Quando a torrente do Tempo se desata, o melhor é deixar
rolar. O blogueiro queria só enviar um exemplar de “Asas de Bolero”, pequeno
volume que publicou há dois ou três anos, para Litai, filho do companheiro de juventude
intensamente compartilhada no agito da Ribeirão Preto da segunda metade dos
anos 60, o poeta Tânio Cintra e Oliveira, que preferia firmar seus poemas com o
descansado pseudônimo de “Marcos Tranqüilo. Fossem quais fossem as vicissitudes
de sua vida às vezes tumultuosa, não se exasperava. Foi-se embora no começo dos
anos 70, num acidente banal de automóvel.
O blogueiro conheceu o Litai e seus irmãos quando eles eram
crianças, a Cidinha, mãe deles, muito jovem, na casa da Rua Constantino
Spiropoulos, no Bairro dos Campos Elíseos. Seu nome remete ao de Li Tai Pó, o
grande poeta chinês que, no arroubo de um tremendo porre, tentou alcançar, em
noite clara, a Lua no espelho de um lago. Afogou-se, como a Ismália de Alphonsus
Guimaraens, que deixou-se cair de sua torre na água, quando enlouqueceu. Seu
irmão Camilo, como aquele Cienfuegos de quem ganhou o nome, morreu
precocemente. Inaê, Tassiane, Nikê e Lorelai, suas irmãs: vivo louvor, águas, venerandas
entidades. Litai mora em Franca, Noroeste de São Paulo, e foi o Paulo Sérgio,
que exerce Medicina na cidade, quem mandou seu endereço eletrônico, a primeira
possibilidade em mais de cinquenta anos sem qualquer contato.
Ele acolheu o livro, com as referências afetivas ao Tânio e à
rapaziada, às moças também, que a confraria do Varal congregava à sombra de
duas grandes figueiras na Praça XV, em Ribeirão Preto: o grande Leopoldo Limas
esticava o arame em que pendurava suas pirogravuras. O bulício que formava
vinha por conta própria. Litai pediu fotos do Tânio. O blogueiro não tinha.
Então pediu ao Edinho (Edson José de Senne) também poeta do círculo do Varal
que mora em Ribeirão Preto. Ele recorreu ao Fernando Braga, que é da paróquia,
e ele mandou uma foto ótima, que chegou sábado à noite, por e-mail, muito bem-postos,
da esquerda para a direita, Paulinho Camargo, Luís Leme Franco, Tânio e
Laudelino Pires.
Na manhã de domingo o Edinho telefonou para dar a notícia da
morte do Paulinho Camargo, presença querida e constante no Varal, onde começara
a construir sua trajetória de grande pintor. Ô, meu irmão! Muita saudade.
Em 1967, sentado num banco de granito da Praça XV, à sombra
dos grandes fícus que
sustentavam o arame, o Tânio acabara de compor o
NUCTEMERON (Poema Místico das Horas),
que se atem a analogias e imagens do próprio poeta, não é remissão de verdade à
obra do filósofo capadócio Apolônio de Tiana, o que o título poderia sugerir. Ali
mesmo, tratou de transpô-lo para uma grande lâmina de cartolina, usando uma
reles caneta esferográfica que o Paulinho Camargo ilustrou a bico de pena,
praticamente num único transe. Depois, deu o poema ilustrado de presente ao
blogueiro, que o guardou como pôde, mas a cartolina não aguentou os anos (muita
chuva, sereno demais) e praticamente se esfarelou, mas o Ricardo Crepaldi fez
um pequeno milagre e temos uma cópia.
Em 2013 este O&B postou o NUCTEMERON, no afã de
registrar um momento bom do Varal. Agora, em homenagem ao Tânio e ao Paulinho
Camargo.
O Nuctemeron - (Poema místico das Horas)
Na Primeira Hora:
Há possibilidade de todos os demônios
E os feiticeiros também,
Depois da terceira pinga,
Virem cantar cantigas de ninar
Com a voz plena de verbenas,
Para adormecer o recém-nascido
Ou empinar papagaios
No céu azul de Mitilene.
Na Segunda Hora:
Sisera e Torvatus são amigos e se prostram
Sob os grandes pés de Baglis, o Equilíbrio,
E de Hizarbim, gênio dos Mares,
Porque de duas mãos e dois pés,
De olhos em número de dois,
É a Harmonia
As serpentes estão em colóquio amoroso
Com os peixes do signo zodiacal
E, sobretudo, há um homem e uma mulher.
Na Terceira Hora:
A tríplice güela do Mastim de Hades
Faz saltar o fogo da vida,
Embora a morte que ronda a parturiente.
O temor é esguichado como o sangue
Que foge de suas entranhas
E, morto Zaroby,
Fica definitivamente constituída
A Santíssima Trindade.
Na Quarta Hora:
A Perfeição chega e toma forma:
É a figura humana em cruz,
Com quatro pontos cardeais.
Deus a envolve num círculo
E amarra em cada ponta
Um pedaço do destino.
No Norte está preso o Juízo,
No Oeste a Fornicação,
Do outro lado, quatro damas do baralho,
Cada qual de um naipe diferente
E, no Sul de tudo isso,
Ele calça com sandálias franciscanas
Seus pés muito brancos e bonitos.
Na Quinta Hora:
As Grandes águas se unem
E, dos passos de Suphalatus
Erguem-se o pó e a Liberdade
Que, com cinco copos de veneno,
Faz morrer quem a bebeu.
Na Sexta Hora:
O espírito fica imóvel e sem temor
E os monstros infernais
Mordem a quintessência,
Pois Haatan escondeu os tesouros
De Zaren, gênio vingador
E Adão faz desfilar os animais paramentados,
E a cada um dá um nome de batismo
Na Sétima Hora:
A mulher, que é neta e avó de Deus,
Foi gerada pela vontade do homem puro,
O encantador de serpentes,
O que abre todas as portas,
E nasceu só para ser amado.
Na Oitava Hora:
Amarradas estão as pontas de uma estrela a
outra
E desta, a outra, assim, num grande círculo.
O Sol tem em seu colo uma andorinha
E lhe fala ternamente, às vezes concupiscente.
Os tesouros, as escrituras e os mistérios
Podem ser comprados por qualquer mago
Ao Sr. Zoroastro, da venda da esquina,
Por um dólar americano e 25 cents.
Adão e Eva vão para a "suite"
presidencial.
São dois quando se deitam
E quando se levantam são quatro.
Na porta ficou o cartaz: "Don't disturb".
Dentro, as baratas voam no quarto escuro.
Ao pé do elevador, 8 filhos os esperam,
Pois inflação tem dessas coisas.
Na Nona Hora:
Três vezes três,
Os mistérios do número nove
Não devem ser revelados.
E escolha é irrevogável,
Pois o fogo queimará a língua dos ladrões.
Na Décima Hora:
A Kabala nos fala
Do movimento circular da vida dos homens
E, separado o zero da unidade espoliada,
Fica o nada ou a morte.
As cortesãs da Pedra de ônix
Amam, nesta hora, os sacrifícios de crianças
Com a cupidez dos cães e dos profanos.
Na Undécima Hora:
As asas dos gênios se agitam.
Eles voam de uma esfera a outra
Com um ruído muito esquisito,
Levando pentáculos e simpatias,
Condenados que foram ao trabalho
Pelo Hierofante, que muda em talismã
Os gorjeios dos oráculos.
Na Duodécima Hora:
As formigas roem o mundo cadavérico
E os pingos da torneira furam o ferro.
Tarab, gênio da Concussão,
Bebe vodka nos vasos sagrados;
Misram, gênio da Perseguição,
Se enfada nas mesas do rei Édipo;
Labus, gênio da Inquisição,
Corre atrás do favor dos grandes.
Mas, há um Libertador prometido,
E se realizarão, pelo fogo,
As obras da eterna luz.
Rib. Preto, agosto 67
Marcos Tranqüilo