terça-feira, 12 de dezembro de 2023

De Laci, a um "pato ao tucupi"

Alto, magro e resseco, lembrando, tão esguio de compleição, um guerreiro da nação Watusi e, quem sabe, até tivesse mesmo ancestralida-de entre antigos povos da África Central: Laci alegrava torcedores do Galo no final dos anos 60 com dribles de pura magia e muitos gols. Com simplicidade genuína de jovem sem muita instrução, nem suspeitava que seu sucesso de futebolista pudesse incomodar. Qualquer iniciado na Cabala pode entender que a distância entre Belém do Pará e Belém da Judeia não é tão grande assim, menor, talvez que a malícia, o intuito de depreciar, o racismo enrustido. Não foi só por diversão que espalharam aquilo de “estou muito feliz de jogar na terra onde o Menino Jesus nasceu” ou atribuíram ao craque o ter dito que “Comigo ou sem migo, ganha o Galo”.

Esse tema não viria à tona, nem mesmo neste sempre ocioso O&B, não fosse uma questão pronominal prosaica, mas sempre é preciso defender a Língua Pátria. Foi suscitada em juízo por ex-juiz que virou senador da República: “O valor não corresponde aos gastos feitos especificamente com mim (sic)”; “abrangem outros indivíduos que não só mim”? Ufa! Parece tratar-se de um idioma próprio, pessoal, exclusivo, idioleto cujo léxico já registra o substantivo “conjo”, forma meio esquisita, mas até elegante de ”cônjuge”, quem não se lembra? Aqui, vemo-lo como se ao  influxo da linguagem dos pele-vermelhas de gibi, embora hoje em dia nem nos quadrinhos índio adulto use mais, só criança, piá, curumim...

Para o blog ocioso, de repente esse impulso de expressar na nova nomenclatura o repertório anedótico do Laci: “Com mim ou sem mim, cara-pálida, pato bom é ao tucupim”. (nm)

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Olavo Romano, sempre bom da gente lembrar

Os amigos, tantos que nem dá pra contar, compareceram à sede da Academia Mineira de Letras para se despedirem do Olavo Romano, arrimo e amparo da arte, tão cara em Minas Gerais, de contar histórias, histórias e mais histórias, que ouviu em sua casa, em sua infância, ou colhidas nas andanças por este mundo. Muitas ele mesmo inventou, porque inspiração nunca lhe faltou. O grande contar de histórias foi-se embora sem maiores prosopopeias, simplesmente foi indo, foi indo... Que perda, a do Olavo Romano! Mas será que foi mesmo tanta? Tantas são as lembranças dele, de suas histórias, de sua conversa sempre bem-humorada, de sua prosa (Que conversador magnífico o Olavo!) que a sua presença não é dessas que se desfazem assim, sem mais. Não é a perpetuidade dos afetos que eterniza os homens bons?

Bom. Sua irmã Alcéa mandou “banner” que compôs para lembrar seu irmão, lembrança boa, alegre, comme il faut , em se tratando de Olavo, e este O&B se alegra em o texto e foto para homenagear o querido amigo que foi embora. (nm)






Olavo Romano

✱06/09/1938

✟16/11/2023



Olavo contou caso novo,

e de novo, inovou.

Falou do tio, da mãe, do avô.

Dos netos e dos filhos do senhor Nonô.

Do tempo, da vida,

da graça, da praça, do povo, da Vila.

E o semblante de todos abrandou.

As palavras, as letras, a fala, abraçou,

Buscou, perguntou,

conversou, se entregou.

Recebeu, agradeceu, repartiu,

ofereceu este dom como prece.

Buscou nas estrelas,

o que aqui não encontrou.

Partiu pra mais longe.

No plano Divino,

foi refazer sua história.

E nós aqui, coração batendo

e guardando o Olavo na memória.

(Alcéa Romano)


domingo, 10 de setembro de 2023

Bares, bares, bares e sempre-vivas

É. Belô não tem mar. Não tem não. Mas tem bar, muito bar, tanto bar que só cê ven`, pra todo gosto, em todo lugar. A gente precisa escolher, definir preferência de antemão pra não ficar confuso. Estabelecer exclusividades é ocioso, mas é bom considerar a questão a partir de uma lista mais restrita antes de seguir adiante. Bares, os melhores, são entidades vivas, com as quais as interações afetivas são naturais e inevitáveis, determinadas, no mais das vezes pelos garçons. No antigo Jangadeiro, na Rua da Bahia, pontificou, em seu tempo, o excelente Protásio; na esquina de Sergipe com Timbiras o nome do estabelecimento foi vencido pela solicitude e gentileza do garçom e ficou mesmo Bar do Chico; a Cantina do Lucas, na galeria do Edifício Maletta ainda guarda memória viva do seu Olímpio, mitológico garçom. Na Savassi, Ivan e Jorge dão o tom ameno e cordial do Gujoreba; Márcio, o maitre, faz as honras no Redentor.

 O Tip Top anunciou que sairá de seu tradicional endereço na Rua Rio de Janeiro, expulso pela especulação imobiliária, uma pena, mas outras portas abrem-se para velhas confrarias que cultivam e cultuam grandes e pequenas celebrações etílicas, em libações que sustentam a sempre inconclusiva e interminável conversa fiada, fonte de alegria e saber, sal da vida. O recém-aberto Esquina Santê (Divinópolis com Silvianópolis) tem o clima de Santa Tereza, muito acolhimento e aconchego. E tem Mirtes, cantora, e Sílvio Scalioni, líder do Boca de Sino, banda prestigiosa e querida, o repertório de final dos 60, 70, 80 etc: 

Menina linda eu lhe adoro, ah,

Menina pura como a flor, oh, oh, oh,

Sua boneca vai quebrar, ah, ah, ah,

E tem o Bar do João, na Rua Tomé de Souza, entre Pernambuco e Getúlio Vargas, que virou malhadouro dos velhos jornalistas que afluem às mesas enfileiradas em sua calçada nas noites da primeira segunda-feira de cada mês. Às vezes, até uma ou outra história de jornalismo na conversa, que é fluida e variada ao longo da noite. João, o dono do bar, é natural de Diamantina, a estrela mais brilhante do Espinhaço, o que impõe certas obrigações, como a de distribuir pequenos feixes de sempre-vivas às damas que prestigiam a tertúlia. Isso pode suscitar reminiscências antigas, como as que remetem a um jovem que achou de exorcismar amargor de amor com umas redondilhas toscas, tola impaciência. Era preciso esperar, esperar o rodar do mundo e do tempo: podia ser nas patas do cavalo do vaqueiro de Geraldo Vandré ou na roda viva do Chico Buarque, mas rodar, rodar, enfim, rodar...

O disco solar plasma no tédio sideral do final das eras, acetato cósmico, a setenta e oito rotações por minuto, um tango daqueles mais doloridos ou uma canção de Antônio Maria, que também dói. (nm)


CAMPO DE MINAS


fui passear com meu amor 

num lindo campo de minas.

doce é rolar na grama

com a mulher que se ama.

cantarolando ária alegre,

foi colhendo sempre vivas,

 

as cores, todas, do espectro,

levando em mãos de menina,

as formas caleidoscópicas

davam-lhe ares de ninfa.

nos longos cabelos negros,

brilhando, gérbra amarela.

 

erguido feito uma tocha,

o bouquet resplandecia

ao sol e ao sorriso dela.

veio, então, a explosão:

BUMMMM!!!!

chuva de pétlas, miúda.

 

Rib. Preto/68 (nm)

quinta-feira, 9 de março de 2023

Panta Rei, o rio de Heráclito e os nossos rios

Noite de muita chuva. No Sudoeste do mundo, manhã cinzenta, céu indeciso: mostrar uma nesga de sol, desandar em chuvarada... Contemplar o alto despojado! Monotonia sem fim. Onde, as cores do dia?  Algum mistério há, talvez muitos, desde a sombra ausente de um pé de embiruçu despido da folhagem exuberante e das flores esplêndidas. A tempestade veio cruel no começo da estação. Sobrou uma garatuja de galhos secos projetada contra o firmamento plúmbeo, traços pretos em caótico desalinho, como runas de misterioso significado contra a abóbada embaçada.

Alarido alegre, de risco em risco, silhuetas aladas maritaqueiam. Hieróglifos em movimento, vivos, à espera de algum champolion que os decifre, quem sabe uma cigana experimentada para extrair deles o que nos reserva o futuro. Não sabeis? Os textos fluidos revelam ritmos que a roda do Tempo caprichosamente esconde, escancaram correspondências que o Universo às vezes só mostra aos profetas e a um ou outro poeta: Panta Rei, o rio de Heráclito, o Rio de São Francisco (corre de noite e de dia), o córrego da nossa infância que, de vez em quando, ainda rumoreja no coração. Tudo flui.

Fluem a lua, as estrelas, a Noite não cessa nunca. O Cosmo flui, desabrido, em todas as direções, e será deste modo até esvair-se na grande escuridão dos tempos: inscrições nas tumbas dos faraós, Ramsés; oráculos devastadores, Omar Khayyam, Baudelaire... Fluem as sombras escuras dos galhos de uma árvore morta. Irrequietos psitacídeos agarram seu fragmento ínfimo de eternidade e, por um momento, incorporam o Estro universal e convertem-se num pequeno poema elegíaco por um mundo que, para sempre, está sendo deixado para trás ou, apenas, indo embora depressa.

(NM)

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Tânio e Paulinho Camargo, o Nuctemeron

Quando a torrente do Tempo se desata, o melhor é deixar rolar. O blogueiro queria só enviar um exemplar de “Asas de Bolero”, pequeno volume que publicou há dois ou três anos, para Litai, filho do companheiro de juventude intensamente compartilhada no agito da Ribeirão Preto da segunda metade dos anos 60, o poeta Tânio Cintra e Oliveira, que preferia firmar seus poemas com o descansado pseudônimo de “Marcos Tranqüilo. Fossem quais fossem as vicissitudes de sua vida às vezes tumultuosa, não se exasperava. Foi-se embora no começo dos anos 70, num acidente banal de automóvel.  

O blogueiro conheceu o Litai e seus irmãos quando eles eram crianças, a Cidinha, mãe deles, muito jovem, na casa da Rua Constantino Spiropoulos, no Bairro dos Campos Elíseos. Seu nome remete ao de Li Tai Pó, o grande poeta chinês que, no arroubo de um tremendo porre, tentou alcançar, em noite clara, a Lua no espelho de um lago. Afogou-se, como a Ismália de Alphonsus Guimaraens, que deixou-se cair de sua torre na água, quando enlouqueceu. Seu irmão Camilo, como aquele Cienfuegos de quem ganhou o nome, morreu precocemente. Inaê, Tassiane, Nikê e Lorelai, suas irmãs: vivo louvor, águas, venerandas entidades. Litai mora em Franca, Noroeste de São Paulo, e foi o Paulo Sérgio, que exerce Medicina na cidade, quem mandou seu endereço eletrônico, a primeira possibilidade em mais de cinquenta anos sem qualquer contato.

Ele acolheu o livro, com as referências afetivas ao Tânio e à rapaziada, às moças também, que a confraria do Varal congregava à sombra de duas grandes figueiras na Praça XV, em Ribeirão Preto: o grande Leopoldo Limas esticava o arame em que pendurava suas pirogravuras. O bulício que formava vinha por conta própria. Litai pediu fotos do Tânio. O blogueiro não tinha. Então pediu ao Edinho (Edson José de Senne) também poeta do círculo do Varal que mora em Ribeirão Preto. Ele recorreu ao Fernando Braga, que é da paróquia, e ele mandou uma foto ótima, que chegou sábado à noite, por e-mail, muito bem-postos, da esquerda para a direita, Paulinho Camargo, Luís Leme Franco, Tânio e Laudelino Pires.

Na manhã de domingo o Edinho telefonou para dar a notícia da morte do Paulinho Camargo, presença querida e constante no Varal, onde começara a construir sua trajetória de grande pintor. Ô, meu irmão! Muita saudade.

Em 1967, sentado num banco de granito da Praça XV, à sombra dos grandes fícus que
sustentavam o arame, o Tânio acabara de compor o NUCTEMERON
(Poema Místico das Horas), que se atem a analogias e imagens do próprio poeta, não é remissão de verdade à obra do filósofo capadócio Apolônio de Tiana, o que o título poderia sugerir. Ali mesmo, tratou de transpô-lo para uma grande lâmina de cartolina, usando uma reles caneta esferográfica que o Paulinho Camargo ilustrou a bico de pena, praticamente num único transe. Depois, deu o poema ilustrado de presente ao blogueiro, que o guardou como pôde, mas a cartolina não aguentou os anos (muita chuva, sereno demais) e praticamente se esfarelou, mas o Ricardo Crepaldi fez um pequeno milagre e temos uma cópia.

Em 2013 este O&B postou o NUCTEMERON, no afã de registrar um momento bom do Varal. Agora, em homenagem ao Tânio e ao Paulinho Camargo.

 

O Nuctemeron - (Poema místico das Horas)

 

Na Primeira Hora:

 

Há possibilidade de todos os demônios

E os feiticeiros também,

Depois da terceira pinga,

Virem cantar cantigas de ninar

Com a voz plena de verbenas,

Para adormecer o recém-nascido

Ou empinar papagaios

No céu azul de Mitilene.

 

Na Segunda Hora:

 

Sisera e Torvatus são amigos e se prostram

Sob os grandes pés de Baglis, o Equilíbrio,

E de Hizarbim, gênio dos Mares,

Porque de duas mãos e dois pés,

De olhos em número de dois,

É a Harmonia

As serpentes estão em colóquio amoroso

Com os peixes do signo zodiacal

E, sobretudo, há um homem e uma mulher.

 

Na Terceira Hora:

 

A tríplice güela do Mastim de Hades

Faz saltar o fogo da vida,

Embora a morte que ronda a parturiente.

O temor é esguichado como o sangue

Que foge de suas entranhas

E, morto Zaroby,

Fica definitivamente constituída

A Santíssima Trindade.

 

Na Quarta Hora:

 

A Perfeição chega e toma forma:

É a figura humana em cruz,

Com quatro pontos cardeais.

Deus a envolve num círculo

E amarra em cada ponta

Um pedaço do destino.

No Norte está preso o Juízo,

No Oeste a Fornicação,

Do outro lado, quatro damas do baralho,

Cada qual de um naipe diferente

E, no Sul de tudo isso,

Ele calça com sandálias franciscanas

Seus pés muito brancos e bonitos.

 

Na Quinta Hora:

 

As Grandes águas se unem

E, dos passos de Suphalatus

Erguem-se o pó e a Liberdade

Que, com cinco copos de veneno,

Faz morrer quem a bebeu.

 

Na Sexta Hora:

 

O espírito fica imóvel e sem temor

E os monstros infernais

Mordem a quintessência,

Pois Haatan escondeu os tesouros

De Zaren, gênio vingador

E Adão faz desfilar os animais paramentados,

E a cada um dá um nome de batismo         

 

Na Sétima Hora:

 

A mulher, que é neta e avó de Deus,

Foi gerada pela vontade do homem puro,

O encantador de serpentes,

O que abre todas as portas,

E nasceu só para ser amado.

 

Na Oitava Hora:

 

Amarradas estão as pontas de uma estrela a outra

E desta, a outra, assim, num grande círculo.

O Sol tem em seu colo uma andorinha

E lhe fala ternamente, às vezes concupiscente.

Os tesouros, as escrituras e os mistérios

Podem ser comprados por qualquer mago

Ao Sr. Zoroastro, da venda da esquina,

Por um dólar americano e 25 cents.

Adão e Eva vão para a "suite" presidencial.

São dois quando se deitam

E quando se levantam são quatro.

Na porta ficou o cartaz: "Don't disturb".

Dentro, as baratas voam no quarto escuro.

Ao pé do elevador, 8 filhos os esperam,

Pois inflação tem dessas coisas.

 

Na Nona Hora:

 

Três vezes três,

Os mistérios do número nove

Não devem ser revelados.

E escolha é irrevogável,

Pois o fogo queimará a língua dos ladrões.

 

Na Décima Hora:

 

A Kabala nos fala

Do movimento circular da vida dos homens

E, separado o zero da unidade espoliada,

Fica o nada ou a morte.

As cortesãs da Pedra de ônix

Amam, nesta hora, os sacrifícios de crianças

Com a cupidez dos cães e dos profanos.

 

Na Undécima Hora:

 

As asas dos gênios se agitam.

Eles voam de uma esfera a outra

Com um ruído muito esquisito,

Levando pentáculos e simpatias,

Condenados que foram ao trabalho

Pelo Hierofante, que muda em talismã

Os gorjeios dos oráculos.

 

Na Duodécima Hora:

 

As formigas roem o mundo cadavérico

E os pingos da torneira furam o ferro.

Tarab, gênio da Concussão,

Bebe vodka nos vasos sagrados;

Misram, gênio da Perseguição,

Se enfada nas mesas do rei Édipo;

Labus, gênio da Inquisição,

Corre atrás do favor dos grandes.

Mas, há um Libertador prometido,

E se realizarão, pelo fogo,

As obras da eterna luz.

 

   Rib. Preto, agosto 67

    Marcos Tranqüilo