segunda-feira, 20 de julho de 2015

Ipês, paus d`arco, não importa: benza Deus!

O&B subestimou, em sua última postagem sobre as floradas, a generosidade dos ipês. Aqueles tons de rosa inacreditáveis, à vezes com tons violáceos, de azul outras vezes, estão por toda parte em BH, embora sem a unanimidade de outros anos. Mesmo na Praça da Liberdade, onde a florada começou tímida, chegou a habitual explosão de cores que,  prenda dos paus d`arco, sempre enfeita e alegra a cidade nesta época do ano. Benza Deus! (NM)
  



















No cruzamento da Rua São Paulo, ali onde a Rua Felipe dos Santos despenca rumo à Praça Camões (Marília de Dirceu) a florada dos paus d`arco converte uma perspectiva banal num vislumbre de pura magia na nossa paisagem urbana. 

sábado, 18 de julho de 2015

Canastra com Mr. Sharif

Fernando Fabbrini (*)

Em homenagem a Omar Sharif, que desembarcou da Nave na semana passada, e atendendo aos pedidos de alguns amigos, segue crônica publicada originalmente no jornal O TEMPO em 16 de março de 97.

Bigode e Magrelo tinham vinte e poucos anos. Eram brasileiros, cabeludos e se diziam hippies. Chegaram à Europa de navio - porque naquele tempo navio era muito mais barato - com mochilas, violões, sonhos de liberdade e alguns trocados no bolso. Em pouco tempo já estavam ganhando uma graninha em boates de segunda, corredores de metrô e arredores das universidades. Pra completar, Magrelo ainda reforçava o orçamento com aulas de bossa nova, acordes dissonantes, macetes e coisa e tal. Em Madri, uma das alunas era Susan, uma americana que adorava o Brasil; tinha morado no Rio com seu marido Pedro, um famoso produtor de cinema da época. Harpista de mão cheia, Susan curtia transcrever para seu instrumento os acordes diferentes que Magrelo sabia. De aula em aula, o casal ficou amigo de Magrelo e sempre o convidava para as festas em sua mansão nos arredores da cidade. Magrelo chegava, tocava o inevitável “Garota de Ipanema” e o jantar estava garantido.

Naquela noite de sábado ia ter mais festa. Magrelo tomou banho, separou o jeans menos sujo, botou seu velho Di Giorgio na surrada capa de lona; conferiu as pesetas para a passagem do metrô e saiu caminhando pela noite gelada. Chegando à mansão, percebeu que a festa seria especial: carros de luxo na porta, motoristas fardados, um agito diferente no ar. No salão imenso, gente finíssima, mulheres lindas em vestidos tão brilhantes quanto decotados, risadas e champanhe em profusão. Susan e Pedro receberam Magrelo com a simpatia habitual:

— Que bom que você veio! Tem alguém aqui que você deve conhecer... – disse Susan, puxando Magrelo pelo braço. Alguém que ele devia conhecer era realmente alguém conhecidíssimo: nada menos que Omar Sharif, o ator de “Doutor Jivago” e “Lawrence da Arábia” em pessoa. Velho amigo do casal, ele estava na Espanha de passagem; foi convidado para a festinha e apareceu, por que não?

Nice to meet you! - disse Sharif, com aquela voz de Hollywood. – Hummm... Brazilian? So, you play canastra, don’t you?

Ora, ora! Que pergunta! Magrelo era viciado em jogo de buraco e no seu similar, a canastra. Faltava um na mesa e lá foi Magrelo fazer dupla com Omar Sharif, deixando o violão num canto. Jogaram a noite inteira e a coalizão egípcio-brasileira estava com sorte. Ganharam várias rodadas. A cada batida, Sharif dava palmadas nas costas de Magrelo, eufórico.
E Magrelo, desinibido por conta do bom uísque que corria solto, devolvia-lhe as gentilezas, como se fosse a coisa mais normal do mundo bater nas costas de Omar Sharif numa mesa de jogo. Fim de noite, Mr. Sharif – empapado de vodca como nos tempos de “Doutor Jivago” – fez questão de abraçar o brasileiro:

You are a wonderful partner, my friend! - disse Omar, cambaleando. Depois, escorando-se numa bela mulher, entrou numa Mercedes-Benz prateada e sumiu na neblina do amanhecer.
Magrelo voltou para o Brasil tempos depois; engordou um pouco, ficou mais velho, ganhou cabelos brancos e continua contando essa história quando alguém lhe pede. Alguns acham que é pura invenção do Magrelo, mas ele nem liga. Já está acostumado.

Nota de O&B – É assim mesmo, Fabbrini. Os bons sempre se encontram, seja numa mesa de boteco ou numa roda de carteado. 


(*) Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália. 

quarta-feira, 1 de julho de 2015

"Não faz mal que amanheça devagar"

Chegou a O&B , enviado por Sônia Galastro, texto de Nazareth Soares, participante ativa e assídua do sarau mensal frequentado por um grupo de mulheres, criado e alentado por ela há muitos anos, quando ainda morava em BH. Sonel, hoje, vive na África do Sul, mas o sarau mantém o fôlego e a vitalidade, graças a possibilidades que vieram com a rede eletrônica, “apesar de algumas das participantes já terem virado história”.

Não faz mal que amanheça devagar

Nazareth Soares

Gostaria que a madrugada demorasse bem a despertar os sinais de passagem de tempo que se mostram no rosto do meu amado. Ultimamente ele tem amanhecido cansado, desiludido consigo mesmo porque vê com tristeza o corpo macilento e as pernas trôpegas.
             
        - Fique um pouco mais na cama, digo a ele. O dia ainda tarda a aparecer. Ele me olha com olhos desapontados e me diz: - quero ver o dia amanhecer aos poucos, quero ver os primeiros raios de sol caírem sobre o gramado do jardim. Não sei quanto tempo tenho ainda para ver esse espetáculo e quero encher os olhos com a suavidade desta hora.
             
        - Tenho médico hoje, não é? Certamente ele irá pedir mais exames e me virará pelo avesso procurando alguma machinha na pele, algum carocinho perdido neste corpo magro.
           
        - Fique mais um pouco na cama, digo, puxando o cobertor sobre o seu peito. 

        - Lembra-se daqueles dias que passamos em Sevilha, ele me diz num tom que em nada combinava com o pouco entusiasmo de antes. Você procurava vestígios do João Cabral, que foi cônsul lá. Você estava certa de que encontraria os poemas dele em alguma livraria e andamos muito atrás de poemas e livros que não encontramos. O calor intenso nos obrigava a parar sempre que encontrávamos um lugarzinho menos cheio de turistas. E quando voltávamos ao hotel, tontos de tanto andar, o sol ainda teimava em iluminar as águas do Guadalquivir e nos fazia sentir, da maneira mais intensa, os  cheiros da Andaluzia. Com os olhos fixos no anoitecer que custava a expulsar as cores da tarde e da cidade, a gente sentou-se num dos muitos bancos à beira do rio e ficamos  relembrando poemas do Cabral sobre Sevilha. A gente ria muito porque o nosso entusiasmo pelos poemas sevilhanos do poeta não nos garantia ter memória para recitá-los. Acho que até chegamos a declamar juntos alguns versos do “Viver Sevilha”. Lembra-se?

Só em Sevilha o corpo está
com todos os sentidos em riste,
sentidos que nem se sabia,
antes de andá-la, que existissem;

sentidos que fundam num só:
viver num só o que nos vive,
que nos dá a mulher de Sevilha
e a cidade ou concha em que vive.

           Enquanto ele buscava na memória os versos do poema, eu cavava outros tão significativos para mim naquele momento.

Se viver-te será curto,
como pequena é Sevilha,
que viver-te seja intenso
carregado qual nova pilha.

(Lições de Sevilha)
           
           Até recordei as brincadeiras que fazíamos vivendo nossa intensa felicidade, amarrando a alegria de viver com versos sevilhanos do Cabral:

Tenho Sevilha em minha cama,
eis que Sevilha se faz carne,
eis-me habitando Sevilha
como é impossível de habitar-se.


(Mulher da Panaderia)

            Ele se lembrou de que, em um daqueles fins de tarde demorados, resolvemos comprar uma garrafa de vinho e ir para o hotel para descansarmos um pouquinho antes do jantar. O vinho pediu umas azeitonas pretas molhadas no azeite e um queijinho memorável. Lembra-se disso? Lembrou-se até de que eu me recostei na cama com os pés quase tocando no chão e que ele ficara folheando o livro do João Cabral. Qual era? Seria “Sevilha andando”?

            Madrugada já quase dia, ele me disse: “ você acordou reclamando de mim por tê-la deixando dormir e perder o jantar naquele restaurante que tinha uma comida deliciosa regada a   danças sevilhanas”. A madrugada caía sobre os jardins do hotel  puxando o sol preguiçoso que já despontava sobre o rio. “Lembra-se de que você se aconchegou melhor na cama, fechou os olhos e perdeu o espetáculo do amanhecer? Perdeu o belo espetáculo daquele dia!”
           
            Olho para ele, tão magro e desamparado, tentando descobrir no seu rosto o entusiasmo que havia visto em Sevilha quando andávamos como dois alucinados pelas becos e vielas da cidade. Tentei buscar vestígios do homem valente que desafiava a autoridade nos tempos do “Violão de rua”, no Rio de Janeiro, entusiasmado pelos movimentos poéticos que explodiam numa cidade ameaçada pela ditadura cruel. Eram os anos 60 e a gente participava ativamente de várias atividades contra o regime imposto pelos militares.

            O “Violão de Rua”, dizem agora os que estudam o período, foi a maior expressão do Romantismo Revolucionário da década de 60. O movimento contou com o apoio de poetas como Geir Campos, Ferreira Goulart, Reynaldo Jardim, Vinícius de Morais, Affonso Romano de Sant’Anna e outros de que não me lembro mais. Para nós, ele era ardor, entusiasmo e esperança de liberdade. Éramos jovens e nosso amor era partilhado com a certeza de que o mundo voltaria a ser melhor porque mais justo.

            Olhando-o tão desamparado ainda na cama, meus olhos retomam cenas daquele tempo: estamos na Avenida Presidente Vargas ouvindo os poetas do Violão de Rua. Geir Campos declama um poema romântico e a gente entende que “Alba” é uma referência simbólica ao amanhã que se projeta nos discursos inflamados dos jovens, nos versos declamados com paixão. O corpo cansado que eu vejo agora estava cheio de vigor. Magro, muito magro, mas forte para as muitas tarefas que fazia. 
           
            Olho para ele com ternura, muita ternura, procurando reconhecer no rosto de hoje os traços do jovem que me conduzia pelas estradas de revoluções que aconteciam em tantos lugares: nos Estados Unidos, com Luther King, em Praga e em Paris, nas ruas cheias de estudantes revoltados.

             Relembro o entusiasmo dele nas passeatas, na distribuição de livros de poemas nas estações de trem, nos pontos de ônibus. Os livrinhos do “Violão de Rua”, agora, na minha imaginação, misturam-se aos poemas de João Cabral sobre Sevilha, aos passos fortes das dançarinas de vestidos rosa forte, amarelo ouro, azul turquesa; pentes imensos nos cabelos, leques e castanholas nas mãos. Misturam-se ao gosto das “tapas”que comíamos pelas ruas de Sevilha.
           
            “Não faz mal que amanheça devagar”, digo baixinho para mim mesma. Ele estará protegido do desatino do dia e do muito que pensa ter tempo de fazer ainda. “Não faz mal que amanheça devagar”, porque teremos tempo para reviver os nossos sonhos distantes, as muitas aventuras que vivemos juntos e, quem sabe, até nos prepararmos para, ao anoitecer, bebermos uma taça de vinho espanhol como nos velhos tempos, lembrando os versos de “Alba” do Geir Campos:


Não faz mal que amanheça devagar,
as flores não têm pressa nem os frutos:
sabem que a vagareza dos minutos
adoça mais o outono por chegar.
Portanto não faz mal que devagar
o dia vença a noite em seus redutos
do leste — o que nos cabe é ter enxutos
os olhos e a intenção de madrugar.



Na evocação do “Operário do canto”

Nazareth trouxe a este blogue lembranças de João Cabral e de Sevilha que enriquecem e alentam, por mais recorrentes que sejam aqui em O&B. A evocação de Geir Campos, tão sumido das súmulas literárias, das tertúlias de botequim, sumido de tudo, surpreende mais e, por isso mesmo, mais alegra o coração. Houve um tempo, porém, que declamar “Da profissão do poeta” , principalmente os versos incluídos por Millor e Milton Rangel no exórdio de “Liberdade, Liberdade”, que a voz portentosa de Paulo Autran levou aos quatro cantos do Brasil, foi realmente impositiva para toda uma geração de brasileiros:

Operário do canto, me apresento
sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
minha alma limpa, a face descoberta,
aberto o peito, e — expresso documento —
a palavra conforme o pensamento.
(...)
Trabalho à noite e sem revezamentos.
Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
sem se tornar com isso menos pura
a voz sobe uma oitava na mistura.
Não canto onde não seja o sonho livre,
onde não haja ouvidos limpos e almas
afeitas a escutar sem preconceito.
Para enganar o tempo ou distrair
criaturas já de si tão mal atentas,
não canto...
Canto apenas quando dança,
nos olhos dos que me ouvem, a esperança.

Mas, aí, vêm aqueles versos emocionantes, pungentes,  versos que, de algum modo suscitam umas vibrações de “As Parcas”, de Hölderlin. O blogueiro se refere a “Questões de Tempo”, um momento particularmente inspirado da poesia de Geir:

Quem perguntará por mim
quando a última passar
com seu facão?
Que mulher grave desfalecerá
vendo apagados meus olhos
na multidão?
Que homem de bem guardará
o adeus meu
seco na palma da mão?
Quem lembrará minha voz
coral ausente
em qualquer canção?
Quem se pagará a herança
inteira ou em pedaços
do meu indivisível coração?
E a quem a flor
de raiz em mim
fará os acenos do não?
 


(NM)