Chegou a O&B , enviado por
Sônia Galastro, texto de Nazareth Soares, participante ativa e assídua do sarau
mensal frequentado por um grupo de mulheres, criado e alentado por ela há
muitos anos, quando ainda morava em BH. Sonel, hoje, vive na África do
Sul, mas o sarau mantém o fôlego e a vitalidade, graças a possibilidades que
vieram com a rede eletrônica, “apesar de algumas das participantes já terem
virado história”.
Não faz mal que amanheça devagar
Nazareth Soares
Gostaria que a madrugada
demorasse bem a despertar os sinais de passagem de tempo que se mostram no
rosto do meu amado. Ultimamente ele tem amanhecido cansado, desiludido consigo
mesmo porque vê com tristeza o corpo macilento e as pernas trôpegas.
- Fique um pouco mais na cama,
digo a ele. O dia ainda tarda a aparecer. Ele me olha com olhos desapontados e
me diz: - quero ver o dia amanhecer aos poucos, quero ver os primeiros raios de
sol caírem sobre o gramado do jardim. Não sei quanto tempo tenho ainda para ver
esse espetáculo e quero encher os olhos com a suavidade desta hora.
- Tenho médico hoje, não é?
Certamente ele irá pedir mais exames e me virará pelo avesso procurando alguma
machinha na pele, algum carocinho perdido neste corpo magro.
- Fique mais um pouco na cama, digo,
puxando o cobertor sobre o seu peito.
- Lembra-se daqueles dias que
passamos em Sevilha, ele me diz num tom que em nada combinava com o pouco
entusiasmo de antes. Você procurava vestígios do João Cabral, que foi cônsul
lá. Você estava certa de que encontraria os poemas dele em alguma livraria e
andamos muito atrás de poemas e livros que não encontramos. O calor intenso nos
obrigava a parar sempre que encontrávamos um lugarzinho menos cheio de
turistas. E quando voltávamos ao hotel, tontos de tanto andar, o sol ainda teimava
em iluminar as águas do Guadalquivir e nos fazia sentir, da maneira mais
intensa, os cheiros da Andaluzia. Com os
olhos fixos no anoitecer que custava a expulsar as cores da tarde e da cidade,
a gente sentou-se num dos muitos bancos à beira do rio e ficamos relembrando poemas do Cabral sobre Sevilha. A
gente ria muito porque o nosso entusiasmo pelos poemas sevilhanos do poeta não
nos garantia ter memória para recitá-los. Acho que até chegamos a declamar
juntos alguns versos do “Viver Sevilha”. Lembra-se?
Só em Sevilha o corpo está
com todos os sentidos em riste,
sentidos que nem se sabia,
antes de andá-la, que existissem;
sentidos que fundam num só:
viver num só o que nos vive,
que nos dá a mulher de Sevilha
e a cidade ou concha em que vive.
com todos os sentidos em riste,
sentidos que nem se sabia,
antes de andá-la, que existissem;
sentidos que fundam num só:
viver num só o que nos vive,
que nos dá a mulher de Sevilha
e a cidade ou concha em que vive.
Enquanto ele buscava na memória
os versos do poema, eu cavava outros tão significativos para mim naquele
momento.
Se viver-te será curto,
como pequena é Sevilha,
que viver-te seja intenso
carregado qual nova pilha.
como pequena é Sevilha,
que viver-te seja intenso
carregado qual nova pilha.
(Lições de Sevilha)
Até
recordei as brincadeiras que fazíamos vivendo nossa intensa felicidade,
amarrando a alegria de viver com versos sevilhanos do Cabral:
Tenho Sevilha em minha cama,
eis que Sevilha se faz carne,
eis-me habitando Sevilha
como é impossível de habitar-se.
(Mulher da Panaderia)
Ele se lembrou de que, em um
daqueles fins de tarde demorados, resolvemos comprar uma garrafa de vinho e ir
para o hotel para descansarmos um pouquinho antes do jantar. O vinho pediu umas
azeitonas pretas molhadas no azeite e um queijinho memorável. Lembra-se disso?
Lembrou-se até de que eu me recostei na cama com os pés quase tocando no chão e
que ele ficara folheando o livro do João Cabral. Qual era? Seria “Sevilha
andando”?
Madrugada
já quase dia, ele me disse: “ você acordou reclamando de mim por tê-la deixando
dormir e perder o jantar naquele restaurante que tinha uma comida deliciosa
regada a danças sevilhanas”. A
madrugada caía sobre os jardins do hotel
puxando o sol preguiçoso que já despontava sobre o rio. “Lembra-se de
que você se aconchegou melhor na cama, fechou os olhos e perdeu o espetáculo do
amanhecer? Perdeu o belo espetáculo daquele dia!”
Olho
para ele, tão magro e desamparado, tentando descobrir no seu rosto o entusiasmo
que havia visto em Sevilha quando andávamos como dois alucinados pelas becos e
vielas da cidade. Tentei buscar vestígios do homem valente que desafiava a
autoridade nos tempos do “Violão de rua”, no Rio de Janeiro, entusiasmado pelos
movimentos poéticos que explodiam numa cidade ameaçada pela ditadura cruel.
Eram os anos 60 e a gente participava ativamente de várias atividades contra o
regime imposto pelos militares.
O
“Violão de Rua”, dizem agora os que estudam o período, foi a maior expressão do
Romantismo Revolucionário da década de 60. O movimento contou com o apoio de poetas
como Geir Campos, Ferreira Goulart, Reynaldo Jardim, Vinícius de Morais,
Affonso Romano de Sant’Anna e outros de que não me lembro mais. Para nós, ele
era ardor, entusiasmo e esperança de liberdade. Éramos jovens e nosso amor era
partilhado com a certeza de que o mundo voltaria a ser melhor porque mais
justo.
Olhando-o
tão desamparado ainda na cama, meus olhos retomam cenas daquele tempo: estamos
na Avenida Presidente Vargas ouvindo os poetas do Violão de Rua. Geir Campos
declama um poema romântico e a gente entende que “Alba” é uma referência
simbólica ao amanhã que se projeta nos discursos inflamados dos jovens, nos
versos declamados com paixão. O corpo cansado que eu vejo agora estava cheio de
vigor. Magro, muito magro, mas forte para as muitas tarefas que fazia.
Olho para ele com ternura, muita
ternura, procurando reconhecer no rosto de hoje os traços do jovem que me
conduzia pelas estradas de revoluções que aconteciam em tantos lugares: nos
Estados Unidos, com Luther King, em Praga e em Paris, nas ruas cheias de
estudantes revoltados.
Relembro
o entusiasmo dele nas passeatas, na distribuição de livros de poemas nas
estações de trem, nos pontos de ônibus. Os livrinhos do “Violão de Rua”, agora,
na minha imaginação, misturam-se aos poemas de João Cabral sobre Sevilha, aos
passos fortes das dançarinas de vestidos rosa forte, amarelo ouro, azul
turquesa; pentes imensos nos cabelos, leques e castanholas nas mãos.
Misturam-se ao gosto das “tapas”que comíamos pelas ruas de Sevilha.
“Não
faz mal que amanheça devagar”, digo baixinho para mim mesma. Ele estará
protegido do desatino do dia e do muito que pensa ter tempo de fazer ainda.
“Não faz mal que amanheça devagar”, porque teremos tempo para reviver os nossos
sonhos distantes, as muitas aventuras que vivemos juntos e, quem sabe, até nos
prepararmos para, ao anoitecer, bebermos uma taça de vinho espanhol como nos
velhos tempos, lembrando os versos de “Alba” do Geir Campos:
Não faz mal que amanheça devagar,
as flores não têm pressa nem os frutos:
sabem que a vagareza dos minutos
adoça mais o outono por chegar.
Portanto não faz mal que devagar
o dia vença a noite em seus redutos
do leste — o que nos cabe é ter enxutos
os olhos e a intenção de madrugar.
as flores não têm pressa nem os frutos:
sabem que a vagareza dos minutos
adoça mais o outono por chegar.
Portanto não faz mal que devagar
o dia vença a noite em seus redutos
do leste — o que nos cabe é ter enxutos
os olhos e a intenção de madrugar.
Na evocação do “Operário do canto”
Nazareth trouxe a este blogue lembranças de João Cabral e de
Sevilha que enriquecem e alentam, por mais recorrentes que sejam aqui em
O&B. A evocação de Geir Campos, tão sumido das súmulas literárias, das
tertúlias de botequim, sumido de tudo, surpreende mais e, por isso mesmo, mais
alegra o coração. Houve um tempo, porém, que declamar “Da profissão do poeta” ,
principalmente os versos incluídos por Millor e Milton Rangel no exórdio de “Liberdade,
Liberdade”, que a voz portentosa de Paulo Autran levou aos quatro cantos do
Brasil, foi realmente impositiva para toda uma geração de brasileiros:
Operário do canto, me apresento
sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
minha alma limpa, a face descoberta,
aberto o peito, e — expresso documento —
a palavra conforme o pensamento.
sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
minha alma limpa, a face descoberta,
aberto o peito, e — expresso documento —
a palavra conforme o pensamento.
(...)
Trabalho à noite e sem revezamentos.
Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
sem se tornar com isso menos pura
a voz sobe uma oitava na mistura.
Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
sem se tornar com isso menos pura
a voz sobe uma oitava na mistura.
Não canto
onde não seja o sonho livre,
onde não haja ouvidos limpos e almas
afeitas a escutar sem preconceito.
Para enganar o tempo ou distrair
criaturas já de si tão mal atentas,
não canto...
onde não haja ouvidos limpos e almas
afeitas a escutar sem preconceito.
Para enganar o tempo ou distrair
criaturas já de si tão mal atentas,
não canto...
Canto apenas
quando dança,
nos olhos
dos que me ouvem, a esperança.
Mas, aí, vêm aqueles versos emocionantes, pungentes, versos que, de algum modo suscitam umas
vibrações de “As Parcas”, de Hölderlin. O blogueiro se refere a “Questões de
Tempo”, um momento particularmente inspirado da poesia de Geir:
Quem perguntará por mim
quando a última passar
com seu facão?
Que mulher grave desfalecerá
vendo apagados meus olhos
na multidão?
Que homem de bem guardará
o adeus meu
seco na palma da mão?
Quem lembrará minha voz
coral ausente
em qualquer canção?
Quem se pagará a herança
inteira ou em pedaços
do meu indivisível coração?
E a quem a flor
de raiz em mim
fará os acenos do não?
quando a última passar
com seu facão?
Que mulher grave desfalecerá
vendo apagados meus olhos
na multidão?
Que homem de bem guardará
o adeus meu
seco na palma da mão?
Quem lembrará minha voz
coral ausente
em qualquer canção?
Quem se pagará a herança
inteira ou em pedaços
do meu indivisível coração?
E a quem a flor
de raiz em mim
fará os acenos do não?
(NM)
Nilseu,
ResponderExcluirTexto muito bom , è para se ler diversas vezes !! Parabens !
Marcio BA
Nó, Nilseu! Que texto lindo! A Nazareth é uma pessoa muito especial!
ResponderExcluirUm abraço,
Magda
Que fina sensibilidade, Nilseu: apensar ao memento doce e pungente da sua amiga Nazareth os não menos belos versos de Geir Campos. Belo texto. Abraço. Odilon
ResponderExcluirCaríssimo Odilon,
ExcluirObrigado por tão gentil comentário. A referência verbalizada aos versos de Geir como apêndice da lembrança, sutilmente transforma-os na própria lembrança, uma dessas possibilidade de nossa Língua Pátria que alegram o coração. Agora o seguinte: se não me salva algum Latim de missa, e o blogueiro metido a editor/copy-desk teria escorregado no equívoco de uma correção que teria corrompido toda a intenção de sua mensagem, tão direta e precisa. Grande abraço,
Nilseu