justo para uma viagem longa e penosa. Sam fica desolado por não
conseguir amenizar o cansaço do automóvel. Nós apaziguamos os ânimos dele,
sugerindo pegar um dos barcos de madeira motorizados disponíveis também para o
transporte até a outra margem. Sam deixa de sorrir. O incidente esvaiu-lhe as
forças e a alegria.
Tiramos
malas e mochilas do carro e as carregamos até o barco. Colocamos umas sujas e
surradas jaquetas salva-vidas e, em poucos minutos, atravessamos esta parte
estreita do lago. O carro, empurrado por uma dúzia de mãos, fica lá num canto
aguardando a solução e o retorno de Sam. Ainda transtornado, Sam negocia um
carro parado na margem de Entebbe para nos levar até a pousada. Carro brilhante
de polido em meio a todo tipo de coisas e pessoas a serem desembarcadas ou
embarcadas no ferryboat: bananas, cabritos, sacolas cheias, crianças...
Tão
logo o carro parte, observo que o ponteiro da gasolina está na reserva e a luz
está acesa no painel. Comento minha observação com Bruce, que apenas esboça um
sorriso. E assim esperamos que o automóvel nos leve até a pousada para um
merecido descanso. Essas coisas acontecem, dizemos um ao outro. E recostamos a
cabeça no encosto do carro até que, finalmente chegamos à pousada. Já é noite.
Mas estamos felizes, satisfeitos. Com um grande aperto de mão nós nos
despedimos de nosso guia e companheiro de jornada. Adeus, Mr. Kazibwe. Até uma
próxima volta, com certeza.
Abraços
saudosos,
Sônia”
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