Vinte e nove diálogos entre o filósofo Vladimir Jankélévitch e sua discípula Béatrice Berlowitz, um livro, “Em algum lugar do inacabado”. Vigoroso estudo introdutório de Clovis Salgado Gontijo, que o traduziu para o Português, oferece claves essenciais para que, mesmo um leitor não iniciado no universo jankélévictchiano, possa aventurar-se prazerosamente por seus meandros sutis.
Clovis
enriquece a edição com uma profusão de notas pertinentes e esclarecedoras,
oferecendo referências que iluminam pontos de sombra que poderiam obscurecer
uma leitura cuja atmosfera, por mais brilhante que seja, não é nem poderia ser
apolínea. Qualquer abordagem de temas como o tempo e a morte, o tempo da morte,
estabelece-se com muito mais critério no ambiente noturno. É claro que
Jankélévitch leva tudo como muito brilho e, para isso, não lhe falta gênio, mas
é sempre o brilho da noite, cintilares de estrelas, cometas fugazes, precários,
como o inefável que ele perseguiu por toda a obra, talvez por toda a sua vida.
Clovis
oferece ao leitor lusófono as palavras e o pensamento de Jenkélévitch com
elegância e clareza, assim a certeza da morte nossa, de cada um, fora de nosso
alcance, porém, o “como”, o “onde” e o “quando”, tudo sujeito à ação do tempo,
cuja marcha inexorável podemos intuir, sem, objetivamente, apreendê-lo. A Física
reduz o tempo a mera função do espaço e da velocidade, variáveis pra lá de
discutíveis, tentativa de compreensão que, em nada, satisfaz os anseios do
filósofo. Este se aproxima mais da verdade através de percepções e iluminações
que lhe proporcionam a Música, “que se forma de eventos que se sucedem”...
Pois
é. Música é nave etérea
que, de repente, arrebata e eleva a esferas altíssimas. É o inefável, que em
momentos de despojada entrega, um homem puro de coração às vezes chega a
tangenciar, à maneira dos santos budistas ou daqueles anacoretas do
cristianismo primitivo. Tampouco Jankélévitch
abdica da poesia. Na abordagem do dilema da borboleta ao redor da chama, a
alegoria é primorosa: conhece-la de fora ignorando seu calor ou consumir-se
nela, “ser sem saber ou saber sem ser”.
Na
memória do blogueiro emergem reminiscências de antigas leituras daquelas “Dores
do Mundo”, de Arthur Schoppenhauer, como a remissão ao precioso “Silogismo”
do poeta catalão Joaquin Bartrina (1850 – 1880):
Si
al ser feliz creo serlo,
sufro en mi dichoso estado,
porque me hace desgraciado
sólo el miedo de perderlo,
y si estoy bien sin saberlo,
pues no lo sé, no lo estoy.
Así, mañana como hoy,
ser feliz nunca podré,
pues si lo soy, no lo sé…,
si lo sé…, ya no lo soy.
Aí,
o que temos é a verve amarga, outra literatura, outra metafísica. (nm)
Outro momento feliz da edição portuguesa de “Em algum lugar do inacabado” é a
capa, que reproduz "Estreas", litografia de Vassily Kandinsky, de 1938. Como
expressão da noite misteriosa e vaga, é imagem perfeita. (nm)
Caro Nilseu, o Clóvis é uma pessoa muito especial. Há muitos anos acompanho a sua trajetória ascendente como pensador, professor e intelectual que honra a sua família. Esse livro mostra mais um lado de sua capacidade e erudição.
ResponderExcluirÔ, Crepaldi:
ResponderExcluirO Clóvis ilustra este O&B com sua erudição, passeando como fosse a coisa mais natural do mundo, pelas esferas mais altas da Filosofia.