sexta-feira, 4 de abril de 2014

Santa Tereza, tanto bar, o viaduto...

Voltar a Santa Tereza é voltar a um ou outro bar. Há quem busque a Parada do Cardoso, na Rua Dores do Indaiá, no coração do Baixo Santê, ou o Bar do Orlando, bar de pescador, frequentado por vendedores, caixeiros, bancários, mas principalmente por aficionados da pesca e gente chegada a uma conversa fiada. O estabelecimento, que tem um procedimento secreto para colorir os ovos que serve aos fregueses e que, talvez, seja o único bar de Minas Gerais que também vende artigos de armarinho, é um tremendo mentideiro.

Se achas, porém, que é tempo de ir peregrino a Santê, a Caaba pode estar no Bar Temático, lá embaixo, perto do desativado mercado municipal. Umas mesas dentro, outras no passeio, o mesmo serviço, ótimo, garçons solícitos, mas do jeito antigo, sem frescura, sa´comé: cachaça boa, boa cerveja, costelinha de porco bem fritinha, torresmo de barriga, carne de sol com mandioca... Bom demais.

E uma peregrinação dessas, se for bem articulada, por transformar-se num conclave para grandes e irrelevantes deliberações, conforme soem ser os grandes conclaves, firmes na defesa de seus pontos de vista os cardeais Luiz Fernando e Rogério Perez, Wanderley Panther de Lima, Danilo Andrade, Ivan Drummond. Pontificam mais, pelo afeto e pelas presenças bonitas, Marina, Cristina, Vera...

Viaduto

Antes de um conclave desses, o blogueiro apresentou ao Panther, que não precisa ir a Santê, pelo simples fato de que ele é de lá, vive lá e, na medida do possível nunca sai de lá, uma questão crucial, de tão irrelevante. – Ô cara. Como é isso do viaduto que liga o Centro à Floresta ser conhecido e reconhecido como Viaduto de Santa Tereza?

– Simples, meu chapa. A linha do bonde, quando havia bonde, vinha do Centro e, passando pelo viaduto, alcançava o Bairro da Floresta, que atravessava, é óbvio, antes de entrar em Santa Teresa, onde continuava até o final da Rua Mármore. Então o viaduto é mesmo de Santa Tereza, até porque, o outro, o que cruza o ribeirão Arrudas um pouco mais a montante, é que é, por excelência, o “Viaduto da Floresta”.

A foto é dos anos 30, quando o Viaduto de Santa Teresa estava novinho e a harmoniosa simetria de seus arcos encantava mais na paisagem urbana de BH. Hoje, poucos podem associá-los ao jovem poeta Carlos Drummond de Andrade e à madrugada insólita em que ele caminhou sobre o da direita, caminhou de cabo a rabo, subindo passo a passo antes de descer, também passo a passo, do outro lado. Teria parado por um momento ao chegar ao ápice, estendendo os braços para o céu. É de se supor que, então, forças telúricas de Minas, poderosas, soltaram a corda misteriosa que mantinham tesa. As livradas tensões dispararam o poeta, flecha flamejante e viva, na direção das estrelas.

Todos os bares

Odilon, tão  paranaense quanto o poeta, mandou para O&B uma pequena joia de Paulo Leminski:

“pariso, novaiorquizo, moscoviteio
sem sair do bar
só não levanto e vou embora
porque há lugares que eu nem chego a Madagascar”

Daí ocorrer voltar aos bares, de Santa Teresa ou ao bar universal, que a Poesia e o cancioneiro abre para nós. Pelas notas misteriosas de “As time goes by” chega-se ao “Rick`s Café Américain”, na Casablanca dos tempos da Ocupação. Tomar uma tacinha de champanha, ouvir o Tango Delle Rose e ainda cantar com fervor a “Marsellaise”! De repente, vejam quem acaba de chegar: Ilsa Lund (Ingrid Bergman). Como ela está bonita!

Deste nosso lado do Atlântico, em referências explícitas ou em meras sugestões, o bar se distancia do âmbito alegre, quieto às vezes, às vezes ruidoso ou mesmo barulhento demais, mas sempre aberto à exposição de teses improváveis, a discussões sempre inconclusivas sobre futebol ou filosofia, para o qual afluem pessoas empenhadas em conversar fiado, rir, contar novidades, histórias, para espairecerem, enfim. Homens, e mulheres, carregam angústia, solidão, desesperança, saudades, o escambau. De vez em quando algum sentimento desses pode aflorar numa mesa de bar. Bar é bom, alegra o coração, mas, pra compaixão,  misericórdia, não é lugar. A percepção dos outros nunca corresponde à do sujeito que, por incontinência etílica, deixe vazar sua tristeza de bêbado, por mais única e exclusiva que lhe pareça. Quanto mais a situação se aproxima do trágico, mais ridícula, o que é realmente patético. Porém, ninguém liga e, ao fim e ao cabo nos bares da vida a vida continua.

É só a preferência dos poetas do cancioneiro que explica o bar impregnado de patético de tantas canções. Ari Barroso, por exemplo, em seu samba-bolero “Risque” (“meu nome do seu caderno”) entra no clima, mas trata de atenuá-lo: “Mas, se algum dia, talvez, a saudade apertar, // não se perturbe, afogue a saudade nos copos de um bar.” No tango de Herivelto a situação se desenfreia: “...deste bar alguém gritava com ironia, // entra mano, que o fulano vai pagar...”

Enquanto isso, na “cantina” de Lila Downs alguém implora à “teibolera”: “Cantame Tacha uma rancherita // porque el recuerdo me va a matar // cantame Tacha, de esas bonitas, // de esas que a un hombre // lo  hacen llorar...”

“Entre copa y copa se acaba mi vida, // llorando borracho su pérfido amor...” Aqui, o ressentimento do protagonista de uma canção de Felipe Valdés Leal também remete ao clima da “cantina” mexicana e ao patético universal.

A manchete que encerra a “Ronda” de Vanzolini é de incomparável radicalismo: “E nesse dia, então, vai dar na primeira edição // “Cena de sangue num bar // da Avenida São João”.

Em tocante paragoge, o grande Enrique Santos Discepolo se dirige ao “cafetin”, não como a um estabelecimento que sirva bebidas e “otras coistas”,  mas entidade sensível e plena de espírito: “Como olvidarte en esta queja, // cafetin de Buenos Aires, si sos lo único en La vida // que se pareció a mi vieja...” Quando era mais jovem, em outra composição, ofereceu o porre como alternativa ao suicídio: “Mirad, si no és pa suicidarse, // que por este cachivache, // sea lo que soy! // Esta noche me emboracho bien, // me mamo bien mamao // pa no pensar...”

“E às pessoas que eu detesto // diga sempre que eu não presto, // que meu lar é um botequim...” O Noel de “Último desejo”, que tangencia o patético, nem parece o mesmo daquela “Conversa de botequim”, em que remete à alegre descontração de um bar de verdade, estendendo-se em demandas, algumas bem esdrúxulas, ao garçom que, sem mais, toma de contraponto e ainda o esculhamba: “Se você ficar limpando a mesa // eu me levanto e não pago a despesa...”

A filha de um blogueiro ocioso, que, por esses dias de final de inverno por lá, andava, um tanto entediada, na friagem cinzenta e plácida de ruas da Jutlândia, em mensagem eletrônica queixava-se da pasmaceira do lugar. O quê dizer? Meu amigo Gregório Cisneros já advertira com autoridade: “Hay mas bares em la Calle Atocha de Madrid que en todo el reino de Dinamarca.”

Olha lá que Santê, nesse quesito, ganha fácil da Rua Atocha.

(NM)


8 comentários:

  1. Salve, Santa Tereza, o viaduto, os bares, tudo estimulando a memória, nos encontros de amigos, para grandes e irrelevantes deliberações, num ambiente que torna a vida mais leve e justifica o prazer da vadiagem. LFPerez

    ResponderExcluir
  2. pois sim,

    mais a jusante do dito viaduto, sob o qual passei há uma semana exatamente, situa-se o apartamento de Alcindo ribeiro (se vc não o conhece, busque saber quem é; se o sabe, pergunta-lhe sobre a página nove (9), só perguntar. mas da varanda desse dito apartamento se vê à esquerda a santerêz (com aquela igreja que se destaca na paisagem, não interessando tanto o que se faz lá dentro) e pela frente o perfil da serra da piedade. serra que foi percorrida nos 1820/21 pelo auguste saint-hillayre, que gastou páginas para explicar o contato que ali teve com uma vidente (ele não menciona que ela poderia ter-lhe dito que, no futuro, do cimo desse monte seria possível ver santerêz).

    geraldo moura

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ô geraldo,

      Bom ter notícias suas. Esse negócio de ficar aí em Brasília faz o sujeito sumir que nem deputado. É claro que conheço o Alcindo, que distingue O&B como leito qualificado e, o que conta mais, com a generosidade inesgotável e a disposição de ser amigo.

      Grande abraço,

      Nilseu

      Excluir
  3. Nilseu,

    Nós, moradores, frequentadores e também um pouco "donos" do terreiro, agradecemos o texto etílico-afetivo do nosso reduto. Está impresso e distribuído a confrades de todos os bares. Um abraço

    Wanderley (Panther) Lima

    ResponderExcluir
  4. Querido Nilseu,

    Gostei imensamente da nova postagem. Ri muito dos seus textos sobre os bares de Santa Tereza e seus frequentadores, empenhados em jogar conversa fora. Gostei tambem do texto do Fabbrini que fala sobre a sua binacionalidade e a diferença que faz de Belo Horizonte com a pequena cidade italiana que é a origem da sua família.
    As ilustrações foram bem escolhidas e todo o blog é como sempre delicioso de se ler. Acho mesmo uma pena não nos encontrarmos mais a miúdo para batepapos sisudos e engraçados, tudo na medida certa.

    Sua amiga de sempre,

    Marília

    ResponderExcluir
  5. Caro Nilseu:

    Obrigado pela oportunidade de conhecê-lo como escritor.

    Parabéns: vc trabalha a linguagem de maneira admirável. Seu texto flui com uma invejável naturalidade e é exemplar da pontuação perfeita à escolha vocabular, do domínio literário à capacidade quase mágica de reproduzir o clima característico do ambiente de que trata.

    Como ler seu texto e não reproduzir mentalmente não só Drummond se equilibrando em um dos arcos do viaduto, mas também desafiando o policial que o interpelou a ir prendê-lo no alto? E como não lembrar que a tradição do bar remonta aos primeiros anos de Belo Horizonte e que um deles, o Bar do Ponto, constituiu um espaço foi decisivo para conversas e discussões que iriam arejar as mentes daqueles que viriam ser figuras importantes no modernismo brasileiro?

    A erudição despretensiosa e bem-humorada permeia um texto realmente agradável, bom de se degustar. A memória se mescla com o presente e a sensação que tive foi de Santa Teresa constituir um enclave do passado em uma Belo Horizonte que, dolorosamente, perdeu sua identidade para ser apenas mais uma cidade grande cheia dos problemas entre os demais grandes centros urbanos duros, cruéis e agressivos de um Brasil quase sem lei.

    Novamente, muito obrigado pelo presente e por ter a oportunidade de saber que um mestre da sinuca é também um excepcional domador das palavras ( "Lutar com as palavras/ é a luta mais vã/ no entanto eu luto/ mal rompe a manhã"...já confessava o velho Drummond...). Parabéns !!!

    José M. Santos

    ResponderExcluir
  6. Nilseu querido, o texto mexeu bem com os meus sentidos. Viajei no tempo. E sei que a casa do meu avô está lá até hoje na rua Eurita. Ai que saudades de Santê!

    ResponderExcluir