Voltar a Santa Tereza é voltar a
um ou outro bar. Há quem busque a Parada do Cardoso, na Rua Dores do Indaiá, no
coração do Baixo Santê, ou o Bar do Orlando, bar de pescador, frequentado por
vendedores, caixeiros, bancários, mas principalmente por aficionados da pesca e
gente chegada a uma conversa fiada. O estabelecimento, que tem um procedimento
secreto para colorir os ovos que serve aos fregueses e que, talvez, seja o
único bar de Minas Gerais que também vende artigos de armarinho, é um tremendo
mentideiro.
Se achas, porém, que é tempo de
ir peregrino a Santê, a Caaba pode estar no Bar Temático, lá embaixo, perto do
desativado mercado municipal. Umas mesas dentro, outras no passeio, o mesmo
serviço, ótimo, garçons solícitos, mas do jeito antigo, sem frescura, sa´comé:
cachaça boa, boa cerveja, costelinha de porco bem fritinha, torresmo de
barriga, carne de sol com mandioca... Bom demais.
E uma peregrinação dessas, se for
bem articulada, por transformar-se num conclave para grandes e irrelevantes
deliberações, conforme soem ser os grandes conclaves, firmes na defesa de seus
pontos de vista os cardeais Luiz Fernando e Rogério Perez, Wanderley Panther de
Lima, Danilo Andrade, Ivan Drummond. Pontificam mais, pelo afeto e pelas presenças
bonitas, Marina, Cristina, Vera...
Viaduto
Antes de um conclave desses, o
blogueiro apresentou ao Panther, que não precisa ir a Santê, pelo simples fato
de que ele é de lá, vive lá e, na medida do possível nunca sai de lá, uma
questão crucial, de tão irrelevante. – Ô cara. Como é isso do viaduto que liga o
Centro à Floresta ser conhecido e reconhecido como Viaduto de Santa Tereza?
– Simples, meu chapa. A linha do
bonde, quando havia bonde, vinha do Centro e, passando pelo viaduto, alcançava
o Bairro da Floresta, que atravessava, é óbvio, antes de entrar em Santa Teresa,
onde continuava até o final da Rua Mármore. Então o viaduto é mesmo de Santa
Tereza, até porque, o outro, o que cruza o ribeirão Arrudas um pouco mais a
montante, é que é, por excelência, o “Viaduto da Floresta”.
A foto é dos anos 30, quando o Viaduto de Santa Teresa estava novinho e a harmoniosa simetria de seus arcos encantava mais na paisagem urbana de BH. Hoje, poucos podem associá-los ao jovem poeta Carlos Drummond de Andrade e à madrugada insólita em que ele caminhou sobre o da direita, caminhou de cabo a rabo, subindo passo a passo antes de descer, também passo a passo, do outro lado. Teria parado por um momento ao chegar ao ápice, estendendo os braços para o céu. É de se supor que, então, forças telúricas de Minas, poderosas, soltaram a corda misteriosa que mantinham tesa. As livradas tensões dispararam o poeta, flecha flamejante e viva, na direção das estrelas.
Todos os bares
Odilon, tão paranaense quanto o poeta, mandou para O&B
uma pequena joia de Paulo Leminski:
“pariso, novaiorquizo, moscoviteio
sem sair do bar
só não levanto e vou embora
porque há lugares que eu nem chego a Madagascar”
Daí ocorrer voltar aos bares, de
Santa Teresa ou ao bar universal, que a Poesia e o cancioneiro abre para nós. Pelas
notas misteriosas de “As time goes by” chega-se ao “Rick`s Café Américain”, na
Casablanca dos tempos da Ocupação. Tomar uma tacinha de champanha, ouvir o
Tango Delle Rose e ainda cantar com fervor a “Marsellaise”! De repente, vejam
quem acaba de chegar: Ilsa Lund (Ingrid Bergman). Como ela está bonita!
Deste nosso lado do Atlântico, em
referências explícitas ou em meras sugestões, o bar se distancia do âmbito
alegre, quieto às vezes, às vezes ruidoso ou mesmo barulhento demais, mas
sempre aberto à exposição de teses improváveis, a discussões sempre
inconclusivas sobre futebol ou filosofia, para o qual afluem pessoas empenhadas
em conversar fiado, rir, contar novidades, histórias, para espairecerem, enfim.
Homens, e mulheres, carregam angústia, solidão, desesperança, saudades, o
escambau. De vez em quando algum sentimento desses pode aflorar numa mesa de
bar. Bar é bom, alegra o coração, mas, pra compaixão, misericórdia, não é lugar. A percepção dos
outros nunca corresponde à do sujeito que, por incontinência etílica, deixe
vazar sua tristeza de bêbado, por mais única e exclusiva que lhe pareça. Quanto
mais a situação se aproxima do trágico, mais ridícula, o que é realmente
patético. Porém, ninguém liga e, ao fim e ao cabo nos bares da vida a vida
continua.
É só a preferência dos poetas do
cancioneiro que explica o bar impregnado de patético de tantas canções. Ari
Barroso, por exemplo, em seu samba-bolero “Risque” (“meu nome do seu caderno”) entra
no clima, mas trata de atenuá-lo: “Mas, se algum dia, talvez, a saudade
apertar, // não se perturbe, afogue a saudade nos copos de um bar.” No tango de
Herivelto a situação se desenfreia: “...deste bar alguém gritava com ironia, //
entra mano, que o fulano vai pagar...”
Enquanto isso, na “cantina” de
Lila Downs alguém implora à “teibolera”: “Cantame Tacha uma rancherita // porque
el recuerdo me va a matar // cantame Tacha, de esas bonitas, // de esas que a
un hombre // lo hacen llorar...”
“Entre copa y copa se acaba mi
vida, // llorando borracho su pérfido amor...” Aqui, o ressentimento do
protagonista de uma canção de Felipe Valdés Leal também remete ao clima da
“cantina” mexicana e ao patético universal.
A manchete que encerra a “Ronda”
de Vanzolini é de incomparável radicalismo: “E nesse dia, então, vai dar na
primeira edição // “Cena de sangue num bar // da Avenida São João”.
Em tocante paragoge, o grande
Enrique Santos Discepolo se dirige ao “cafetin”, não como a um estabelecimento
que sirva bebidas e “otras coistas”, mas
entidade sensível e plena de espírito: “Como olvidarte en esta queja, //
cafetin de Buenos Aires, si sos lo único en La vida // que se pareció a mi
vieja...” Quando era mais jovem, em outra composição, ofereceu o porre como
alternativa ao suicídio: “Mirad, si no és pa suicidarse, // que por este
cachivache, // sea lo que soy! // Esta noche me emboracho bien, // me mamo bien
mamao // pa no pensar...”
“E às pessoas que eu detesto //
diga sempre que eu não presto, // que meu lar é um botequim...” O Noel de
“Último desejo”, que tangencia o patético, nem parece o mesmo daquela “Conversa
de botequim”, em que remete à alegre descontração de um bar de verdade, estendendo-se
em demandas, algumas bem esdrúxulas, ao garçom que, sem mais, toma de
contraponto e ainda o esculhamba: “Se você ficar limpando a mesa // eu me
levanto e não pago a despesa...”
A filha de um blogueiro ocioso,
que, por esses dias de final de inverno por lá, andava, um tanto entediada, na
friagem cinzenta e plácida de ruas da Jutlândia, em mensagem eletrônica queixava-se
da pasmaceira do lugar. O quê dizer? Meu amigo Gregório Cisneros já advertira
com autoridade: “Hay mas bares em la Calle Atocha de Madrid que en todo el
reino de Dinamarca.”
Olha lá que Santê, nesse quesito,
ganha fácil da Rua Atocha.
(NM)