sábado, 28 de agosto de 2021

Matutina, com arrulhos

 


Estrela da Manhã, tão bonita, ao clarão dourado dessas auroras de Minas, cintilações de ouro velho que o inverno espevita! Manacás exibidos perfumam a friagem, branco e violeta, branco e violeta, branco-e-violeta que enfeita a calçada se esticando Rua da Bahia acima, glicínias, as glicínias... brando malva, esplendor de ametista.

O pálido amanhecer, que recorta em sombras de antigos gigantes arvoredo e serrania, acende, devagar, os mais altos casarios; cessa, por um momento, o tráfego intermitente, a madrugada se aquieta. 

Silêncio de endechas

de muitas pombas. 

Rruuú, rruuú, rruurruuú... 

(nm)


Pouco preço, mas muito apreço, a vaquinha da Rua Leopoldina


A vaquinha da Rua Leopoldina continua em seu lugar, presença bonita na calçada, bem ali nos começos, à direita de quem ruma morro acima para os altos do Santo Antônio. Quieta, não tuge nem muge, mas assume humores e estado de espírito da luminosa cidade de BH. Propensa a alegrias e festa, no carnaval sempre aparece enfeitada de confetes e serpentinas e, se calha, oferece até a sugestão de um lança-perfume rodo-metálico de antigos baratos de salão. Em épocas de copa do mundo, sempre se vestiu do verde e amarelo da seleção. Depois vieram sectários que sequestraram essas cores impregnadas de afeto, “auriverde pendão da minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança”, “salve lindo pendão da esperança”, mas isso é outra história. Junho? Até balão ela solta, vivam Santo Antônio e São Pedro, viva São João!

O começo? Em 1980, o artista Marcelo Nietsche, de São Paulo, esculpiu-a em concreto na altura do n.o 72 da Leopoldina. Era parte de um projeto do Museu de Arte da Pampulha de promover intervenções na paisagem urbana. Na ocasião, nem ele nem a artista plástica Marina Nazareth, curadora do projeto, poderiam suspeitar que a vaquinha, pequena, nem alcançava dimensão e escala próprias do natural das vacas, haveria de transformar-se em patrimônio afetivo, primeiro da Rua Leopoldina, depois, de toda a cidade.

Os vizinhos souberam repelir tentativas, várias, de “remoção” e, em uma ou duas ocasiões em que ela foi vítima de acidentes de tráfego, trataram de a restaurar. Foi virando, virando, virando, e virou um totem cujo espírito ressuma a maternal disposição de uma potestade benigna, nisso, igual àquela Hator, entidade dos faraós que, há quarenta séculos, esparze eflúvios, os melhores, por todo a vale do Nilo.

Atenta, não descura nem se aliena da vida ou das vicissitudes da cidade, como uma consciência viva e, quem sabe, não guardaria reminiscências de antigos entardeceres para abrandar, na memória e no coração, a dor da maldição das minas, piritas, hematitas, azuritas e tantas pedras de cobiça. Belo Horizonte, Belo Horizonte! Não chorarás, a montanha corroída nem os poentes cariados. Há um tempo sombrio, então o que importa é mostrar valor.

A vaquinha da Rua Leopoldina nunca foi de andar atrás de berrante. Ainda se fosse um aboio afinado, como na canção de Luiz Gonzaga, a pequena boiada primando pela boniteza! São dez cabeças, é muito pouco, é quase nada, mas não tem outras mais bonitas no lugar. (*)

Para hoje, em letras claras,  no traseiro, a explicitação que remete a José do Egito: o tempo é de vacas magras; no dorso, a vaquinha da Rua Leopoldina traz uma consigna apropriada ao  programa de qualquer governo bom: VACINAS JÁ!

(nm)

(*) Só por lembrar: Salomé, vaca de antiga canção de Bob Nelson, sobrevive na rima estupenda, achado lírico de arrepiar. Barnabé, o boi, anda se babando, muito satisfeito por ter feito uma boa escolha. Sua linda Salomé não dá leite engarrafado, com tampinhas e com rolhas? Além disso, meu chapa, leite açucarado, misturado com café. Aí, vem aquele falsete alpi-faroestino:

Olei olei lei lei i titi!


quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Homenagem a Vieira (*)

Clovis Salgado Gontijo

 

Nossa Senhora, Mãe Celeste,

há muitos séculos,

os peregrinos desta Terra vos invocam.

Devotos, sempre vos pedem:

uma direção,

um caminho suave,

um abrigo seguro,

o equilíbrio para não tropeçar,

a saúde para não esmorecer.

 

Nossa Senhora da Estrada

e dos amanheceres,

também sou peregrino

e recorro à vossa proteção.

Hoje, a jornada será longa.

A Lua nem sequer se recolheu

do céu esbranquiçado de Luminosa.

 

Nossa Senhora das Candeias,

despertai novamente o Sol

para iluminar de vez o mundo

e inundar o céu, por todo este dia,

com o azul intenso do vosso manto.

 

Nossa Senhora das Neves,

penso em vós neste vale frio

onde só há geadas.

E vos peço para derreter

as ações do tempo que me petrificam.

Mas, antes, aquecei minhas mãos geladas,

ó Senhora da Luz,

padroeira da cidade do meu pai.

 

Quanto a mim,

vim das bandas da Boa Viagem

e, por isso, me fizestes peregrino.

Ainda não sei para onde vou.

Por ora, meu destino não será vos encontrar,

Nossa Senhora Aparecida.

Subo as serras em busca da liberdade rarefeita nas planícies

ou, quem sabe, para me manter, como a vida,

simplesmente em movimento.

 

Já com o corpo aquecido,

dirijo a vós outra prece,

minha fiel companheira,

Senhora da Soledade.

Por favor, deixai-me bem atento

aos encantos que brotam no trajeto.

A beleza sabe amaciar as botinas.

Qual graça de imediato recebida,

observo as criaturas que me cercam.

Conheceriam e invocariam, também elas,

algum dos vossos títulos gloriosos?

 

Passeia, à minha esquerda,

um curso de águas sonoras.


Não precisa de luz, nem de guia.

Avança, de olhos fechados,

sem temer o choque das pedras,

sem temer se perder,

tornar-se

ou deixar de ser

rio.

 

Se o córrego flui assim, tão seguro,

é por vossa interseção, Maria da Fé.

Volta e meia, vejo um pássaro

pousado no arame de uma cerca.

Não depende de estradas para seus percursos,

mas roga por bons ventos

e, depois de um voo penoso,

espera por Vós ser atendido,

Nossa Senhora do Bom Repouso.

 

Nos pontos mais altos,

as araucárias preenchem a paisagem.

Fora suas raízes profundas,

nada mais as liga à terra dos homens.

Não se preocupam com o bom sucesso,

nem com a boa morte.

Desafiando a gravidade,

voltam aos céus os longos ramos,

em adoração constante,

em total e mudo abandono,

à imagem da Senhora do Silêncio.

 

A trilha contorna a pedra sobranceira

que atrai e intimida os viajantes.

Não carece de mais amparo

e, para ela, tanto faz o mau quanto o bom tempo.

Se, no seu topo, erigem um cruzeiro,

não se queixa,

mas implora à Senhora da Piedade –

ou seria à Senhora da Penha? –

que a livre das incisões humanas.

Nossa Senhora dos Anjos,

amada por Francisco,

talvez todas as criaturas Vos invoquem.

Mesmo aquelas sem pés e sem caminhos.

Quanto a mim,

sou peregrino

e, como desconheço esta estrada e meu destino,

não dispenso nenhum dos Vossos nomes.

 

Piranguçu, julho de 2021

 

(*)  O Clóvis andou peregrino por velhas igrejas do Sul de Minas e, em tantas encontrou devoção tão arraigada na Virgem Maria que, ao compor homenagem ao padre Antônio Vieira, desde sempre outro rendido devoto da mãe de Jesus, chegou sem muito esforço  à piedosa oração. Os tempos são difíceis por aqui e a gente tem mesmo de recorrer a toda ajuda possível. Ave Maria, esperança nossa. Salve! (nm)