quarta-feira, 27 de julho de 2016

Inverno em BH: céu de topázio claro, favas contadas no Mercado Central



O Mercado Central é perfumado e colorido, vivo e, com estilo, oferece em BH o mais alegre, o mais saboroso, deste Planeta misterioso chamado Minas Gerais. Em escala superlativa, é como a famosa “venda” que o calango de Miltinho Edilberto proclama, lá do Jequitinhonha: “Na venda do seu Lidirico // tem de tudo e cada coisa que tem eu explico”. Flagrante, aí, ainda assim legítima, a licença do cantador, porque explicar é desvendar o nome e a imagem que lhe corresponde, o seu espelho e metáfora, revelação e afirmação da existência.

Tem canário, periquito, gaiolas de fino lavor, tem alpiste, tem painço, tenebrium para as ninhadas, tem porquinho da Índia e coelho,  e filhote de cachorro; tem pombas, faisões, galos tristes, marrecos de muitas cores, patos fanhos, e gansos de aflito grasnar. Peixinhos coloridos para o aquário do menino; para a moqueca, limpos, repartidos em postas, robalos, surubis, badejos, crustáceos frescos de excelente parecer, e as ervas requeridas, salsa, cebolinha, loro, coentro, cominho, e alho, cebola, pimenta comari e malagueta, tomate madurinho, e açafrão, só pra dar o tom.

Flores? De todas as cores, vermelhas para a namorada, rosas rosa para a companheira da vida inteira, pra mulher solteira e pra mulher casada, flores para o casamento e para o aniversário do casamento, para o batizado e também pra outros que tais, mas, aí, melhor é bater na madeira com o nódulo do indicador e nem pensar. Primor de frutas no Mercado: laranja, manga, abacaxi descascado, uvas, maçãs, peras, jacas, araticuns, frutas do conde, amoras e carambolas, e pequis do mais rico olor, basta um pra perfumar a estação, mexericas, lima e limão, morango, melancia e melão, pêssego, caqui, lichia, e muita fruta esquisita. É claro que tem abacate, tem banana e mamão, e “papaia”, que seria a mesma coisa, não em Cuba, onde remete a outros sabores.

No grande Mercado, meu irmão, tem as ervas, cascas, raízes e sementes da nossa panaceia vegetal: “pra rins, próstata e coração”, as folhas da cavalinha; azeitona do mato, unha de vaca, cipó caboclo, embaúba branca e chapéu de couro para depuração e diurese, buchinha contra asma e sífilis; tem raiz de graviola, tem jalapa; pra curar quebranto e rebater mau olhado, rosmaninho (ou alecrim) e semente de sicupira pra quebrantar o azougue da cachaça. Se não te avéns com os viagras, “pra natureza, é um colosso”.

Tem peneira e tem penico, e tem fieira e pião, bolinhas de gude, papagaio com carretilha, pronto pra empinar, tem frigideira, tem bule, e panela de ferro, de pedra, de barro, querosene para a lamparina, camisinha para o lampião; tem balaio e cesto de tudo que é jeito, rede pra dormir e pra namorar, e moinho, almofariz, pilão, farinha de milho e de mandioca, pro tropeiro, pra farofa e pra paçoca, pra tutu e pra tapioca, e tem caniço e apito, nisso igual à venda do seu Lidirico. Tem carne de sol, tem anzol, sanfona, e viola-também-tem. Pagode, é. Tem pagode! E tem moda pra gente escutar: “Nasci lá na cidade e me casei na Serra // com a Mariana, moça lá de fora;// Eu estranhei os carinhos dela // e disse adeus Mariana, que eu já vou embora...” 

E artigos de preceito para o despacho ao santo de cada um, defumadores, velas, incensos, estatuinhas para o peji, “Eparrei, Iansã!”, “Axé opô ajonjá, Xangô!”, “Laroiê, Exu!”, “Saravá, Oxalá, meu pai!” “Saravá a todos os Orixás!... E imagens de qualquer santo de tua devoção, tem São Pedro, Santo Expedito, São Francisco e São Benedito, Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia, tem Santa Rita e São João, São José, São Sebastião...  Agora o seguinte: Santo Onofre, São Xisto e São Calisto, se tem lá, eu nunca vi.

Queijos, tem pra todo gosto, curado, de meia cura e fresco, do Serro, da Serra do Salitre e da Canastra, e doce de leite, goiabada, requeijão moreno de Montes Claros, doce de figo e,  feito em reclame de circo, tem marmelada? Tem, sim senhor. E tem frutas em calda e cristalizadas, abacaxi, figo, cidra e laranja, limão... Também, biscoitinhos delicados, brevidades, quebra-quebras, sequilhos e amanteigados , uhmm! quitandas de Minas, sa`com´é.

E aqueles bifes acebolados, que a gente come em pé, encostada nos balcões das bitacas, hem? Tem de alcatra e de fígado e, pra quem goste, jiló frito, chouriço, bife de pernil, de lombo, e cachaça de Salinas, que também pode ser de Januária ou de outras águas, sem desdouro, sempre a melhor guia pra cerveja tão gelada!

E tem batatinha, daquela que, “quando nasce, se esparrama pelo chão”, pra chegar “palha” com o “strogonoff” ou, também, muito “sotée”; e batata doce e baroa, cenoura e beterraba, além de outros tubérculos e raízes que enriquecem o cozido: mandioca, araruta, gengibre, inhame, nabo, cará...  As verduras: pés de alface, dentes de alho, cabeças de cebola, corações de alcachofra, catacreses de muito sabor; e couve, couve  flor, repolho, rabanete, brócolis, mostarda, almeirão, agrião, espinafre, ora pro nobis, munheca de samambaia, hortelã, palmito, chicória, taioba, aipo, berinjela, pepino, abóbora e moranga, jiló, maxixe, quiabo, tomate, salsa e cebolinha de cheiro, sálvia, alfavaca, manjericão. E tem cravo e canela, tudo quanto é tipo de pimenta e muito mais.

O inverno chegou devagar, mas o tempo, enfim, esfriou, o que fica bem consignado no céu de topázio claro das manhãs de BH, e também no Mercado, é claro. Nas bancas de leguminosas de prestígio, feijão, ervilha, grão-de-bico, hás de encontrar nesta época, também umas favas muito ricas . Depois é ires às que vendem pertences de feijoada, linguiças, chouriços, paios e outros embutidos, e carne de porco defumada, costelinhas, lombo... E já podes improvisar em nossas latitudes tropicais uma “fabada” que não será asturiana, mas digna poderá ser. A receita? Aí vai:

Les fabes (*)

Tres cuartos de kilogramo
De alubias de La Granja
O, simplemente, de fabes;
Unas morcillas de cerdo,
Chorizos, tres, pero buenos,
               
Medio kilo de lacón,
Tocino, un ciento de gramos;
Y la cebolla, que alegra
La mesa del pobre, y cualquiera,
También se va a la cazuela,
Pero de visita, no más,
Como el perejil: las dos
Se irán a media cocción,
Dejándoles los inciensos
De sus almas vegetales,
Como un regalo a les fabes.

Un chorro de aceite virgen
Les buscará los olores
Y los sabores más hondos.
Ajitos harán más ricas
Les fabes  y lo demás;
Y el misterioso azafrán
Tostado ligeramente
Les dará colores mágicos
De viejo oro cantábrico.

Mas la simple añadidura
De ingredientes de precepto
No consigue una fabada:
Hay liturgias hieráticas
Y protocolos formales,
Conjuros muy ancestrales,
Para que sea realizable.

Refiérense a lo del fuego,
Al hervor y al remojar;
Disponen sobre criterios
Y el orden de sazonar;
Sobre el tiempo en la cazuela,
Y el modo de sacudirla,
Y a los pequeños rituales
Que propician a les fabes
Y ablándanles el espíritu.

Quizás la repetición
De unas antiguas palabras
Que se hubieran pronunciado
Bajo la sombra de un tejo
O un añoso carbayón,
Viejas palabras insólitas,
Para oídos iniciados.
Y si los procedimientos
Se van de conformidad
Con el misal de les fabes,
El de ponerles a la mesa
Es un glorioso momento.

(*) Para um “luso-hablante” é sempre complicado encarar o Idioma de Cervantes, mesmo num texto elementar e banal como esta receita de favada, escrita num contexto que só se salva pelo conteúdo afetivo, o do “Romance de estereotipos asturianos com fabes”, de 1999, publicado em “Ibero-Americanidades – Açucenas para Sevilha” – Edições C.L.A. – 2008. A solução, então, foi recorrer à minha amiga Maria Luisa Laviana, historiadora e escritora. Ela livrou o texto original de vícios de sintaxe, solecismos, lusitanismos, e falsos cognatos, o que permitiu compartilhá-lo sem constrangimentos. Ela é andaluza de Sevilha, mas, de pais e avós asturianos, pôde outorgar com plena autoridade foros de genuínos e esses “fabes”. Obrigado. 

NM

31 comentários:

  1. Nilseu

    Que beleza! Só dei falta das alpargatas RUEDA!!!
    Um abraço

    Rodrigo

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    1. Obrigado, Rodrigo, por suas palavras generosas. Da próxima vez, irei em busca das alpargatas.

      Grande abraço,

      Nilseu

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  2. Obrigada Nilseu,
    por compartilhar conosco esta maravilha.
    Um abraço carinhoso

    Mirtes

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    1. Ei, Mirtes,

      O&B recebe com muita alegria a sua visita e a do Antônio.

      Grande abraço,

      Nilseu

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  3. Nilseu,

    Depois dessa descrição maravilhosa, bom mesmo é comer um fígado acebolado com jiló e morrer de saudade desse amigo querido que a gente tromba de vez em quando na Savassi.

    beijão,

    Marília Alves

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    1. Marília, querida,

      Esse negócio de fígado acebolado com jiló no Mercado Central é uma instituição do maior respeito. A gente tem mesmo de prestigiar.

      Grande abraço,

      Nilseu

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  4. SE LÁ NO MERCADO TIVESSE UMA SINUCA, HEM NILSEU???!!!
    SERGIOAC

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  5. Fiquei com saudade da minha BH e seu interessante mercado!Linda descrição!Obrigada
    Helô

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    1. Que bom, Helô, que O&B lhe tenha levado boas lembranças de BH. O mercado está lindo.

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  6. OLÁ NILSEU,

    ACABEI DE FAZER UM TOUR VIRTUAL PELO MERCADO CENTRAL. ME DEU UMA VONTADE DANADA DE CORRER PRA LÁ. MAS O TRABALHO ME IMPEDE.ADORO ESSE LUGAR. É SEMPRE UM PRAZER IR AO MERCADO. COM DESCULPA DE COMPRAR UMA PIMENTA, FICO POR LÁ POR UM BOM TEMPO, VOLTANDO COM A SACOLA CHEIA E COM UMA PARADINHA BÁSICA E UMA CERVEJA GELADA ACOMPANHADA COM JILÓ E FÍGADO ACEBOLADO.
    ADOREI!!!

    DAGRAÇA

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  7. O Mercado Municipal deveria fazer de seu texto um guia literário e sentimental - o melhor escrito até hoje, sem dúvida. Deixo a ideia!

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    1. Ô Fabbrini,

      Obrigado por comentário tão generoso! Sou muito vaidoso desses coisas que inflam meu ego. Porém, mais vaidoso eu sou de ter você como meu amigo.
      Grande abraço,
      Nilseu

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  8. Nilseu,

    Quem é de Belzonte vai gostar. E quem não é, vai querer conhecer.

    Gerrô

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  9. Ô, Gerrô,

    E vale mesmo a pena. O mercado está muito bonito.

    Grande abraço,

    Nilseu

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  10. Ai, ai, ai. Nossa, Nilseu! Você me fez sentir uma saudade imensa do Mercado! Há muito não vou lá. Da última vez (já tem uns cinco anos), fui acompanhando, junto com Arnaldo Godoy, o Paulinho da Viola. Apaixonado à primeira vista, o sambista não queria mais ir embora.Maravilhou-se com tudo. Provou de tudo, Só saiu de lá quando foi informado que o Mercado ia ser fechado. E saiu carregando uma dúzia de copinhos pra cachaça,um queijo canastra e uma goiabada cascão.

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    1. Querida Isa,

      Pode voltar lá que, cada vez, o Mercado está mais bonito. Ir a essa entidade urbana tão essencial para nós é como uma peregrinação de preceito, a Roma, a Meca, por aí. Obrigado pelo prestígio. O&B agradece.

      Grande abraço,

      Nilseu

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  11. Bom demais! Adorei! Magda

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  12. Caro Nilseu,

    dei uma boa paquerada em Ociosidades & Bagatelas. Ótimo, leitura boa, leve e instrutiva. Kkkkkk.
    Continue o trabalho!

    Abraço,

    Luiz Antônio

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    1. Que que é isso, Luiz Antônio? Trabalho? Nem pensar. Aqui é tudo puro ócio.

      Grande abraço,

      Nilseu

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  13. Que beleza. Você resgata, com elegância e um texto nota 1000, a BH que se foi (mas ainda está presente em certas coisas).
    Obrigado.

    Abs,

    Anibal

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    1. Obrigado, Aníbal. Bom receber sua visita aqui em O&B;

      Grande abraço,

      Nilseu

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  14. Favas muito bem contadas, na acepção mais literária e lírica da expressão!

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    1. Obrigado, Angela. Sua presença sempre ilustra este O&B.
      Grande abraço.

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  15. Muito bom, Nilseu.
    Delícia de se ler.

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    1. Obrigado, Daniel, pelo comentário generoso.
      Grande abraço

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  16. Bom passeio esse pelo Mercado!!
    A sugestão é boa. Vou lá amanhã buscar as favas!!

    Abs,
    Thais

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    1. Ô Thais,

      Por ir mesmo que as favas estão excelentes. Obrigado pela visita a este O&B.

      Grande abraço

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  17. Caro Nilseu, Saudades!

    Tive um problema no computador e só hoje estou visitando seu blog."Ociosidades e Bagatelas" está sempre gostoso de ver. Seu trabalho é digno do empenho e do capricho com que vc seleciona preciosidades do cotidiano.

    Mostrei para a Help. Nós fomos àquela feira famosa.. Não conhecemos o Mercado. Valeu!!!

    Abração/ Edinho

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    1. Quando vocês voltarem a BH, não deixem de visitar o Mercado, uma entidade urbana muito especial. Obrigado por seu comentário generoso.

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  18. Nil,
    Parabéns pelo Blog e pelas belíssimas pimentas vermelhas.
    Kleber Farinha.

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