sábado, 26 de abril de 2014

Noite quase barroca

"!!!Oh bella Galatea,
mas süave que los claveles que tronchó la Aurora; (...)”

Don Luis de Góngora  (Canto de Polifemo)



...quanta lua, meu amor, enluarando suas varandas; perfumando a noite clara, quanto jasmim! E, no entanto, pesa-me o recolhimento da murta, branca ausência em seu jardim florido; no escuro verdor da folhagem espessa, ainda guarda brando manacá as essências misteriosas que exalam o branco e o violeta quando, de mansinho, vem o rocio beijar-lhe as pétalas, o que sempre deixa você com excelente disposição. Branda Lua afaga a branca açucena, a açucena uns olhos brandos, de ametista muito escura.

Mal se percebe, tão quietas, o murmúrio das estrelas, a noite esplende no silêncio cavo do nosso Planeta, nas sombras, farfalham asas, mariposas, invejosas de impudicos pirilampos a alardear núpcias cintilando graciosos arabescos em coruscante voejar rente à grama úmida.

Quanta lua, meu amor, enluarando suas varandas, a alta mansão, altas janelas, os beirais altos...  Em adormecidos ninhos, o crepuscular azul das plumas, um piripipi sutil, quase-gorjeio, andorinhas, ligeiras na hora de ir embora, esperando a Aurora para a celebração de mais um dia.

– Pra quê tanto gerúndio, tanto hipérbato, sinédoques, aliterações, essas hipérboles todas? Até quiasmos! Anáforas? E quanto afã de cores vivas, adjetivos demais! Tudo bem, amor, mas chega de palavras. (NM)


sexta-feira, 4 de abril de 2014

Santa Tereza, tanto bar, o viaduto...

Voltar a Santa Tereza é voltar a um ou outro bar. Há quem busque a Parada do Cardoso, na Rua Dores do Indaiá, no coração do Baixo Santê, ou o Bar do Orlando, bar de pescador, frequentado por vendedores, caixeiros, bancários, mas principalmente por aficionados da pesca e gente chegada a uma conversa fiada. O estabelecimento, que tem um procedimento secreto para colorir os ovos que serve aos fregueses e que, talvez, seja o único bar de Minas Gerais que também vende artigos de armarinho, é um tremendo mentideiro.

Se achas, porém, que é tempo de ir peregrino a Santê, a Caaba pode estar no Bar Temático, lá embaixo, perto do desativado mercado municipal. Umas mesas dentro, outras no passeio, o mesmo serviço, ótimo, garçons solícitos, mas do jeito antigo, sem frescura, sa´comé: cachaça boa, boa cerveja, costelinha de porco bem fritinha, torresmo de barriga, carne de sol com mandioca... Bom demais.

E uma peregrinação dessas, se for bem articulada, por transformar-se num conclave para grandes e irrelevantes deliberações, conforme soem ser os grandes conclaves, firmes na defesa de seus pontos de vista os cardeais Luiz Fernando e Rogério Perez, Wanderley Panther de Lima, Danilo Andrade, Ivan Drummond. Pontificam mais, pelo afeto e pelas presenças bonitas, Marina, Cristina, Vera...

Viaduto

Antes de um conclave desses, o blogueiro apresentou ao Panther, que não precisa ir a Santê, pelo simples fato de que ele é de lá, vive lá e, na medida do possível nunca sai de lá, uma questão crucial, de tão irrelevante. – Ô cara. Como é isso do viaduto que liga o Centro à Floresta ser conhecido e reconhecido como Viaduto de Santa Tereza?

– Simples, meu chapa. A linha do bonde, quando havia bonde, vinha do Centro e, passando pelo viaduto, alcançava o Bairro da Floresta, que atravessava, é óbvio, antes de entrar em Santa Teresa, onde continuava até o final da Rua Mármore. Então o viaduto é mesmo de Santa Tereza, até porque, o outro, o que cruza o ribeirão Arrudas um pouco mais a montante, é que é, por excelência, o “Viaduto da Floresta”.

A foto é dos anos 30, quando o Viaduto de Santa Teresa estava novinho e a harmoniosa simetria de seus arcos encantava mais na paisagem urbana de BH. Hoje, poucos podem associá-los ao jovem poeta Carlos Drummond de Andrade e à madrugada insólita em que ele caminhou sobre o da direita, caminhou de cabo a rabo, subindo passo a passo antes de descer, também passo a passo, do outro lado. Teria parado por um momento ao chegar ao ápice, estendendo os braços para o céu. É de se supor que, então, forças telúricas de Minas, poderosas, soltaram a corda misteriosa que mantinham tesa. As livradas tensões dispararam o poeta, flecha flamejante e viva, na direção das estrelas.

Todos os bares

Odilon, tão  paranaense quanto o poeta, mandou para O&B uma pequena joia de Paulo Leminski:

“pariso, novaiorquizo, moscoviteio
sem sair do bar
só não levanto e vou embora
porque há lugares que eu nem chego a Madagascar”

Daí ocorrer voltar aos bares, de Santa Teresa ou ao bar universal, que a Poesia e o cancioneiro abre para nós. Pelas notas misteriosas de “As time goes by” chega-se ao “Rick`s Café Américain”, na Casablanca dos tempos da Ocupação. Tomar uma tacinha de champanha, ouvir o Tango Delle Rose e ainda cantar com fervor a “Marsellaise”! De repente, vejam quem acaba de chegar: Ilsa Lund (Ingrid Bergman). Como ela está bonita!

Deste nosso lado do Atlântico, em referências explícitas ou em meras sugestões, o bar se distancia do âmbito alegre, quieto às vezes, às vezes ruidoso ou mesmo barulhento demais, mas sempre aberto à exposição de teses improváveis, a discussões sempre inconclusivas sobre futebol ou filosofia, para o qual afluem pessoas empenhadas em conversar fiado, rir, contar novidades, histórias, para espairecerem, enfim. Homens, e mulheres, carregam angústia, solidão, desesperança, saudades, o escambau. De vez em quando algum sentimento desses pode aflorar numa mesa de bar. Bar é bom, alegra o coração, mas, pra compaixão,  misericórdia, não é lugar. A percepção dos outros nunca corresponde à do sujeito que, por incontinência etílica, deixe vazar sua tristeza de bêbado, por mais única e exclusiva que lhe pareça. Quanto mais a situação se aproxima do trágico, mais ridícula, o que é realmente patético. Porém, ninguém liga e, ao fim e ao cabo nos bares da vida a vida continua.

É só a preferência dos poetas do cancioneiro que explica o bar impregnado de patético de tantas canções. Ari Barroso, por exemplo, em seu samba-bolero “Risque” (“meu nome do seu caderno”) entra no clima, mas trata de atenuá-lo: “Mas, se algum dia, talvez, a saudade apertar, // não se perturbe, afogue a saudade nos copos de um bar.” No tango de Herivelto a situação se desenfreia: “...deste bar alguém gritava com ironia, // entra mano, que o fulano vai pagar...”

Enquanto isso, na “cantina” de Lila Downs alguém implora à “teibolera”: “Cantame Tacha uma rancherita // porque el recuerdo me va a matar // cantame Tacha, de esas bonitas, // de esas que a un hombre // lo  hacen llorar...”

“Entre copa y copa se acaba mi vida, // llorando borracho su pérfido amor...” Aqui, o ressentimento do protagonista de uma canção de Felipe Valdés Leal também remete ao clima da “cantina” mexicana e ao patético universal.

A manchete que encerra a “Ronda” de Vanzolini é de incomparável radicalismo: “E nesse dia, então, vai dar na primeira edição // “Cena de sangue num bar // da Avenida São João”.

Em tocante paragoge, o grande Enrique Santos Discepolo se dirige ao “cafetin”, não como a um estabelecimento que sirva bebidas e “otras coistas”,  mas entidade sensível e plena de espírito: “Como olvidarte en esta queja, // cafetin de Buenos Aires, si sos lo único en La vida // que se pareció a mi vieja...” Quando era mais jovem, em outra composição, ofereceu o porre como alternativa ao suicídio: “Mirad, si no és pa suicidarse, // que por este cachivache, // sea lo que soy! // Esta noche me emboracho bien, // me mamo bien mamao // pa no pensar...”

“E às pessoas que eu detesto // diga sempre que eu não presto, // que meu lar é um botequim...” O Noel de “Último desejo”, que tangencia o patético, nem parece o mesmo daquela “Conversa de botequim”, em que remete à alegre descontração de um bar de verdade, estendendo-se em demandas, algumas bem esdrúxulas, ao garçom que, sem mais, toma de contraponto e ainda o esculhamba: “Se você ficar limpando a mesa // eu me levanto e não pago a despesa...”

A filha de um blogueiro ocioso, que, por esses dias de final de inverno por lá, andava, um tanto entediada, na friagem cinzenta e plácida de ruas da Jutlândia, em mensagem eletrônica queixava-se da pasmaceira do lugar. O quê dizer? Meu amigo Gregório Cisneros já advertira com autoridade: “Hay mas bares em la Calle Atocha de Madrid que en todo el reino de Dinamarca.”

Olha lá que Santê, nesse quesito, ganha fácil da Rua Atocha.

(NM)