Fernando Fabbrini (*)
Em homenagem a Omar
Sharif, que desembarcou da Nave na semana passada, e atendendo aos pedidos de
alguns amigos, segue crônica publicada originalmente no jornal O TEMPO em 16 de
março de 97.
Bigode e Magrelo tinham vinte e poucos anos. Eram
brasileiros, cabeludos e se diziam hippies. Chegaram à Europa de navio - porque
naquele tempo navio era muito mais barato - com mochilas, violões, sonhos de
liberdade e alguns trocados no bolso. Em pouco tempo já estavam ganhando uma
graninha em boates de segunda, corredores de metrô e arredores das
universidades. Pra completar, Magrelo ainda reforçava o orçamento com aulas de
bossa nova, acordes dissonantes, macetes e coisa e tal. Em Madri, uma das
alunas era Susan, uma americana que adorava o Brasil; tinha morado no Rio com
seu marido Pedro, um famoso produtor de cinema da época. Harpista de mão cheia,
Susan curtia transcrever para seu instrumento os acordes diferentes que Magrelo
sabia. De aula em aula, o casal ficou amigo de Magrelo e sempre o convidava
para as festas em sua mansão nos arredores da cidade. Magrelo chegava, tocava o
inevitável “Garota de Ipanema” e o jantar estava garantido.
Naquela noite de sábado ia ter mais festa. Magrelo tomou
banho, separou o jeans menos sujo,
botou seu velho Di Giorgio na surrada
capa de lona; conferiu as pesetas
para a passagem do metrô e saiu caminhando pela noite gelada. Chegando à
mansão, percebeu que a festa seria especial: carros de luxo na porta,
motoristas fardados, um agito diferente no ar. No salão imenso, gente
finíssima, mulheres lindas em vestidos tão brilhantes quanto decotados, risadas
e champanhe em profusão. Susan e Pedro receberam Magrelo com a simpatia
habitual:
— Que bom que você veio! Tem alguém aqui que você deve
conhecer... – disse Susan, puxando Magrelo pelo braço. Alguém que ele devia
conhecer era realmente alguém conhecidíssimo: nada menos que Omar Sharif, o
ator de “Doutor Jivago” e “Lawrence da Arábia” em pessoa. Velho amigo do casal,
ele estava na Espanha de passagem; foi convidado para a festinha e apareceu,
por que não?
— Nice to meet you!
- disse Sharif, com aquela voz de Hollywood. – Hummm... Brazilian? So, you play canastra,
don’t you?
Ora, ora! Que pergunta! Magrelo era viciado em jogo de
buraco e no seu similar, a canastra. Faltava um na mesa e lá foi Magrelo fazer
dupla com Omar Sharif, deixando o violão num canto. Jogaram a noite inteira e a
coalizão egípcio-brasileira estava com sorte. Ganharam várias rodadas. A cada
batida, Sharif dava palmadas nas costas de Magrelo, eufórico.
E Magrelo, desinibido por conta do bom uísque que corria solto, devolvia-lhe as
gentilezas, como se fosse a coisa mais normal do mundo bater nas costas de Omar
Sharif numa mesa de jogo. Fim de noite, Mr. Sharif – empapado de vodca como nos tempos
de “Doutor Jivago” – fez questão de abraçar o brasileiro:
— You are a wonderful
partner, my friend! - disse Omar, cambaleando. Depois, escorando-se numa
bela mulher, entrou numa Mercedes-Benz prateada e sumiu na neblina do
amanhecer.
Magrelo voltou para o Brasil tempos depois; engordou um
pouco, ficou mais velho, ganhou cabelos brancos e continua contando essa
história quando alguém lhe pede. Alguns acham que é pura invenção do Magrelo,
mas ele nem liga. Já está acostumado.
Nota de O&B – É assim mesmo, Fabbrini. Os bons sempre se
encontram, seja numa mesa de boteco ou numa roda de
carteado.
(*) Fernando Fabbrini
é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de
coletâneas literárias no Brasil e na Itália.
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