domingo, 4 de julho de 2021

Uma balada e uma baladinha (só pra distrair a quarentena)

Recolhimento (*)..

A quarentena da lepra, dos homens, das roupas e da casa é de sete dias, a critério do levita (Levítico). Para encontrar-se consigo mesmo, tanto para o Filho de Deus quanto para os filhos dos homens, são necessários quarenta dias contados, na solidão do deserto de cada um. Para, daí, abrir passo até a Terra da Promissão, quarenta anos podem ser suficientes.

(*) Heptaédricas – 2017

 

Há séculos, a Lepra e a Peste, de vez em quando, impõem quarentenas como, agora, o vírus insidioso, ameaçador, letal. Não adianta reclamar. É chato sujeitar-se ao recolhimento forçado, renunciar ao convívio e à conversa fiada dos botequins da vida, sobretudo quando tarda, e tarda muito, a vacina que trará de volta nossa liberdade. Por enquanto, vale o refrão de Gilbert de Carvalho: “Quando no terreiro, // faz noite de luar // e vem a saudade // pra atormentar // eu me vingo dela // tocando viola // de papo pro ar”. Revolver uma pilha de discos de vinil, escolher um e ligar a velha vitrola também vale, pra quem nem sabe tocar viola.

Quando vem a voz inconfundível de Edith Piaf, quase sem o discreto chiado que, indefectível, acompanha esse processo de reprodução sonora, porque o disco, tocado pouquíssimas vezes, está “novinho”, manifesta-se a circularidade do Tempo. Tudo poderia virar “presente” nas notas de La vie en rose ou Hymne a l`amour, mas La goualante de pauvre Jean, sem maiores prosopopeias, tem o condão de restaurar magias e alegrias da infância, curiosamente atadas, não à balada de Marquerite Monnot e René Rouzaud, mas à versão que andou em voga no Brasil, na década de 50. Ela nem foi propriamente leal ao original, a começar pelo título, que deveria ter sido A balada do pobre João. Veio “Os pobres de Paris”, mas a gente gostou assim mesmo.


Voltemos à balada, ou a La Goualante du Pauvre Jean (*):

Esgourdez rien qu'un instant
La goualante du pauvre Jean
Que les femmes n'aimaient pas
Mais n'oubliez pas
Dans la vie y a qu`une morale
Qu'on soit riche ou sans un sou
Sans amour on n'est rien du tout

Il vivait au jour le jour
Dans la soie et le velours
Il pionçait dans de beaux draps
Mais n'oubliez pas
Dans la vie on est peau de balle
Quand notre coeur est au clou
Sans amour on n`est rien du tout

(...)

Et voilà mes braves gens
La goualante du pauvre Jean
Qui vous dit en vous quittant
Aimez-vous....


(*) A balada do pobre João

Escutem por um instante
A balada do pobre João
Que as mulheres não amam mais
Mas esquecer, nãos esquecem.
Existe apenas uma moral na vida,
Ricos ou sem um tostão
Sem amor não somos nada

Ele vivia o dia-a-dia
Entre sedas e veludos,
lençóis, os mais finos.
Mas não esqueça,
Na vida nada valemos
Quando nosso coração está em farrapos.
Sem amor não somos nada

(...)

Eis aí, brava gente
A balada do pobre João
Que lhes diz ao vos deixar,
O negócio é amar...


Baladinha do Hospício
 
Nicolau czar, duques, condes, generais
Clero demais, muita ortodoxia,
Revolução? Não, só agitação.
1901, notícia pela ferrovia, de pasmar
O Leão (Davidovich): outro Leão,
Nikolaieivitch Tolstói, excomungado,
Por tergiversar, diziam,
Sobre a Imaculada Conceição,
Mas, alguém acha um prisma bom:
 
“Não dá pra perder para um hospício desses”.
 
Demorou, mas acabou.
Acabou? Não, nunca acaba.
2021, pandemia, novas cepas,
novas idiossincrasias.
Mandam tomar cloroquina,
Ou estricnina, formicida Tatu,
BHC com creolina,
Bom pra chato e carrapato,
Lombriga e ameba, talvez.
Pode também rezar, o freguês,
Pra Santa Felizbina, para a imperatriz
Catarina, pra princesa Leopoldina...
 
“Não dá pra perder para um hospício desses”.
 
E o faceiro do reclame?
Ele quase morreu de bronquite,
Salvou-o o rum creosotado.
E passa, passa, Talco Ross,
quero ver passar. Vacina?
Nem pensar.  O negócio
É deixar a abobra alastrar:
Uma vez morto o rebanho
Não haverá mais pandemia,
Nem ninguém pra se lembrar
Que, um dia, existiu uma “Tabacaria”.

 
“Não dá pra perder para um hospício desses”.

(NM)


 


33 comentários:

  1. Querido Nilseu,

    Como ficou bem construída a sua Baladinha do Hospício! Quantas lembranças engraçadas emaranhadas na memória, que se acomodou no tempo, mas que voltou, célere, desenrolada
    por sua poesia. Até a querida D. Leopoldina entrou, como santa, pobre Imperatriz!, que certamente santa era.
    Como é bom ler Nilseu Martins!
    Muitos abraços (acumulados em mais de 1 ano) da sempre amiga
    Marilia

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    1. Querida Marília,

      É tão gentil e generoso o seu comentário que me sinto um tanto cabotino em publicá-lo. Mas a verdade é que gostei demais.

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  2. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

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  3. O&B -nm- tem essa capacidade de te colocar inteiramente dentro do mundo e totalmente fora dele. Magia pura

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    1. Olha que comentário generoso! É dessas coisas que inflam o ego do blogueiro até o limite. Só não deu pra saber quem enviou.

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  4. Essa do hospício é do baralho.
    Estava com saudades das postagens.

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  5. Ô Daniel,
    É sempre bom ter você aqui em O&B. Sem o estímulo dos amigos este O&B já teria sucumbido à preguiça do blogueiro.

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  6. Recebi e li.

    Wanderley Lima

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  7. Meu amigo Panther é assim mesmo. Pode passar uma noite inteira conversando, conversando, em meio a libações de preceito. Na hora de escrever é de uma concisão de Júlio César

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  8. Faziam falta as bagatelas.
    Obrigado,

    José de Castro

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  9. fico feliz de ver que o "escriba" voltou as canchas.um abraço

    Nuno Casassanta

    ________________________________________

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  10. Pois é, Nuno. Pandemias fazem esse tipo de coisa.

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  11. O obrigado pelo envio do texto. Lembrei-me de vc. Conheci uma pessoa que sabe mais coisas pretensamente inúteis que nos dois juntos, o prof. Sacha Calmon. Boa tarde com os meus cumprimentos.

    Fernando S. Rodrigues.

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  12. Ô, Fernando,

    Bom demais ter notícias e receber sua visita aqui neste O&B. Grande abraço

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  13. Beleza Nilseu.

    Geraldo Eustáquio Goulart

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  14. O Geraldão também é pra lá de sucinto,

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  15. Prezado Nilseu: sempre lhe disse que você tem vocação, experiência e vontade de escrever. Falta no Brasil cronistas da realidade, do momento estranho e dramático que vivemos. Sua grande experiência como jornalista e observador das coisas e dos homens o credencia a escrever crônicas da nossa realidade. Ou, quem sabe, fundarmos um grupo de jornalistas, e são tantos, dispostos a manter uma proposta dessas?

    Mauro Werkema

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  16. Ô, Mauro,
    Difícil é a gente desistir de um universo paralelo construído a caráter e a gosto, para entrar no surreal brasileiro. De qualquer forma, valeu. Grande abraço.

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  17. Querido amigo Nilseu: você, com esse dom do verbo que Deus lhe deu, tirou literalmente DE LETRA (que redundância!)essa crônica, exorcizando tanto quanto possível a estresse coletivo em que estamos mergulhados. Abraços saudosos, meu e do Castilho.

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  18. Muito bom ter você aqui neste O&B. Obrigado por suas palavras sempre generosas.

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  19. Caro Nilseu, recebemos com muita alegria a sua nova postagem.Em tempos de pandemia, isolamento social e carência intelectual é com muita alegria que os seus sempre elegantes e contundentes textos.Um abraço amigo, de quem muito te admira. 

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    1. Ei Crepaldi,

      Muito bom ter vocês aqui em O&B. Dá até vontade de escrever mais

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  20. Bom demais, Nilseu! Estava com saudades!!!!!

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  21. Queridíssima Magda,

    Bom demais compartilhar minhas postagens com você.
    Abraço.

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  22. Que bom, ou melhor, que delícia, amigo Nilseu, reencontrar as Ociosidades (na verdade, Preciosidades) e Bagatelas.
    Logo de início me deparei com a referência à voz de Paulo Autran em "Da Profissão de Poeta". Pois saiba que eu fui um privilegiado: assisti "ao vivo" Paulo declamar, a menos de meio metro de distância, durante entrevista de 50 minutos que fiz com ele e Maria Della Costa, lá pelos idos de 1963, em "Artes nas Alterosas", que eu produzia e apresentava nas TVs Itacolomi e Alterosa que - raridade, para não dizer exclusividade - entravam em cadeia para transmissão conjunta do meu programa.
    Dentre as ótimas leituras que você coletou e transcreveu, no último final de semana me emocionei, também, com a leitura de "Perdi o trem", de Ângela Leite, poema que você tão bem definiu como "saboroso".
    Continue. Aumente a produção, no mínimo uma vez por mês. É o que lhe peço em nome dos inúmeros aficionados com os seus textos!
    Grande abraço do admirador,

    Sergio Prates

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    1. Ô, Sérgio,

      A graça de publicar essas postagens ociosas consiste, precisamente, em compartilhá-las com os amigos. Obrigado por sua presença aqui em O&B. Grande abraço

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  23. Que bom a sua volta, nos brindando com seu estilo inconfundivel.
    Lembrei-me do bonde Bonfim da minha infância,com a propaganda do rhum creosotado:
    "Veja, ilustre passageiro
    Que belo tipo faceiro
    Que você tem ao seu lado
    E, no entanto, acredite
    Quase morreu de bronquite
    Salvou-o o rhum creosotado."
    Bons tempos aqueles!Éramos todos ilustres, faceiros, e não morremos de bronquite.
    Nosso abraço

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  24. Caríssimos Ismael e Denise,

    Obrigado pela presença aqui em O&B e por recuperarem o reclame do "rhum creosotado" em toda a sua inteireza. Eu só me lembrava do fragmento que está inserido no texto. Grande abraço

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  25. OI, Nilseu!

    Adoro ler seus textos: enxutos, reflexivos, doloridos e acolhedores.
    Sempre uma mistura surpreendente. Você é daqueles que não desperdiça
    nada. Sabe dizer como anda o mundo: antes, durante e como será.
    Obrigada.

    Malluh

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  26. Oi, Malluh,

    Até que enfim você apareceu aqui. O&B a recebe de braços abertos. Obrigado

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